Texto de Denis Pacheco, com reportagem de Gabriel Guerra e Matheus Souza.
Quando chegou ao Brasil, a Internet surgiu como uma espécie de “terra de ninguém”. Apesar do sentido aparentemente depreciativo da expressão, a então chamada “rede mundial de computadores” era um território descentralizado e não dominado por buscadores de conteúdo. Sites possuíam endereços virtuais difíceis de se memorizar, e as primeiras formas de se comunicar em tempo real envolviam a criação de personas virtuais, incluindo aí nicknames que mascaravam as identidades reais dos usuários.
Quase 30 anos depois, o cenário atual não poderia ser mais diferente. O que era anárquico se tornou por demais regrado, o que pode ser positivo, por exemplo, quando se discute mais ativamente a importância da privacidade e proteção de dados na rede, ou ou insuficiente em função do avanço indiscriminado das notícias falsas (as fake news, em inglês), que explora brechas nos termos de responsabilidade elaborados pelas grandes plataformas privadas.
Com a introdução de redes sociais como o Facebook, que atualmente tem uma base de 127 milhões de usuários mensais no Brasil, a utilização de nomes reais associados à fotos de perfil mudou para sempre a forma como nos apresentamos e nos comportamos na Internet. E a partir dessa mudança, começaram a surgir figuras que hoje disputam nossa atenção e rivalizam até mesmo com o poder das grandes emissoras.
Os chamados influenciadores (ou influencers, em inglês) se tornaram as figuras mais proeminentes das redes sociais e das plataformas de conteúdo, como o YouTube. Se redes como o Twitter, Facebook e Instagram fossem nações, os influenciadores seriam seus mais notáveis embaixadores.
De onde vieram os influenciadores?
“A gente considera influenciador, no discurso ‘comum’, como uma pessoa que tem um grande número de seguidores e influencia pessoas”, explica Pablo Ortellado, professor do curso de Gestão de Políticas Públicas da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP e coordenador do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação (Gpopai).
Para ele, a teoria por trás dos influenciadores começou lá atrás, com a ideia, ainda na época dos meios de comunicação de massa, de que as pessoas não se informavam diretamente com a fonte primária, mas em sistema de duas escalas. “Uma pessoa tinha muita influência em uma determinada comunidade, se informava, formava uma opinião e distribuía entre as pessoas sobre quem ela tinha ascendência”, esclarece.
Armados com diferentes tipos de retórica, os influenciadores se distinguem não apenas pela plataforma ou canal no qual se fazem mais presentes, mas também pelos diferentes usos de linguagem que utilizam para atingir seus públicos. “Tem influenciador que tem linguagens muito simples, que simplesmente se apoia no seu carisma. Outros são influenciadores que se estabelecem porque eles têm algum conhecimento técnico, como esses da área de ciências. Não tem uma regra geral”, classifica Ortellado.
Para Elizabeth Nicolau Saad Corrêa, professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e pesquisadora nas áreas de comunicação e jornalismo digital, existem dois tipos de influenciadores em ação nas redes. “De um lado a gente tem o ‘influencer efetivo’, que é aquela pessoa que tem um conjunto de competências e habilidades num determinado tema e que por conta desse conjunto ela ganha legitimidade para falar sobre ele”, explica ela.
Na sequência, de acordo com a professora, o segundo tipo de influenciador é um fenômeno característico que nasce nas brechas das redes sociais. “São aqueles que são alavancados por meio de quantidade de likes e de ampliação de seguidores, algumas vezes por meio de compra de seguidores”, pontua ao deixar claro que, para enquadrar pessoas nessa categoria, é necessária uma análise cuidadosa.
Ambos os docentes defendem que a presença de influenciadores não é uma novidade, mas seu poder de influência tem se manifestado cada vez mais no campo político. “Acho que a grande novidade é que a situação política atual, pela sua gravidade, está empurrando algumas pessoas que eram influenciadores de outros campos, do entretenimento, da música, se colocarem em questões políticas”, opina Ortellado.
E os diferentes espectros políticos evocam diferenças na linguagem dos influenciadores. Para o professor, os influenciadores de direita exploram mais sentimentos de indignação. “Isso não é regra, mas muitos deles tendem a ser mais raivosos, como o Nando Moura, tendem a explorar mais esse sentimento. Ou isso ou um humor muito ácido, caso do Danilo Gentili”. Já os influenciadores de esquerda apelam para o discurso de solidariedade e empatia.
Para Elizabeth, “desde junho de 2013, (percebemos) essa característica da audiência de buscar identificação com determinados perfis na rede, essa identificação em cima de uma similaridades de valores, ou o ‘vou atrás de quem pensa igual a mim’”.
Memes como discurso e arma política
De 2013, quando o País enfrentou uma grave crise política que culminou no impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016, até 2018, quando a eleição presidencial dividiu dramaticamente o Brasil, a presença dos influenciadores se fez notar cada vez mais.
Em canais do Youtube, páginas do Facebook ou perfis no Twitter, os influenciadores disseminam opiniões pessoais e memes – fragmentos de texto, imagem, vídeos, GIFs relacionados ao humor, que se espalham rapidamente pela rede. O termo é uma referência a um conceito que nasceu a partir de uma teoria ampla de informações culturais criada por Richard Dawkins no livro O Gene Egoísta, de 1976.
Preocupado em entender como esses memes foram utilizados entre 2013 e 2016, o pesquisador Felipe Guaré, da EACH, mapeou em sua dissertação de mestrado, orientada pelo professor Jorge Alberto Silva Machado, as principais matrizes discursivas encontradas especificamente em memes conservadores coletados no Facebook durante o processo de impeachment de Dilma Rousseff, contendo a imagem da ex-presidente.
Para ele, a utilização de memes com humor com intuito político foi marcante o suficiente não só para impactar no destino político do Brasil, como também para acentuar nossa nova relação com a Internet e seus influenciadores.
“O humor é uma ferramenta comunicacional poderosa, que possui inerente a si uma gratificante recompensa ao ouvinte que absorve determinada informação: o riso. Ao abordar temas complexos, ou até temas de baixa motivação, através do riso um indivíduo pode conseguir para si a atenção que ele necessita para que sua mensagem passe adiante”, ilustra Guaré, que, além de pesquisador, é designer gráfico e cartunista.
Na opinião dele, o humor faz uso e reforça estereótipos, além de frequentemente ter um alvo que é vítima de um infortúnio. “Todos estes elementos são úteis em um debate político”, defende.
Apesar da popularização conferida por seu uso na Internet, os memes não são uma fruto exclusivo das redes: para Guaré, um jingle bem utilizado e repetido à exaustão pode ser considerado um meme. “Memes sempre foram utilizados e sempre o serão. O que está mudando é o entendimento de quais são os ambientes mais propícios para que a replicação de um determinado meme ocorra”, acrescenta.
Felipe Neto: Do YouTube para o mundo
Não por acaso, foi através do humor que Felipe Neto Rodrigues Vieira, mais conhecido como Felipe Neto, se tornou um dos mais famosos influenciadores do Brasil. A partir de seu canal no YouTube, que em 2020 conta com mais de 38 milhões de inscritos, o carioca foi alçado a uma fama que ultrapassou as barreiras da plataforma.
Em maio deste ano, Felipe foi o entrevistado do programa Roda Vida, na TV Cultura. Na televisão, ele se manifestou não apenas sobre sua trajetória, mas também sobre seus posicionamentos políticos. Para o youtuber, parte de suas declarações polêmicas do passado que hoje ele considera equivocadas foi motivada “por falta de estudo, profundidade, por elitismo”.
Para Ortellado, esse tipo de afirmação ousada é um sinal de que Felipe Neto “está amadurecendo, envelhecendo, se interessando por política”. Entretanto, o professor destaca que o youtuber mantém uma “vida dupla” em diferentes plataformas. “Uma coisa é o Felipe Neto no YouTube, que é um influenciador na área de entretenimento. E outra coisa é o Felipe Neto no Twitter, onde ele mantém uma postura mais política, mais crítica”.
“Ele começa no YouTube com uma audiência muito jovem, quase que pré adolescente, e esses seguidores foram envelhecendo junto com o próprio Felipe. E a partir de um dado momento na rede, acho que por sentir-se socialmente sensibilizado, se colocar no papel do outro, ele passa a utilizar de ferramentas formais de pesquisa e entendimento da sua audiência”, argumenta a professora Elizabeth.
Fato é que a entrevista de Felipe Neto causou incômodo entre analistas políticos tradicionais da grande imprensa e mesmo da academia, por julgar que o influenciador palpitava em uma seara para a qual não teria competência, no entanto, essa crítica denota incompreensão do espaço político que as mídias sociais abrem para os cidadãos, para o bem ou para o mal.
Nesse sentido, para Ortellado, é possível que esse tipo de mudança aconteça com diversas outras personalidades da Internet. “Acho que isso é uma coisa que pode acontecer também com a Anitta, e outros influenciadores que não vêm da política e estão migrando, manter uma espécie de vida dupla”, teoriza.
A multiplicação das notícias falsas
Hoje mais do que nunca, a credibilidade dos influenciadores tem se estabelecido através da sinceridade com a qual eles se manifestam em seus perfis. Expondo suas próprias dúvidas sobre questões complexas ou espinhosas e se posicionando diante do que consideram injustiças ou mazelas, como o avanço das fake news.
Durante a entrevista no programa Roda Viva, Felipe Neto falou sobre as ferramentas que podem impedir ou diminuir a disseminação de fake news nas redes sociais. Para ele, “a arma mais utilizada é o WhatsApp”, que pertence ao Facebook, mas é um comunicador instantâneo distinto da rede social.
Não é incomum que as definições sobre essas diferentes plataformas sejam confundidas. E o fato de não existir uma definição clara que classifique e separe redes sociais de comunicadores instantâneos tem sido explorado por diversos atores políticos, tanto em campanhas eleitorais, quanto na disseminação de notícias falsas contra adversários ou causas consideradas injustificadas por um grupo ou outro.
Para Caio Machado, advogado formado da USP, com mestrado em Direito Digital pela Universidade Sorbonne, na França, e mestrado em Ciências Aplicadas à Internet na Universidade de Oxford, na Inglaterra, as notícias falsas tomaram novas proporções atualmente graças aos avanços tecnológicos e ao contexto político mundial, com a ascensão de Donald Trump nos EUA em 2016.
Machado, que é pesquisador do Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT), uma associação sem fins lucrativos com integrantes de diversas universidades brasileiras, reforça que era esperado que, em 2018, a desinformação se tornasse uma arma durante as eleições no País.
Nesse cenário, ele enxerga os influenciadores como parte natural desse ecossistema. “Os influencers surgiram com a Internet, nós criamos esses canais em que pessoas conseguem ter a mesma projeção de emissoras ou até mais. E isso não é necessariamente ruim, isso quer dizer que surgiram novas formas de comunicação, pessoas que conseguem digerir e organizar conteúdo, essa explosão de conteúdo”, contextualiza.
Para Machado, o ato dos influenciadores participarem cada vez mais do debate político sinaliza que eles estão exercendo sua cidadania. Entretanto, existe um tipo específico de influenciador que, para o pesquisador, exige nossa vigilância: os ocupantes de cargos públicos.
“Eu vejo problema quando ocupantes de cargos públicos se tornam influencers. No caso do presidente Bolsonaro, (em seu perfil) ele está comentando políticas públicas, e está soltando conteúdo que é do interesse público, mas que se mistura com a sua opinião. Aí temos uma confusão entre público e privado que contamina o debate público”, ilustra o pesquisador ao reforçar que, nesse caso específico, é difícil separar o que é a opinião do presidente e o que é a posição oficial do governo como um todo. Fato que acontece também com o presidente americano Donald Trump, muito ativo no Twitter.
Em ambas as campanhas eleitorais, tanto nos EUA em 2016, quanto no Brasil em 2018, o uso de fake news como forma de descaracterização de adversários foi denunciado, lá pelo escândalo envolvendo a empresa Cambridge Analytica, e aqui por uma reportagem da jornalista Patrícia Campos Mello, na Folha de S. Paulo.
No mar de notícias falsas e uso de bots (programas de computador criados para rodar pela Internet realizando tarefas repetitivas e automatizadas), influenciadores à esquerda e a à direita se moveram como peças um tabuleiro que disputavam a atenção dos eleitores.
Os chamados “influencers contratados”, de acordo com Machado, não apenas podem disseminar fake news, como também “criam teorias da conspiração”. Combater esse tipo de prática envolve um trabalho investigativo minucioso. “E até agora não temos resposta adequada das autoridades quanto a isso”.
E ter respostas adequadas das autoridades é fundamental neste momento crítico, época em que a internet e as redes sociais estão cada vez mais contaminadas pelo avanço das fake news, difundidas também por auto proclamados jornalistas que ganham indesejada e irresponsável repercussão em um país em que há mais smartphones do que habitantes.
Quem vigia os vigilantes?
Na primeira semana de junho deste ano, um projeto de lei contra as fake news (PL 2.630/20) foi retirado da pauta de votação do Senado por ser considerado confuso e colocar em risco a liberdade de expressão. A proposta pretende transformar em crime o uso de contas falsas nas redes sociais ou de robôs sem o conhecimento das plataformas.
Uma das medidas descritas no PL estipulava que contas nas redes sociais tivessem verificação da identidade de seu responsável, exigindo cópias de documentos e até comprovante de endereço. Para Machado, “a medida é ineficaz, pois não percebe e não entende a dinâmica geral da Internet, o que é um erro do passado”.
Em 2017, o pesquisador lembra que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) já havia passado uma resolução proibindo as fake news e uso de bots durante a campanha. Entretanto, “a lei da época não entendia o fenômeno e não sabia como combatê-lo. O novo PL vai fazer a mesma coisa”, sinaliza ele.
Sobre as plataformas e sua responsabilidade diante desse cenário, o advogado argumenta que o problema é primeiramente político. “Passamos a responsabilidade para as plataformas, mas nós não conseguimos ainda definir o que é fake news, o que é rede social, ou mesmo definir o que é desinformação”, afirma.
Mas se não são as plataformas, os influenciadores e nem os ocupantes de cargos públicos que definem o que é e o que não é verdade, quem define?
“A nossa previsão legal é que isso é responsabilidade do Judiciário”, postula Machado ao defender que a questão talvez seja maior do que dar uma definição sobre o que é verdade e o que é mentira. “O nosso grande problema é como a comunicação está sendo usada, se está sendo usada para enganar, sabotar a campanha, difamar alguém”, finaliza.
Ainda assim, especialistas acreditam que são as plataformas que, a priori, podem coibir a disseminação de fake news e retirar discursos ou perfis que incitem crimes do ar.
“Influencer é um fenômeno que já existia, mas eles eram pessoas proeminentes numa comunidade, você não tinha acesso direto, se você não tivesse contato com essa pessoa, ela não te influenciava. O que as mídias sociais fizeram é que agora esses influenciadores estão ali, ainda que você não conheça, não frequente, que não faça parte do seu bairro, sua escola ou local de trabalho. Agora você consegue achá-los sem ter um contato direto”, reitera o professor Ortellado, ao reforçar que foram as plataformas de mídia social que mudaram nosso acesso aos influenciadores e os empoderaram.
Para ler mais sobre o assunto
Para quem estiver interessado em se aprofundar nas questões relacionadas às relações políticas no ambiente das redes sociais, o Jornal da USP indica a leitura de dois textos.
Em Ativismo Político em tempos de Internet (disponível aqui), publicado pela Plataforma Democrática, Sérgio Fausto e Bernardo Sorj, organizadores do documento, dizem que o desafio do ciberativismo é potencializar seu lado virtuoso.
Dentre as conclusões, os pesquisadores refletem: “O mundo virtual é certamente mais democrático, na medida em que criou um espaço mais amplo de expressão e circulação de opiniões, reduzindo os custos de transação comunicacional, facilitando a comunicação e mobilização dos cidadãos. Ao fundir a comunicação on-line/off-line: o novo tecido do ativismo político com a comunicação pessoal subjetiva, deu lugar à profusão de mensagens curtas, onde predominam estados emocionais individuais, o mal-estar e a denúncia, marginalizando o debate informado e construtivo de uma agenda positiva. Se diminuiu o peso relativo dos meios tradicionais, também surgiram no mundo virtual influências de poder real mais nocivas, protegidas pelo anonimato, pela dependência de estruturas de redes sociais orientadas por interesses econômicos privados e pela capacidade do Estado (e de empresas) de obter um volume de informação sobre seus cidadãos que causaria inveja em qualquer regime totalitário. Em resumo, o que temos com os novos meios de comunicação é uma enorme expansão do espaço público ao mesmo tempo em que se perde em substância e especificidade. Ambas as tendências convivem e competem entre si. Construir um espaço público virtual capaz de neutralizar os usos nocivos e potencializar seu lado virtuoso é o grande desafio do ciberativismo que, como mostramos aqui, depende de um esforço de criar soluções que reúnam o mundo online e o off-line, a representação e a participação direta”.
Confira também o trabalho Sobrevivendo nas redes – Guia do Cidadão (disponível aqui), dos autores Bernardo Sorj, Francisco Brito Cruz, Maike Wile dos Santo, Marcio Moretto Ribeiro e Pablo Ortellado.