Venda de atestados médicos falsos quintuplica para jogo do Brasil na Copa, dizem golpistas de SP e do Rio

Por Chico Felitti.

Na hora do almoço da terça-feira, dia 3, eu já sabia que estaria com piriri durante o jogo do Brasil contra Bélgica na sexta, dia 6. Não era pressentimento. Era o que dizia o atestado médico com a data de três dias depois que eu havia acabado de comprar na Praça da Sé, no centro de São Paulo, por R$ 50.

E eu não estava sozinho. Uma turma de oito pessoas esperava pelos documentos forjados na frente de uma banca de jornal. Sete deles estariam com virose durante a partida, justamente para poder faltar no trabalho e ver a Copa — a oitava era uma mulher reprovada no exame admissional de uma rede de supermercados e que precisava de um laudo médico indicando que ela estava apta a trabalhar.

Comprar um atestado é crime de falsificação de documento público, e pode render de dois a seis anos de cadeia. Mas é fácil: assim que o sujeito sai do metrô Sé, pela escada que leva ao Poupatempo, há um grupo de pessoas com placas oferecendo xerox, foto 3X4 e plastificação de documento.

Pergunto se alguém sabe onde consigo um atestado médico. “De aptidão ou de doença?”, pergunta uma senhora de cabelos brancos. “Doença. Pra ver o jogo.” Ela aponta para um homem baixo que anda para lá e pra cá na praça.

O sujeito, de boné e camiseta dry fit, atende na saída do metrô. “Descolo. E é de verdade, empresa nenhuma descobre.” Ele anota o nome completo, o número do RG e a data em que o cliente quer ficar doente. Pega R$ 20 como sinal — os outros R$ 30 são pagos na entrega do documento, que ele promete para dali a 15 minutos.

Meia hora depois, os oito clientes que estão esperando, cada um sentado num canto da praça, aproximam-se sob a marquise da banca. Começa uma conversa constrangida. “Ele sumiu?”, pergunta o estagiário de uma firma de direito. “Eu tô aqui há uma hora”, diz um garçom.

O vendedor de atestados se aproxima, saído de um prédio de três andares, na beirada da praça. “Mal, galera. Tô só eu aqui hoje. E já atendi 50 pessoas. Normalmente, são dez.” A procura por atestados médicos quintuplica na iminência de jogos da Copa, ele confirma quando um motoboy fala: “Nem a pau!”. O vendedor veio só confirmar nomes, números de RG e a data que cada um pretende ficar de licença. As pessoas esperam em pé, tensas, em frente à banca.

Ele então some de novo. E em mais 20 minutos aparece com uma guia da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, que afirma:

“Atesto, para os devidos fins, que o(a) sr(a) Francisco Dias Felitti portador do RG XXXXX foi submetido a consulta nesta data, no horário das 9:10 horas, sendo portador(a) da afecção CID 10 – B34.”

O CID é um código internacional de doenças. O 10 – B34 é “Doença por vírus, de localização não especificada”. A famosa virose. O atestado termina:

“Deverá permanecer afastado de suas funções por 1 dia(s) a partir desta data.” E a data da sexta-feira, dia 6 de julho, quando o Brasil estará em campo.

Chico Felitti / BuzzFeed News

Procurada pelo BuzzFeed News, a Santa Casa de Misericórdia de São Paulo diz que o papel do atestado, que leva seu brasão, é falso.

“Observamos diversas incongruências, visto que este impresso não é mais utilizado, pois a unidade de saúde [Pronto Socorro Municipal 21 de Junho] não é administrada pela instituição desde 2016”, afirma nota do hospital.

A Santa Casa diz que, desde 2017, todos os atestados são emitidos por um sistema informatizado e com registro no prontuário dos pacientes.

O médico cujo nome está carimbado e assinado na parte de baixo do atestado, Carlos Augusto Trevisan, não trabalha no pronto-socorro. Ele estava em um hospital do outro lado da cidade no momento em que eu comprei meu atestado.

Trevisan é testemunha em outro processo, de um fraudador que foi preso pela polícia na Sé em 29 de agosto de 2016, e levava no bolso o carimbo com seu nome e o número do seu registro médico.

“Eu trabalhei muitos anos atendendo nos pronto-socorros e nos AMAs [Assistência Médica Ambulatorial] de São Paulo. Em algum momento devem ter copiado meu carimbo de alguma receita”, diz Trevisan.

Ele afirma que levou anos para ser informado de que seu nome estava na Praça da Sé. “O mais irônico é que eu sempre fui o chato, negava atestado para besteira. Sempre fui muito criterioso. Existe uma pressão muito grande da população em busca de atestado médico fingindo (ou supervalorizando) uma doença. E eu negava. Por isso foi tão irônico ver que meu carimbo hoje aparece em tantos atestados falsos”, afirma o médico.

No Rio, esgotou

No Rio de Janeiro, a procura foi tamanha que há uma crise de abastecimento de atestados falsos.

Na manhã de quinta (5), passo no Rio Poupa Tempo que fica entre Ipanema e o Morro do Cantagalo. É nas imediações do prédio que cariocas disseram que eu conseguiria um atestado. Há pessoas oferecendo xerox, fotos 3X4 e plastificação, assim como em São Paulo. Elas indicam uma mercearia atravessando a rua onde, dizem, há atestados à venda.

“Ih, atestado só pra amanhã de manhã, rola? Acabou o talão [de guias]. Vendeu tudo.” Digo que não dá para esperar. “Faz o seguinte: vai pra Saint Roman, que lá você acha.”

A Saint Roman é uma ladeira que liga Ipanema ao complexo dos morros do Pavão, do Cantagalo e do Pavãozinho, onde moram cerca de 5.000 pessoas. Na porta do Posto de Saúde, há três sujeitos parados no que parece ser uma banca de jogo do bicho. Pergunto se consigo um atestado médico ali fora, ou é preciso entrar no postinho. “Até dá pra arranjar. É que, agora, acabou. Volta amanhã pra ver se tem?”, me aconselha dos homens.

“Ih, mas amanhã é o jogo, né, então passa antes das 10h, hein?”

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