Vem, oh cigana bonita!

Por José Ribamar Bessa Freire.
Essa é a história de Estevam e Zíngara. Contando assim, parece até mentira, mas eles nasceram na mesma data, outubro de 1931, embora em lugares bastante afastados. Ela, no Rio de Janeiro, rua Conde de Baependi, 35, Catete. Ele, em Manaus, rua Dr. Aprígio, 149, Aparecida. Aos dez anos, o destino jogou um nos braços do outro. A partir daí, viveram estreitamente unidos, apaixonados, durante 65 anos, até que a morte os separou, no sábado passado.
Zíngara é carioca, filha do casamento musical de Olegário Mariano, o “príncipe dos poetas brasileiros”, com Joubert de Carvalho, médico e compositor, parceiros em quase trinta músicas, algumas delas cantadas ainda hoje por todo Brasil, como Cai cai balão (1928) Taí (1930), De papo pro ar (1931) e Maringá (1932). Embora gravada em 1931, Zíngara só chegou a Manaus no início da II Guerra Mundial, na década de 1940, tocada pela Voz da Baricéa, prefixo PRF-6, o nome antigo da Rádio Baré.
Foi ai, então, que Estevam Santos, filho de Estevam Raimundo e Marina, ouviu Zíngara pela primeira vez. Foi amor à primeira vista. Apaixonou-se perdidamente, não parava de cantar, deslumbrando o auditório, formado inicialmente por seus irmãos Moisés, Berenice, Edna e alguns vizinhos, no quintal de sua casa, e depois ampliado para o bairro e para a cidade. Parece que a música tinha sido feita para ele, o gogó de ouro do bairro de Aparecida. Estevam era Zíngara. Zíngara era Estevam.
Talvez o sucesso de Zíngara resida na sua letra, que junta palavras com carga semântica altamente explosiva como cigana, destino, mistério, acaso, sorte, amor, segredo, dor, ilusão, futuro, além de verbos fortes como desvendar, consolar, olhar, ver. Ela mexe com a fantasia, a imaginação e os sentimentos. Estevinho soube interpretar isso muito bem, quando inventou a paradinha: “E procura desvendar no meu…”. Aqui, ele silenciava por dois segundos, acrescentando: “…segredo, a dor, cigana, do meu amor.” (Só de lembrar, fico arrepiadinho. Passa a mão aqui no meu braço, maninha!).
O gogó de ouro

Quem passava pela rua dr. Aprígio escutava quase diariamente aquela voz plangente soluçando:“Veeeeeeem, oh cigana bonita, ver o meu destino, que mistérios tem”. De tanto invocá-la, ela veio mesmo. E ficou. Fez um estrondoso sucesso. Já nos anos 1950, era uma das músicas mais cantadas na Voz Quermesse de Aparecida, que animava o arraial da paróquia no mês de setembro. Nos telegramas no ar, lidos por Zecafonso e Jefferson de Souza no alto-falante, era comum ouvir mensagens como essa:
– “Alô, alô, Leonor! Alô, alô, Leonor! Você que se encontra passeando nesse arraial, vestindo saia plissada e blusa de organdi branco, de mangas arredondadas, alguém que muito te ama, oferece a melodia Zíngara. Assinado: Petel”.
Entrava, então, a canção, implorando: “Mas nunca digas, oh Zíngara, que ilusão me espera, qual o meu futuro”. A cigana bonita não podia revelar se a sorte da Leonor seria má ou boa, nem quem ia casar com ela: Petel ou João Camilo, o irmão dele.
É engraçado! O Estevinho não freqüentava os piqueniques no igarapé do V-8, nas Pedreiras. Não sei por que minha memória, infiel e traiçoeira, inventou lembranças da imagem dele, com seu violão, cantando Zíngara na ponte perto da cachoeira. Fecho os olhos e vejo-o nitidamente ao lado das irmãs Dagmar e Cleomar Feitosa, que carmem-mirandavam:“Taí, eu fiz tudo pra você gostar de mim”.
Boêmio inveterado, amante de uma caninha (ninguém é de ferro), em qualquer lugar que chegava, com seu violão debaixo do braço, surgiam logo os pedidos: ”Canta Zíngara”. Não se fazia de rogado. Nunca abandonou a cigana bonita, nem mesmo depois do casamento com Hermínia, a dona Neném, que se enamorou dele, provavelmente, por causa da música, e lhe deu quatro filhos: Ricardo, Vitor, Julio e George.
Cantava de graça, pelo prazer de cantar. Mas Zíngara rendeu-lhe uns trocados, na época em que Manaus não tinha televisão, ar-condicionado ou frigidaire. Foi assim: a Gelomatic abriu uma fábrica de geladeiras em São Paulo, ali onde hoje funciona o SESC-Pompéia. Começou a exportar a geringonça para Manaus, cujo calor infernal vivido por seus então 100.000 habitantes, garantia bom mercado para o produto. Mas, estranhamente, ninguém comprava. E não era por falta de grana.
Acontece que os compradores em potencial não sabiam o que era uma geladeira. Como mostrá-la? Rádios e jornais não permitiam ver a bicha funcionando. Não havia televisão. Foi ai que a Gelomatic teve uma idéia genial: inventou o Programa Gelomatic. Colocava algumas geladeiras em cima de um caminhão e percorria os bairros. Para atrair o público, contratava cantores locais. Era uma grande festa. Era ai que Estevinho entrava com sua cigana bonita.
Entre canção e canção, vinham os ‘comerciais’. O publico subia no palanque improvisado, xeretando tudo: maçaneta cromada, portas, formas de alumínio com alavanca no meio para retirar os cubos de gelo, etc. Faziam fila para beber água gelada ou guaraná. Havia geladeiras à gás, à querosene e à energia elétrica. O velho armário, isolado por placas de cortiça, que armazenava gelo comprado na Fábrica Miranda Corrêa, estava com os dias contados. A modernidade chegava a Manaus.

O seresteiro do rádio

Depois disso, sempre cantando Zingara, Estevinho foi ocupando programas de auditório das rádios Baré, Difusora e Rio-Mar, conquistando o título, junto com Salim Gonçalves, de “seresteiro do rádio planiciário”. Durante o dia, ele se disfarçava de funcionário da Câmara dos Vereadores ou da Assembléia Legislativa, lugar onde exerceu seu trabalho com seriedade. À noite, era fiel ao violão e à cigana bonita.
Se no passado a cigana tivesse lido o seu futuro e desvendado o seu segredo, veria Estevinho, aposentado, sentado na cadeira de balanço em frente a sua casa, na Xavier, dedilhando o violão. Ou jogando dominó, outra paixão sua, apesar da quina. Era invocado com quina. Odiava, sobretudo, a carroça, mas tinha uma justificativa filosófica: “Maninho, quina é mais perigosa do que piranha. Se abrirem quina, mata, maninho”. Quando ganhava, dizia ao perdedor: “Sai, lesão. Pega as latas”.
Apreciava a boa mesa. Não economizava com comida. Era capaz de comprar um tabuleiro de tucumã e, com seus próprios dentes, abrir estradas asfaltadas em mais de trinta caroços. Na sexta-feira, comprou todos os ingredientes para um pato no tucupi. No sábado, de manhã, comprou umas tapioquinhas na Bandeira Branca. Depois, voltou pra casa, sentou na cadeira e “viajou”, como ele dizia quando alguém morria. Foi um ataque fulminante. Morreu sentado.
Mas – isso eu posso garantir – Estevinho não viajou sozinho. Levou com ele um pedacinho de todos nós, do bairro de Aparecida e dessa Manaus-que-se-vai: o bonde, a catraia, a quermesse, os telegramas no ar, os programas de auditório das rádios locais, o dominó, o carrossel da saudade, a saia plissada, a blusa de organdi, a banca de tacacá, os banhos de igarapé, o velocípede velho, os sons, os cheiros…
Essa é a história do amor e do carinho do bairro de Aparecida por seu cantor, aquele que usou sua garganta e sua voz para interpretar aquilo que sentimos. Ontem, na missa de sétimo dia estavam presentes seus amigos: Katya Maria, que está completando 50 anos de carreira, Abílio Farias, Rinaldo Buzagglo, Suely, Celestina e tantos outros. Vai, maninho. Canta Zingara pra São Pedro. E se lá em cima o César Bandeira abrir quina, mata a bicha.

P.S. A família está crescendo. Nasceu mais uma Elisa. Lara Elisa. Os avós paternos estão tão deslumbrados, que asseguram ser a neta muito mais bonita que Théo, o cachorro do tio. Parabéns à família.
Fonte: Diário do Amazonas, 01/4/2007

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