Por Pedro Marin.
Maracayeros foram vítimas da repressão por horas neste sábado – os cidadãos protestaram contra a repressão e homenagearam o jovem Fabián Urbina.” Foi assim que o jornal venezuelano El Nacional noticiou uma manifestação opositora ocorrida na cidade de Maracay, no estado de Aragua, no dia 24 de junho deste ano.
A matéria segue, riquíssima em vídeos e fotos de “cidadãos” sofrendo a “repressão” da Guarda Nacional Bolivariana – inclusive citando os cantos entoados pela multidão. Mas há nela um trecho um tanto quanto distante dos manuais de redação jornalística; “usuários reportaram também uma situação irregular na base do coletivo oficialista ‘Otro Beta’, onde presumivelmente se produziu um incêndio.”
A notícia sem dúvidas seria diferente se escrita pela professora universitária Ysbel Mejias. Naquela tarde, pouco antes de “presumivelmente se produzir um incêndio” na sede do Otro Beta, ela – que faz parte do coletivo – estava no edifício acompanhada de seu marido e de sua filha pequena. “Havia um companheiro que ficou no espaço, de guarda. E ele teve de sair pela parte de trás, pelos banheiros, e só dessa maneira pôde sair, porque entraram como uma manada. Ele disse que conseguiu ver dez ou doze deles”, conta Ysbel sobre os guarimbeiros que invadiram e incendiaram o prédio naquela tarde. “Alguns dos que entraram eram pessoas que iam a shows no espaço”, lamenta.
Otro Beta
Criado em 2011 na cidade de Maracay, o Otro Beta organiza anualmente um festival de música que no último ano contou com um público de mais de 50 mil pessoas. O espaço do grupo, hoje em ruínas, servia para reuniões de outros coletivos, e contava com um estúdio de gravação para artistas independentes, espaço para shows, restaurante e bar.
“Com o bar se gerava empregos diretos e indiretos, quando se precisava de pessoal para a segurança ou equipe técnica para o som. No caso do restaurante também se gerava empregos indiretos para companheiros e companheiras que formavam parte do coletivo e que não tinham neste momento uma fonte de renda. E havia o trabalho com os jovens, com os jovens que moram na rua que usam a arte como forma de expressão; malabaristas, rappers, fotógrafos, grafiteiros”, conta Ysbel. “É o desenvolvimento da arte e da cultura como expressões revolucionárias. É isso que pretendemos fazer”, completa.
Para Mariano Garcia, que também forma parte do coletivo, não há dúvidas de quem seja responsável pelo ataque ao espaço. “Essa convocatória violenta da oposição do país resultou no atentado e posterior saque, destruição e queima de nosso coletivo”, declara.
“Nós fomos o único centro cultural, ao menos no estado de Aragua, que foi atacado de tal maneira. Por quê? Creio que fundamentalmente pelo impacto que tivemos a nível cultural. Nós atendíamos a jovens sem nenhuma distinção do ponto de vista político. Não era, nem será nunca um requisito para poder atender [aos jovens]. Porém creio que a nossa posição política – que sim, é muito explícita, jamais a ocultamos -, e a localização podem ter sido elementos, porque nos encontramos em uma região muito comercial, uma zona da cidade de Maracay na qual os moradores não são simpatizantes de nossa posição política.”
Guarimba
As manifestações de rua contra o governo de Nicolás Maduro, convocadas pela coalizão opositora Mesa de Unidade Democrática (MUD) e celebradas nos grandes meios internacionais, foram apelidadas “guarimbas”.
A tese de “ditadura”, defendida nas manchetes, foi estampada por meses com a figura da repressão, tendo em grande parte os enfrentamentos entre manifestantes e policiais – e as mortes consequentes destes – como base. É frequente que as matérias sobre as guarimbascitem cifras de “mortos durante as manifestações”, sem revelar, no entanto, quem são os mortos, ou em quais circunstâncias morreram.
Um levantamento do site VenezuelaAnalysis conta um total de 126 mortos durante as manifestações. 14 mortes foram causadas pelas autoridades, 23 foram vítimas da violência política da oposição, 8 morreram em decorrência das barricadas (principalmente em acidentes de trânsito), 3 foram mortas por civis pró-governo, 14 morreram durante saques, 3 foram mortes acidentais e 61 mortes não tiveram sua razão identificada. Mesmo o opositor Leopoldo López, em artigo no New York Times, reconheceu que as mortes não ocorreram só de um lado.
Não é um acaso, portanto, que a invasão e queima da sede do Otro Beta não tenha sido noticiada nos grandes veículos internacionais (ainda que tenha sido citada pelo vice-presidente do país em seu Twitter), nem é um acaso que o opositor El Nacional a tenha definido como uma “situação irregular” que presumivelmente ocorreu. Em Tovar, Bolívar e em Lechéria houveram incidentes semelhantes em sedes do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV).
Renascer das cinzas
“Obviamente é mais complexo, mais difícil, mas não é impossível. Antes de ter este espaço também realizávamos atividades. Há que fazer um esforço maior, mas como disse não é impossível”, diz Mariano quando perguntado sobre a continuidade do trabalho do coletivo.
“Guarimba não é rumba”, dizia uma pixação opositora que víamos três dias antes da visita às ruínas do Otro Beta em um muro na Avenida La Salle, próxima à Plaza Venezuela, em Caracas. Não é mesmo. Para o festival deste ano, apelidado de “Fênix”, o coletivo escolheu um mote bem mais apropriado: renascer das cinzas.
Fonte: Revista Opera