Por Cândido Grzybowski*
Nesta minha crônica semanal decidi compartir indagações que me fiz durante os três dias de um importantíssimo seminário de caráter nacional promovido pela ABONG e parceiros, em São Paulo, na semana que passou. O seminário “A agenda das resistências e as alternativas para o Brasil: um olhar desde a sociedade civil” contou com cerca de 70 participantes de movimentos sociais, organizações e redes. Dada a conjuntura de crise e de um horizonte turvo, encontros assim são oportunidades fundamentais para compartir análises e angústias, fortalecer-se mutuamente e buscar saídas. Afinal, como disse o ex-governador e ex-ministro Olívio Dutra – convidado para integrar uma mesa denominada aula pública do evento, realizada na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, no dia 17, quinta feira, à noite: “A política é construir o bem comum de forma compartilhada”.
O seminário, mesmo relativamente pequeno, foi expressiva amostra da nossa diversidade social e organizativa. Foi, sobretudo, um retrato das questões e desafios que grassam no seio da sociedade civil diante de um governo golpista, da crise em que estamos mergulhados e das urgências e resistências cidadãs que tal situação impõe. Destaco aqui o modo como o desmonte de direitos e de políticas públicas atinge os diferentes segmentos sociais, de feministas a movimentos indígenas, de catadores e catadoras de lixo a trabalhadoras e trabalhadores industriais sindicalizados, de sem terra e sem teto a organizações de agricultura orgânica, dos e das “invisíveis” portadores de deficiência física aos que sofrem o estigma por ser afetados pela AIDS, dos e das ativistas de direitos humanos aos da comunicação, de representantes de pastorais sociais às organizações de educação popular e cidadania ativa. Enfim, algo do complexo e, apesar da crise, ainda vibrante mundo da sociedade civil organizada brasileira.
Não vou reproduzir relatos do “estado” das urgências e resistências. Um documento síntese será produzido pelos organizadores. Destaco o que me pareceu ser o mais importante politicamente, olhando para o evento em seu conjunto. Num ambiente de cumplicidades implícitas e de respeito mútuo, o seminário foi um momento de afirmação das especificidades, das urgências, das resistências em curso e, em particular, da importância das lutas diante do quadro. Foi feito um esforço para identificar convergências e divergências, louvável sem dúvida, mas difícil diante de urgências que a luta específica exige.
Aqui chego ao ponto que gostaria de destacar. No seio da sociedade civil, estamos tendo dificuldades explícitas para pensar com ousadia e profundidade diante de uma monumental crise de múltiplas facetas. Estamos resistindo bravamente, sem dúvida. Mas estamos sem estratégia de mais longo prazo. Apesar do seminário ter apontado para a busca de alternativas em termos de comuns e bem viver, estes não passaram de noções vagas, bem aceitas mas pouco produtivas para pensar estrategicamente e transformar práticas de resistência em pilares teóricos e políticos que inspiram na construção de imaginários e estratégias para ir construindo caminhos possíveis alternativas, desde aqui e agora. O seminário ficou contaminado pela conjuntura mais imediata, as eleições de 2018, um fantasma não devidamente enfrentado em nossos debates de cidadania.
As “ausências” no debate entre nós são reveladoras de dificuldades, no meu modo de ver. Não discutimos a questão fundamental do bem comum natural, da integridade do planeta e dos limites que já transpusemos, e da incontornável questão de rever os fundamentos da nossa relação com a biosfera, em termos éticos, científicos, técnicos, econômicos e de consumo. Estamos em crise conjuntural, mas, por trás, uma crise estrutural profunda corrói tudo. Do ponto de vista antropológico, estamos diante de uma crise dos pilares da civilização da modernidade capitalista, eurocêntrica, machista e racista, insustentável em termos ecológicos, em que o mundo como um todo interdependente está assentado. Não ter isto no horizonte é vedar os olhos sobre a relação entre o conjuntural e o estrutural. Ou seja, o conjuntural é inevitável, mas para enfrentá-lo precisamos de uma visão transformadora de longo prazo, sem o que estaremos enxugando gelo. O capitalismo está nos levando à barbárie para manter a sua acumulação sem limites. Ou ele implode ou a humanidade e o planeta implodem. Isto está atrás da conjuntura que enfrentamos no Brasil, parte fundamental deste planeta e humanidade interdependentes. Tais questões não podemos ignorar ou deixar para depois. São elas que podem iluminar o fazer no presente. Difícil é, mas necessário!
Sendo mais concreto, o que mais faltou no seminário foi uma análise crítica do que fizemos até aqui e dos desafios urgentes que a democracia, como método de transformação política, exige de nós. Precisamos resgatar uma visão utópica e estratégica da democracia, como valor e projeto para tornar nossas estratégias de resistência fecundas em termos de criar caminhos de transição para outros mundos. A fumaça da conjuntura, com os nossos políticos medíocres, pode fazer estragos e até aprofundar a barbárie que já nos ronda no campo e nas cidades, mas não pode levar-nos a limitar a análise do futuro às possibilidades eleitorais de 2018. Sem dúvida, a agenda nos impõe uma tarefa de cidadania imediata. No entanto, reduzir nossos sonhos é renunciar a viver e ao nosso intransferível papel como cidadania ativa: ser instituinte constituinte da própria democracia.
Rio, 21/08/17
*Sociólogo, do Ibase.
Foto: Sebastião Salgado
Fonte: http://ibase.br/pt/destaques/urgencias_e_resistencias/