Por elaine tavares.
Caminhando pelas ruas de Caracas, acabei passando por baixo de um imenso viaduto. Muitos metros de completo vazio, nenhuma viva alma. Foi quando veio à mente todos os conselhos dos rapazes do hotel sobre não andar por certos caminhos. “Tem muita criminalidade, tome muito cuidado”. Gelei. Ali era o lugar perfeito. Longe de tudo, ninguém na rua. Eis que do nada, não sei bem de onde, surge um senhor. “No se anda por acá, niña. Vete, Vete!” Gesticulou, mandando eu sair dali imediatamente, enquanto vigiava um grupo de três rapazes que descia uma escada do outro lado do viaduto. Seguiu comigo, andando ligeiro. “Nem eu passo por aqui sozinho”, arrematou.
Assim, fizemos a travessia de quase uns duzentos e cinquenta metros, conversando. Alfonso era seu nome e trabalhava num pequeno comércio perto da Universidade Central. Carregava uma bíblia, a qual lê nos momentos de folga. “Temos de buscar proteção em deus”. Perguntei a ele como estavam as coisas na Venezuela. “Não está nada bom. Faltam coisas e as pessoas se apavoram, formam filas, muitas vezes sem necessidade, só por medo”. Perguntei se era culpa do governo. “Não. O governo faz o que pode. Eu não sou chavista, mas também não é como dizem na TV. O governo está comprando alimento, está distribuindo, mas tem muita máfia escondendo coisas que depois aparecem sem mais nem menos”. Alfonso tem uma filha que estuda na Bolivariana – a universidade criada por Chávez em 2003. “Ela está fazendo economia. Eu não teria como pagar os estudos, assim como muitas outras famílias. Essas são coisas boas que o Chávez fez”.
Depois de me deixar bem em frente à Universidade Bolivariana, ele se despediu, muito polido. “Cuidado por aí”. E se foi, passo rápido, sumindo em meio às gentes. Na universidade “chavista”, os rostos sorridentes são os da gente mais pobre. Circulam com seus livros ou conversam nos jardins. Há um movimento frenético de garotos e garotas que tem sede de saber as coisas. Os murais que se espalham pelos muros e paredes revelam o latino-americanismo que parece ser parte constituinte da maioria dos estudantes. Simón Bolívar e Simón Rodríguez guardam o saguão central por onde passam todos os estudantes, já que a universidade é vertical. Debruçado sobre o mezanino do primeiro piso está Chávez, sorridente, como a observar a azáfama daquela juventude que ele amava. Também é possível vê-lo em uma ou outra janela do prédio, com o braço erguido, chamando para a luta. Há um clima bem diferente do que se nota na tradicional Universidade Central, de onde, inclusive, saem alguns movimentos estudantis anti-governo. “Aqui estamos por causa de Chávez e por isso defendemos a V República. Para os pobres nunca foi garantido nada. Agora, aqui, manda o povo”, diz uma das meninas que descansa sobre a árvore, com seus cabelos trançados e os cadernos cheios de figuras de José Martí.
A Pátria Grande como espaço de comunhão parece ser o legado mais importante da revolução bolivariana. Pessoas comuns, que não estão na universidade nem em algum grupo organizado, sabem muito das coisas que acontece em cada país da América Latina. A mulher que come seu almoço sentada na Praça Bolívar me conta sobre as buscas dos estudantes mexicanos e pergunta sobre a retirada de direitos dos trabalhadores que a presidente Dilma anunciou há poucos dias. Outro senhor que encontro em frente à casa onde o educador Simón Rodríguez deu suas primeiras aulas, também fala com propriedade sobre a situação na Colômbia, no Uruguai, no Chile e indica que eu não posso deixar de passar na casa onde José Martí também deu aulas. “Tivemos a honra de tê-lo por aqui”. E nem vou falar da aula que deu sobre as guerras de independência e Simón Bolívar.
Nas ruas da cidade abundam os murais com páginas de lutas antigas e novas. Há, inclusive, passagens da revolução haitiana que qualquer menino venezuelano de colégio sabe, foi de fundamental importância para a independência da América. E, no dia do aniversário de José Martí, uma cerimônia em frente a um dos seus tantos bustos que existem por Caracas, reuniu dezenas de pessoas, entre autoridades, militantes e passantes que paravam para render homenagem ao “apóstolo da independência”.
Essa adesão ao ideário bolivariano é, sem lugar a dúvidas, o legado mais importante de Chávez. “O comandante nos ensinou que sozinhos somos fracos, mas junto com nossos irmãos da Pátria Grande podemos enfrentar as maldades do império”, diz com ares de certeza, o jovem que serve as mesas no Café Venezuela.
Também nos meios de comunicação de massa – a televisão, por excelência – esse conceito de Pátria Grande se materializa a todos instante. A rede Telesur traz notícias de todos os países e elas se repetem durante a programação, proporcionando ao venezuelano um mosaico significativo das lutas e dos avanços de cada “pátria chica”. As outras emissoras estatais e públicas também buscam noticiar coisas de cada país da América Latina, bem como de outros países da África e Ásia. Sempre com informações que fogem do lugar comum daquilo que se vê nas redes comerciais. São matérias longas, explicativas, que fazem com que o espectador possa entender o fato, desde suas causas até as consequências.
Nesses dias em que a Venezuela vive momentos de muita tensão por conta da pressão que vem de fora – alguns jornais da Europa chegam a prever a iminente queda de Maduro, por conta da crise de desabastecimento – também é interessante ver como o governo reage diante da tentativa de impor o medo e a desconfiança por parte da oposição. Na quarta-feira, antes de viajar para a Costa Rica, para a reunião da Celac, Maduro reuniu a militância do partido e das organizações populares para um encontro de discussão e prestação de contas das viagens que realizou. “Não estou ligado a nenhum grupo de interesses, nem a empresários, nem a banqueiros. Tudo o que tenho é o povo, são vocês, então, é a vocês que presto contas”. Toda a conversa foi transmitida ao vivo pela televisão. E, ao final, o presidente chamou para a vigilância contra as máfias e para a resistência diante das tantas tentativas de desestabilização. No seu discurso, o tempo todo, ele revisitava as demais lutas latino-americanas, lembrando da responsabilidade que os venezuelanos têm de manter viva a chama bolivariana.
É certo que o processo iniciado pelo presidente Hugo Chávez em 1998 enfrenta muitos problemas, que estão para além dos causados pela atual crise do petróleo. O maior deles é a impossibilidade de um verdadeiro desenvolvimento endógeno, capaz de mudar a cara do processo produtivo nacional. Há problemas na produção agrícola e na produção industrial, que não consegue sair do chão. E muitos desses problemas estão ligados mais a uma incapacidade do governo de dar boas respostas, do que aos ataques do “imperialismo”. Mas, por outro lado não dá para desconsiderar que boa parte do comércio e do setor de distribuição segue na mão de um empresariado antinacional e golpista, sempre pronto a travar as coisas para impedir o avanço do bolivarianismo.
Ainda assim, mesmo que tudo se acabe, mesmo que a oposição hora dessas consiga seu intento de derrubar a proposta bolivariana, haverá de demorar muito tempo para que se destrua esse espírito latino-americano que se pode “sentir”, concreto, andando pelas ruas de Caracas. Há uma massa gigantesca – a população mais pobre do país – que, com Chávez foi se alfabetizando com as realidades e os heróis de “nuestra América”, uma gente que não consegue mais ver apenas a Venezuela, mas que conspira com os pobres de toda a terra, como ensinava Martí. Esses homens e mulheres não entregarão os pontos tão facilmente. Eles lutarão para manter a Venezuela livre e soberana. Pessoas como Oscar, Alfonso, Diana, Juan, Marcos, Daniel, Luzia – e tantos outros com quem pudemos conviver – darão a vida para não voltar atrás. Com eles, “quiero mi suerte echar”.