A Universidade de São Paulo (USP) possui dúzias de excelentes especialistas nas ciências e nas áreas humanas, que conseguem resistir a tendência a transformar a universidade num mercado, só graças ao seu forte impulso vocacional, especialmente dos mais jovens. Mas, seu trabalho é uma ilha no meio a um mar de politicagem, de tramoias financeiras, de repressão e de fascismo enrustido.
Com efeito, essa enorme estrutura universitária, a mais cara da América Latina (cujo orçamento é várias vezes maior que o de alguns estados), cujos altos escalões estiveram sempre ligados ao mais sórdido da politicagem paulista (e, até 2002, da federal), tem como principal meta a formação de medíocres burocratas e tecnocratas ao serviço do lucro das empresas, das tácticas das corporações militares e confessionais, da política externa de chantagem contra países pequenos, dos truques sócio-políticos para desestabilizar a democracia, de formação de políticos que controlem a faxina social, etc.
Para dar um exemplo recente, a USP é a única universidade que contribuiu na campanha de difamação do escritor italiano Cesare Battisti, com o fim de ajudar seu linchamento. “Especialistas” em direito e relações internacionais deram, no total, pelo menos 17 entrevistas à grande mídia, contando versões falsas, distorcidas e absurdas sobre as leis de refúgio e extradição, e até fornecendo dados falsos sobre as estatísticas de asilo no Brasil.
Dos 25 reitores de toda a história da USP, apenas 3 mereceram comentários em centros científicos de qualidade internacional. Em compensação, muitos outros foram (e alguns ainda são) muito apreciados em instituições burocráticas, repressoras ou de negócios, e em organismos internacionais destinados a manter o poder das elites sobre os setores populares. Alguns deles foram grandes ideólogos da ditadura, coordenadores do AESI (ou ASI, um escritório de espionagem, censura, repressão e terrorismo, que operou na USP entre 1972 e 1982), e até assessores “científicos” da Operação Condor, uma coordenadora de sequestro político, tortura e assassinato criada em 1976 por Chile, Argentina e Brasil.
Um desses “heróis” da cultura, duas vezes reitor, foi grande amigo de Mussolini e de vários outros ditadores, dos quais se tornou valioso bajulador. Mas, não quero exagerar. Houve outros, talvez quatro, que eram razoáveis professores, segundo contam os velhos alunos e escreveram alguns artigos com um número pequeno de erros.
A USP ficou menos conhecida por seus excelentes cientistas, humanistas e artistas, que pelas fraudes econômicas, como a célebre importação de material de Israel na década de 90, no meio a um escândalo abafado com tanta violência que hoje as páginas da Internet onde se falava deles já não existem. O responsável da fraude foi poupado e virou “marajá” de uma fábrica privada de diplomas universitários.
Em fim, a história da repressão, da corrupção e do “terror acadêmico” na USP requer muito espaço e tempo, e estou dedicando a esse tema um artigo futuro. Agora quero me concentrar no mais grave e imediato: o que foi denunciado por alguns jornalistas independentes como uma ameaça de golpe de Estado. (Vide)
O Ataque à USP
Em situações de enorme fascistização, um golpe de estado pode ser lançado sem nenhum problema, e ser aplaudido com grande fervor pelas ralés de classe média. Entretanto, quando o país possui, como atualmente o Brasil, uma democracia formal bastante estável, e a situação das classes populares mostra certo progresso em relação com governos anteriores, a necessidade de encontrar consenso para um golpe obriga a estratégias mais refinadas. É evidente para todos a campanha doentia de denuncismo, e até as declarações públicas de dirigentes da ultradireita que fazem autocríticas: “Nos descuidamos ao permitir que este governo avançasse. Devemos voltar ao poder”.
Não é excecional que um golpe de estado aconteça usando como pretexto um fato truculento ocorrido numa Universidade. O golpe de 28 de junho de 1966 na Argentina encontrou um pretexto nas denuncias, durante os 6 meses anteriores, por libelos fascistas, confessionais e militares que consideravam as faculdades guaridas de terroristas e armazém de armas, o que, obviamente, era falso. Após o golpe militar, a gangue fardada invadiu a universidade em 29 de julho, provocando dúzias de vítimas.
O incidente dos estudantes fumando maconha na USP não merece comentário. Apenas prova que a universidade, tanto como o estado está sob o controle de higienistas e “purificadores” do mais velho estilo inquisitorial, que, aliás, usaram este fato como pretexto para colocar o campus sob o terror policial.
Quem é Rodas?
João Grandino Rodas estudou em diversos lugares na década de 60 e seguintes. Nessa época, já não era comum a figura do “acadêmico” caçador de títulos que fazia uma meia dúzia de graduações, vários mestrados e doutorados para ter “conhecimento” de tudo. Isso era um hábito semifeudal que entrou em decadência com a Revolução Industrial no século 19.
Mas, apareceu outro novo estilo de especialista em generalidades. Aquele que tinha vários diplomas que lhe permitissem atuar em diversas áreas, vinculadas com o poder, e com órgãos internacionais de controle social e exploração financeira. A Argentina, América Central e os EEUU têm superlotação destes personagens, úteis para diversas formas de lobby, pressão, barganha, etc..
O mínimo que se poderia esperar de um reitor de uma universidade é ter feito alguma atividade de pesquisa, que não deve confundir-se com fazer discursos, balancetes, proferir sentenças, ou escrever colunas de jornal. Também nos assuntos jurídicos é possível trabalhar com critério científico e, embora isto seja raríssimo, o Brasil tem alguns casos honrosos. No caso de Rodas, sugiro ao leitor ver o curriculum Lattes (vide). Você vai perceber várias condecorações de tipo militar, não apenas brasileiras, mas de alguns outros países da região, mas ficaríamos gratos se você encontrasse algum trabalho profissional relevante, publicado em algum periódico internacionalmente reconhecido.
Mas, essa “modéstia” de não querer parecer um “acadêmico” não é a única virtude do reitor. Vejamos alguns fatos do “curriculum sigiloso” da sua Magnificência.
1. Sendo Diretor da Faculdade de Direito pediu em 22 de agosto de 2007, o assalto da PM àquela faculdade, para expulsar violentamente estudantes e membros dos movimentos sociais.
2. Em janeiro de 2010, baixou portarias sigilosas (de conteúdo desconhecido), como nos melhores tempos do Conselho dos Dez na República de Veneza, em 1335. Essas portarias foram conhecidas muito depois
3. Deu a duas salas os nomes “doadores” privados, que assim compraram a imortalidade (ou quanto a USP durar) por alguns reais. O fato contraria o regimento da USP ou parecer da Consultoria Jurídica, e outras coisas.
4. Transferiu 150.000 livros de bibliotecas locais a um edifício decadente e sem condições de preservar o acervo. Afinal, para que serve ler?
NOTA: Ambos os atos foram revogados pela Congregação da Faculdade. Houve uma grande mobilização que incluiu assembléias de mais de 1000 pessoas e greve de estudantes.
5. Em novembro de 2009 foi nomeado pelo governador ao cargo de reitor. Ele era o segundo colocado, mas sua grande afinidade com os políticos paulistas foi mais forte. (Veja a seção A Turma do Cilício, mais na frente)
Estes fatos são bem conhecidos e o leitor encontrará centenas de locais na Internet onde se fala disso.
Pessoa non Grata
Devido a sua política de “terra arrasada” com seus inimigos, aos que perseguiu incansavelmente dentro da faculdade, foi declarado pessoas non grata pela Faculdade de Direito. Nunca um reitor tinha sido qualificado assim.
Num ato insolente, outros diretores que nada tinham a ver com direito, apoiaram o reitor contra a Faculdade. O fato é normal, já que quase todos os cargos de 1º ou 2º escalão estão ocupados por alcoviteiros dos poderes estaduais. O que sim merece surpresa é a digna reação da Faculdade de Direito, o que abre certa esperança na luta contra o fascismo universitário.
Uma Mãozinha para os Carrascos
Em dezembro 1995, foi criada no Brasil a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) (vide), com base na lei 9140, para investigar as desaparições forçadas e os homicídios cometidos pelo Estado durante a ditadura.
Estas Comissões foram formadas nos países que tinham saído de tiranias sangrentas, para reunir informação sobre as pessoas mortas, torturadas e desaparecidas pelos militares, policiais e seus patrões civis. Em toda a América Latina, salvo na Nicarágua, os governos não tinham interesse em fazer justiça, mas queriam diminuir a pressão feitas pelos familiares das vítimas, e por governos de outros países, para dar alguma resposta sobre os massacres. A primeira dessas comissões foi a CONADEP, instalada na Argentina em 1984, pelo governo de Raul Alfonsín. Entretanto, a classe política, que tinha vivido bajulando e legitimando os crimes dos militares, não queria que o processo se radicalizasse. O jurista e filósofo argentino e “homem forte da CONADEP”, Eduardo R. (falecido em 2005) me disse um dia: “é melhor uma Comissão que encontre 1000 desaparecidos, que deixar os familiares soltos, pois eles poderiam encontrar 30.000”.
Embora nunca ouvi uma confidência tão clara no Brasil, a criação do CEMDP parece ter seguido a mesma linha. O presidente desta comissão em sua 1ª rodada foi Miguel Reale Jr., e entre os outros 6 membros havia um representante dos militares e estava o futuro reitor Rodas, que, naquela encarnação, era membro do MRE. (Vide)
Grandino Rodas interveio no caso do filho da estilista Zuzu Angel, no qual votou contra a culpabilidade da ditadura no assassinato do rapaz. Além disso, indeferiu outros 45 pedidos com diversos pretextos (falta de provas, esgotamento do prazo, etc.). Embora a Comissão conseguiu algumas vitórias até o dia de hoje, os partidários da ditadura colocados nela foram fundamentais para retrasar o processo durante décadas. Talvez, apesar de todos os esforços atuais das vítimas da ditadura, o dia de fazer uma moderada justiça demore muito.
A Turma do Cilício
Em junho e 2009, o Estado de São Paulo entrevistou o candidato a reitor Grandino Rodas. Veja a versão em pdf. aqui. Na terceira coluna da p. A27 da edição do 20/06/2009, o repórter pergunta ao candidato sobre sua tão falada vinculação a Tradição, Família e Propriedade (TFP), e ao Opus Dei, e sua colaboração em ações contra o movimento estudantil durante a ditadura.
Para esclarecer, TFP é uma rede interamericana fundada por famílias neonazistas das altas elites Argentina e Chilena, que recrutam agressivos vândalos das juventudes católicas para difundir o terror entre setores liberais e de esquerda. Nesses dois países, eles já cometeram assassinatos de judeus, jovens de esquerda, gays e outros. No Brasil, ela é mais pacífica e se limita a mensagens de ódio delirantes e a imprecações contra os “pecadores”, incluindo os católicos mais liberais. Já o Opus Dei (vide) é a famigerada prelacia do Vaticano que ficou célebre no filme O Código da Vinci.
Na reportagem da jornalista Renata Cafardo, o professor Rodas desconversou. Disse que como estudante (de direito, filosofia e outras coisas) não teve tempo para fazer política universitária. Como católico diz que não se filiou a nenhum grupo específico, mas esclareceu que respeitava todos eles.
Na mesma entrevista, Rodes mostra simpatia pelo projeto Inclusp, um arremedo de inclusão social inventado na USP para neutralizar a luta por ações afirmativas.
Ações em Andamento
O único membro do governo federal que reagiu à brutalidade “rodante” foi o ministro da Educação, porém de uma maneira fraquíssima, com um comentário sem sentido. Ele disse que não se pode tratar a USP como se fosse a Cracolândia. Então, será que quando a polícia aplica sua política de prende a arrebenta na Cracolândia e não na USP, isso seria admissível?
O Ministério Púbico de São Paulo empreendeu uma ação interessante, motivada por uma denúncia anônima contra a reitoria da USP com base em possível…
“…violação aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, burla ao acesso de cargo mediante concurso público, lesão aos cofres públicos e improbidade administrativa”.
Rodas é o principal investigado, mas ação se desenvolve em sigilo, o que impede que a opinião pública e os setores interessados tenham acesso. (Vide).
O motivo desta acusação é a nomeação de duas pessoas em altos cargos em arrepio aos regulamentos, num cenário que parece ser de clientelismo e nepotismo. Uma delas é o filho da antecessora de Rodas, Suely Vilela, outra especialista em convocação de tropas quebra-cabeças. Mas, sejamos justos, Vilela apenas fazia suas primeiras letras numa ciência na qual Rodas é grande mestre.
O MP acusa ainda Rodas de criar cargos ad hoc para promover amigos, designações ilegais, e acumulações proibidas de cargos públicos localizados em cidades bem distantes.
É importante destacar que estes delitos foram denunciados pela ADUSP e que só tomaram estado público graças à divulgação dos veículos da ADUSP. A grande mídia, é claro, protege estes preclaros heróis.
Proposta
Nos últimos 50 anos, na Europa e na América Hispânica, as universidades livraram fortes batalhas pela democracia, a política social, o secularismo e contra o fascismo, colocando em xeque poderosos governos como os da Itália e da França. No Brasil, a coragem dos funcionários, e de estudantes e professores não pôde, no entanto, conseguir resultados radicais. O problema é que, num país onde o espírito escravista está absolutamente vivo, não há limites para a repressão. E sabemos que, se a repressão é total, a força bruta vence à razão, pois cortará até a última cabeça.
É por isso que as lutas dos estudantes, professores e funcionários devem ser reforçadas com ações de esclarecimento nacional e internacional. Não pode ser exposta a vida de pessoas esclarecidas apenas para matar bactérias.
Este caso, embora seja um modelo de exacerbação, não é único. Nas últimas décadas, as universidades da América Latina deveram lutar contra o terrorismo de estado, contra o obscurantismo, as chacinas intelectuais e (por que não?) às vezes físicas, a corrupção de suas autoridades, o macartismo, a censura, etc. Lembremos, por exemplo, que, durante o massacre aéreo de Israel sobre o Líbano, a USP proibiu a realização de uma palestra pública sobre o problema.
De todo esse histórico de repressão, podem tirar-se algumas lições, que funcionam com efetividade diversa em diferentes casos. Devemos ser cientes que a USP talvez ofereça o caso mais difícil na América Latina para lutar pela democracia universitária. Devemos ser conscientes que, além do ranço escravista, elitista e, sobretudo, racista, dos altos quadros, hoje nos encontramos também com a herança da ditadura. Os reitores que, por sua idade, não puderam ser úteis aos militares, pelo menos foram fiéis discípulos de outros que o foram, como o inesquecível Luís Antônio da Gama e Silva, cuja vocação repressora chegou ao extremo de demitir professores que teriam sido bons colaboradores.
Como se tudo isto fora pouco, se acrescenta o que Paul Samuelson chamou “fascismo de mercado”, ou seja, o neoliberalismo, com sua política darwinista, e a transformação da universidade num balcão de comércio. Mas, o pior, neste caso, é que as autoridades são burocratas polivalentes ao serviço de qualquer causa rendosa, dominados por um obscurantismo que já tinha gerado revoluções universitárias no século 16 (e antes).
Entretanto, eis algumas medidas que foram aplicadas em outros países, em caso de repressão exorbitada, e que tiveram certo sucesso:
1. Redação de um folheto detalhado (neste caso pode ter umas 100 páginas), contando o histórico recente da repressão e descrevendo as figuras dos algozes.
2. Traduzir este relatório às principais línguas e distribuir através das organizações que defendem a democracia nas Universidades, e nos centros culturais. Há várias na Europa e na América Latina.
3. Pedir solidariedade a Uniões Nacionais de Estudantes e de Professores, e a autoridades universitárias progressistas (que, em alguns países existem), bem como às outras universidades brasileiras.
4. Pressionar os organismos internacionais, aos quais os mentores da repressão possam estar filiados, para boicotar estas figuras. Isto é, geralmente, o mais difícil, porque repressores não pertencem a organismos que tenham interesses progressistas. Para grupos de empresários, alianças militares ou políticas, estas pessoas são úteis, e todos seus atos de barbárie mostram sua utilidade.
Finalmente, neste caso, a comunidade da USP deve apoiar, se houver oportunidade, o MP em sua ação contra o Reitor.
Entre estas medidas, deve aparecer sempre um interrogante que todos temos: Isto é apenas uma ação autoritária, típica do espírito neo-fascista, ou é o embrião de um golpe? Não temos suficientes elementos para saber, mas a hipótese deve ser pelo menos considerada. Hoje a situação mundial não é como a de 1964, e embora um golpe de estado seja possível, como prova Honduras, também é verdade que as correntes internacionais desconfiam de novas ditaduras.
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Só para deixar claro, acho que a USP não é lugar para maconha. Entretanto isso não justifica o uso absurdo da força pela PM, nem a desqualificação de todos os estudantes da USP como maconheiros, mimados, de elite e/ou desordeiros. Uma polícia digna do nome existe para proteger o cidadão, e não assedia-lo, ou reprimir os movimentos sociais e políticos. Eu por exemplo sou e fui contra a ocupação da reitoria, entretanto não acho que a violência seja um modo inteligente e democrático para se resolver questões que deveriam ser debatidas em âmbito exclusivamente acadêmico, de forma civilizada e democrática. Acho que a ocupação, realizada por grupos de extrema-esquerda do movimento estudantil foi uma estratégia burra, que somente contribuiu exaltar os ânimos e dificultar o diálogo. Penso porém que a PM de São Paulo é mal formada, corrupta, e, pior, mata mais que todas as polícias do EUA juntas, não tem a miníma formação necessária para atuar na USP, respeitando a autonomia universitária. Lembremos que de cada três assassinatos no Estado, um deles é de autoria da PM. A forma como a desocupação da reitoria aconteceu foi algo grave, algo que deveria deixar as pessoas indignadas, pelo uso desproporcional da força, pelo uso injustificável de recursos públicos para fazer publicidade demagógica e populista, e a forma absurdo como foram tratados os manifestantes (desarmados) que tiveram submetralhadoras apontas para eles. Apontar esse tipo de arma para manifestantes desarmados não é a função de nenhuma polícia decente em nenhum país democrático no mundo.