Por Jeferson Miola.
“Por estos muertos, nuestros muertos
pido castigo.
Para los que de sangre salpicaron la patria
pido castigo.
Para el verdugo que mandó esta muerte
pido castigo.
Para el traidor que ascendió sobre el crimen
pido castigo.
Para el que dio la orden de agonía
pido castigo.
Para los que defendieron este crimen
pido castigo.
No quiero que me den la mano empapada con nuestra sangre
pido castigo.
No los quiero de embajadores
tampoco en su casa tranquilos.
Los quiero ver aquí juzgados
en esta plaza en este sitio.
Quiero castigo,
quiero castigo.”
Extrato de “Los Enemigos”, de Pablo Neruda,
em Canto General, Canto V – La arena traicionada.
em Canto General, Canto V – La arena traicionada.
Em 22 de fevereiro de 2013, a Suprema Corte de Justiça [SCJ] do Uruguai proferiu sentença que fez o país mergulhar de volta no pesadelo do obscurantismo, da impunidade e da injustiça. Quatro dos cinco juízes daquela Corte violentaram a história e a justiça decretando como inconstitucionais os artigos da Lei 18.831 de 2011 que restabeleciam a punibilidade para os crimes cometidos pela ditadura civil-militar uruguaia [1973 a 1985]. Navi Pillay, Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, entende que a decisão contribui para “restabelecer as sombras da impunidade”.
Como todas as transições conservadoras que foram consentidas pelas elites nacionais em cada um dos países das Américas Central e do Sul, no Uruguai a transição negociada para a etapa pós-ditatorial indultou criminosos através da Lei da Caducidade, de 1986.
O diversificado léxico empregado pelas classes dominantes de cada país – anistia, “olvido”, indulto, obediência devida, caducidade, etc – em quaisquer dos casos não oculta o objetivo essencial e comum: proteger as maquinarias de terror empregadas no desenvolvimento capitalista dependente e subordinado aos EUA.
A Lei 18.831, entretanto, restituiu a “pretensão punitiva do Estado” que havia sido sequestrada pela Lei da Caducidade e que, por isso, impedia o julgamento dos crimes de terrorismo de Estado. A Lei reconheceu, ainda, aqueles crimes como de lesa humanidade, em linha com a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes Contra a Humanidade, da qual o Uruguai é signatário.
De acordo com o direito internacional humanitário – que por estar incrustrado no ordenamento jurídico interno do Uruguai, deve ser obedecido pelo país -, os crimes de lesa humanidade são imprescritíveis e, portanto, puníveis a qualquer tempo. É essa base jurídica moderna que permitiria, na improvável hipótese de encontrar-se algum nazista vivo nos dias atuais, julgá-lo pelos crimes praticados, mesmo depois de 70 anos do final da Segunda Guerra.
A decisão da Suprema Corte do Uruguai não pode ser tomada como um episódio isolado. Ainda neste mês de fevereiro, o tribunal declarou inconstitucional o imposto sobre a concentração de terras, decisão que beneficia uma minoria privilegiada de 1.200 pessoas proprietárias de quase 40% da superfície agrícola do país e que compromete uma estratégia de distribuição de renda e de justiça social.
Há poucos dias, numa arbitrária decisão administrativa, a Corte transladou a juíza Mariana Mota do Juizado Penal para o Cível – se suspeita que devido à atuação técnica independente da juíza Mariana na investigação de mais de 50 violações dos direitos humanos cometidas na ditadura.
Para entender essa delicada situação, é importante identificar o nexo entre a origem social e política dos juízes e a natureza das decisões conservadoras da Corte. No Uruguai, o acesso à carreira jurídica não se dá por concurso público, mas sim por indicações pessoais e discricionárias. A nomeação dos juízes da Suprema Corte é feita pela Assembléia Nacional mediante 2/3 de votos favoráveis, o que obriga a arranjos e concessões políticas desfavoráveis mesmo para os partidos que ocupam eventualmente a maioria simples do Parlamento. Dos atuais cinco juízes da Suprema Corte, quatro deles construíram suas carreiras no período ditatorial.
Até mesmo uma consciência pueril consegue entender a razão para as férreas resistências dos setores conservadores dos países da região ao direito à memória, à verdade, à justiça e à reparação. As ditaduras civis-militares instaladas nas décadas de 1960 a 1980 viabilizaram os principais conglomerados industriais, comerciais, financeiros e especialmente as oligarquias agrícolas, agrárias e midiáticas que exercem enorme influência política e decisivo controle de áreas-chave do aparelho de Estado ainda na atualidade. O Judiciário, assim como outras instituições políticas, está na órbita dessa influência e controle.
Existe uma abismal dissonância entre o atual estágio de desenvolvimento político, cultural e social das nossas sociedades e as estruturas de Estado erigidas no passado. Os atuais governos herdaram estruturas que emperram a realização dos projetos democrático-populares. É uma lógica idiossincrática que segue beneficiando sobretudo os poderes midiático, corporativo-empresarial, financeiro, legislativo e judiciário – que deveriam ser profundamente reformados, à luz de uma visão positiva sobre o progresso social. É notável a coordenação dos monopólios da mídia, o Poder Judiciário, certos segmentos empresariais e partidos políticos de direita no engendramento de iniciativas contra os governos progressistas da região.
Setores majoritários do Poder Judiciário estão distanciados da modernidade e alheios às conquistas iluministas do século 18, tornando-o uma instituição embolorada, presa a ritos obsoletos e a um hermetismo que mal consegue disfarçar seu reacionarismo e seu caráter elitista. Da suntuosidade dos seus edifícios, da pomposidade das suas liturgias e da solenidade arrogante de sentenças recheadas com expressões em latim, francês e italiano, emanam violências distintas na forma, mas igualmente mortíferas para a democracia e para a história, como o foram os crimes de terrorismo de Estado.
Apesar das gigantescas dificuldades, esse não pode ser considerado, em absoluto, um cenário de derrota da democracia. O Estado uruguaio, através do seu governo, e fortalecendo sua soberania altiva, pode reivindicar a hieraquia dos tratados internacionais em matéria humanitária sobre a legislação doméstica, visto ser signatário de convenções e tratados do gênero.
Além disso, pode ser evocada a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o caso Gelman (*), que em 2011 sentenciou o Estado uruguaio a reconhecer de forma pública o cometimento de crime de terrorismo de Estado, obrigando-o ainda a garantir que a Lei da Caducidade não obstacularize a investigação e condenação dos crimes praticados durante a ditadura.
A obstrução do direito à verdade, à memória, à justica e à reparação é um obstáculo real à afirmação democrática e à passagem ao futuro. Como diz Neruda, o poeta revolucionário e humanista: “por estos muertos”, por “nuestros muertos, pido castigo”!
Ver os torturadores “en sus casas tranquilos” é uma inaceitável ofensa moral e ética a toda a humanidade. É necessário vê-los “aquí juzgados, en esta plaza, en este sitio”.
(*) Ação impetrada por Juan Gelman e sua neta Macarena Gelman na CIDH. A mãe de Macarena, Maria Cláudia Garcia de Gelman, após parir a filha num centro de detenção clandestino em Montevidéu, foi morta e a criança ilegalmente doada,vindo a conhecer sua família biológica somente aos 23 anos de idade. O pai de Macarena, Marcelo Gelman, foi torturado e morto no Centro Automotores Orletti, em Buenos Aires. Ambos haviam sido presos no contexto da Operação Condor.
– Jeferson Miola foi Coordenador Executivo das edições do Fórum Social Mundial realizadas em Porto Alegre, Brasil, nos anos de 2001 a 2005.
Foto: @gustyea66