Por Marcia Carmo, BBC Brasil.
Um grupo de especialistas brasileiros e uruguaios vem se dedicando a uma pesquisa inédita: analisar o genoma dos casos de coronavírus na fronteira entre os dois países.
O objetivo é entender como o vírus se comporta na região — afinal, apesar das demarcações territoriais, “não existe fronteira biológica”.
O trabalho começou em junho do ano passado. Reunidos no “Grupo Fronteira”, biólogos, virologistas, bioinformatas, bioquímicos e imunologistas analisam as amostras de registros positivos de covid-19 em Rivera, ao lado de Santana do Livramento, e em Rocha, em frente ao Chuí, no Rio Grande do Sul.
O entendimento dos cientistas é que, devido à forte integração dos moradores na área de fronteira, torna-se natural que o que ocorra no sul do Brasil seja replicado no território uruguaio.
Essa movimentação do vírus acaba sendo motivo de preocupação; casos parecidos já ocorreram em nações vizinhas, como a Colômbia e o Peru, por exemplo.
O grupo multidisciplinar, que envolve a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), do Rio de Janeiro, o Instituto Pasteur, a Universidade da República, o Instituto de Pesquisas Biológicas Clemente Estable (IIBCE) e o Sanatório Americano, de Montevidéu, já realizou a “vigilância epidemiológica” em mais de 100 casos de coronavírus.
Na quinta-feira passada, o grupo informou ter encontrado uma nova variante do vírus Sars-CoV-2, a partir das análises realizadas em janeiro.
“O grupo detectou uma cepa de origem brasileira que predomina atualmente no Rio Grande do Sul, que não gera infecções graves”, diz o texto divulgado pela Universidade da República (Udelar), após a conferência do Grupo Fronteira.
Nos próximos dias, segundo disse à BBC News Brasil o reitor da Udelar, o economista Rodrigo Arim, o rastreamento das cepas do coronavírus será “em tempo real”, a partir da conexão dos laboratórios em todo o país e a participação das entidades do grupo de pesquisa.
“O acompanhamento diário das características genômicas do SARS-CoV-2 é importante porque, através do conhecimento, podem ser geradas políticas públicas na área da saúde”, diz Arim à BBC News Brasil, em entrevista por telefone, de Montevidéu.
Ele diz que os trabalhos na fronteira com o Brasil são possíveis e necessários porque o vínculo é terrestre nas áreas estudadas.
Quando sabemos a variante que está entrando no Uruguai, podemos agir. Não podemos fazer o mesmo tipo de trabalho com nosso outro vizinho, a Argentina, porque nos separa um rio e a fronteira está fechada (em função da pandemia)”, assinala.
Arim diz que o vínculo forte entre Rivera e Santana do Livramento as transforma em “uma única cidade onde o portunhol é o idioma e onde se passa de um lado para o outro cotidianamente”. Segundo ele, é primeira vez que instituições dos dois países se dedicam a rastrear o genoma de um vírus.
Rastreamento ampliado
As cientistas uruguaias Natalia Rego e Tamara Fernández, do Instituto Pasteur de Montevidéu e integrantes do Grupo Fronteira, contam à BBC News Brasil que os trabalhos surgiram quando ocorriam apenas focos de coronavírus no território uruguaio em frente ao Brasil.
Mas em janeiro, o rastreamento foi ampliado e autoridades de saúde detectaram, no Uruguai, casos P.2, “que circulam no sul do Brasil”.
“Das 11 amostras que conseguimos fazer o seguimento do genoma, de um total aproximado de 30 amostras, 5 foram P.2. Foram um caso em Rivera e quatro em Rocha. As outras amostras não tinham, por exemplo, vírus suficiente que nos permitisse fazer o genoma”, disse Fernández.
Os casos, diz ela, eram de uruguaios, praticamente sem sintomas, que tiveram contato com pessoas que já tinham recebido resultado positivo para o coronavírus.
Com informações sobre a mutação do vírus, afirmam as pesquisadoras, é possível avaliar se as medidas preventivas, por exemplo, são adequadas para a etapa da pandemia e diante do potencial de transmissão das cepas encontradas.
Rego e Fernández destacam que, assim como em outras partes do mundo, o número de casos de coronavírus subiu no Uruguai após as festas de fim de ano.
A partir do estudo do genoma dos casos, a ideia era saber também se o incremento estava ligado às cepas registradas no Brasil ou as já existentes no Uruguai.
“Desde o início, o objetivo do grupo era monitorar quais variantes entravam pela fronteira, mas antes eram brotes e a situação passou a ser mais ampla”, diz Rego.
Entendendo a dinâmica do vírus
Atualmente, o grupo, conta ela, está tentando fazer o genoma de 120 amostras somente do departamento de Rocha.
A maior concentração dos trabalhos no local, explicam as cientistas, é justificada pelo fato de ali terem sido registradas quatro variantes P.2, do Sul do Brasil.
“Mesmo com as fronteiras fechadas, a circulação de pessoas, em lugares bilaterais tão integrados, continuou. São cidades irmãs que funcionam como únicas, como é o caso de Santana do Livramento e Rivera”, diz Rego.
Para elas, as pesquisas que o Fronteira realiza permite conhecer a “dinâmica” do vírus, “as famílias do próprio vírus, suas mutações, as formas como ele tenta ou não entrar nas células e até como uma variante pode passar a ser a dominante”. Neste sentido, acrescentam, estudo desse tipo são importantes para a criação das vacinas ou medicamentos para combater o mal.
No caso das pesquisas realizadas até agora pelo Grupo Fronteira, as variantes, nas regiões analisadas, “são iguais as registradas no Brasil”.
As cientistas uruguaias do Instituto Pasteur dizem que na capital do país, Montevidéu, quando os aeroportos estavam abertos, circulavam cepas de outros lugares do mundo e não exatamente como as registradas na fronteira.
Na região de fronteira, antes da P.2, assinalam, foram detectadas as variantes B.1.1.28. e B.1.1.33, também detectadas no Sul brasileiro. A P.2, explicaram, é uma variante da B.1.1.28.
Ao conhecer o genoma, dizem, é possível entender a força da variante e saber, por exemplo, como lembra Fernández, que as novas cepas são mais transmissíveis e que “a mensagem é usar máscara sim, mas que diante da maior transmissão do vírus, elas devem ser usadas e muito bem”.