Uma Rosa vermelha para estes tempos difíceis[1]

Por Rita Coitinho, para Desacato.info.

“Acabou a embriaguez. Acabou a tempestade patriótica nas ruas (…) Na atmosfera desencantada destes dias pálidos é outro o coro que se ouve: o grito rouco dos abutres e das hienas nos campos de batalha.(…) Os negócios prosperam sobre as ruínas. As cidades se transformam em montes de escombros, (…)populações inteiras em tropas de mendigos (…). O direito dos povos, (…) a autoridade suprema, tudo está em pedaços (…)”.

Em menos de dois anos acabou-se o pouco que se tinha de dignidade. Acabaram-se os financiamentos estudantis, os projetos de habitação popular, as obras de infraestrutura e restauro do patrimônio histórico, o dinheiro do pré-sal como “poupança para o futuro”, a cooperação científica, os projetos de integração profunda e duradora, os estaleiros navais, a euforia do petróleo, os projetos de reforma agrária e financiamento rural para a pequena agricultura, a esperança de mais, mais, mais direitos. O texto acima é de Rosa Luxemburgo. É sobre a hecatombe da guerra mundial, mas, mudadas algumas figuras de linguagem, poderia ser sobre o Brasil. Há muitas maneiras de se destruir um povo inteiro para garantir os negócios de uns poucos. Uma delas é a guerra. Outra são as ditaduras e golpes de Estado, que não deixam de ser, à sua maneira, guerras contra o povo.

A situação em que o Brasil se encontra é grave. Os Estados em falência já não pagam o salário de seus servidores e já não garantem os serviços básicos. O desemprego amplia-se, a renda cai. Em pouco tempo o comércio verá as consequências terríveis da contração forçada da economia para garantir os pagamentos de juros à banca financeira internacional. O patrimônio nacional – Petrobrás, Embraer, Correios etc. etc. etc. – está sendo dilapidado sem cerimônias, sem meias palavras e sem resistência.

“E no âmago deste sabá de feiticeira produziu-se uma catástrofe de alcance mundial: a capitulação da social-democracia internacional. Seria para o proletariado o cúmulo da loucura alimentar ilusões quanto a isto ou encobrir esta catástrofe: é o pior que lhe poderia acontecer. (…) ‘O democrata’, diz Marx, ‘sai da derrota mais vergonhosa tão puro e inocente como quando começou a luta: com a convicção renovada de que deverá vencer, não porque ele e seu partido consideram que devem revisar suas posições mas, ao contrário, porque espera que as condições mudem em seu favor’”.

Outra vez o texto de Rosa Luxemburgo, mas mudadas algumas palavras (“social-democracia internacional” por “nacional”, por exemplo), poderíamos ser nós mesmos… Enquanto o golpe vai a galope, apresentando-nos a cada dia uma “surpresa”, como a intervenção tabajara no Rio de Janeiro e, daqui a um mês, o fim do bolsa-família – o que equivale a matar de fome milhares de brasileiros -, os democratas seguem puros e inocentes, com a convicção renovada de que irão vencer, porque esperam que as condições mudem a seu favor. Entoam os cânticos de suas candidaturas, divulgam seus retratos sorridentes.

Quantos exemplos históricos mais são necessários para que aprendamos? “Socialismo ou Barbárie” é o subtítulo do texto de Rosa que aqui copio em parte. A barbárie avança sem resistência. É urgente a construção de uma alternativa menos inocente. A ordem social decadente já não pode mais ser remedida. A cada tentativa de composição levaremos novo golpe. A ocupação de uma das sedes da rede Goebbels por mulheres no dia 08 de março enche-nos de esperanças, pois demonstra a capacidade de organização e disposição de luta de alguns movimentos sociais. Mas é muito pouco. É preciso que esse espírito se espalhe, é preciso resistir, organizar e avançar.

“Na história, o socialismo é o primeiro movimento popular que tem como objetivo, e que para tal foi encarregado pela história, de dar à ação social dos homens [e mulheres] um sentido consciente, de introduzir na história um pensamento metódico e, a partir daí, uma vontade livre. Eis porque Friedrich Engels disse que a vitória definitiva do proletariado socialista constitui um salto que faz passar a humanidade do reino animal ao reino da liberdade. Mas este ‘salto’ não é alheio às leis de bronze da história, ele está ligado aos milhares de elos precedentes da evolução, uma evolução dolorosa e bastante lenta. E este salto não será realizado se, do conjunto de premissas materiais acumuladas pela evolução, não surge a centelha da vontade consciente da grande massa popular. A vitória do socialismo não cairá do céu como obra do destino, esta vitória só pode ser conquistada graças a uma longa série de enfrentamentos entregue às forças antigas e novas, enfrentamentos no curso dos quais o proletariado internacional faz sua aprendizagem sob a direção da social-democracia e procura tomar em suas mãos seu próprio destino, assumir o leme da vida social. Ele que era o joguete passivo de sua história procura se tornar o piloto lúcido.

“Friedrich Engels disse um dia: ‘A sociedade burguesa se encontra diante de um dilema: ou avanço para o socialismo ou recaída na barbárie.’ Mas o que significa ‘recaída na barbárie’ no grau de civilização que conhecemos hoje (…)? Até hoje nós temos lido estas palavras sem refletir sobre elas e nós as temos repetido sem perceber sua terrível gravidade. Lancemos um olhar ao nosso redor neste momento e nós compreenderemos o que significa a recaída da sociedade burguesa na barbárie. A vitória do imperialismo leva ao aniquilamento da civilização – esporadicamente durante o curso da guerra moderna e definitivamente se o período de guerras mundiais que se inicia agora vier a prosseguir sem entraves até suas últimas consequências. É exatamente o que Friedrich Engels havia predito, uma geração antes de nós, há quarenta anos. Nós estamos colocados hoje diante desta escolha: ou bem o triunfo do imperialismo e a decadência de toda a civilização tendo como consequências, como na Roma antiga, o despovoamento, a desolação, a degenerescência, um grande cemitério; ou bem vitória do socialismo, ou seja, da luta consciente do proletariado internacional contra o imperialismo e contra seu método de ação: a guerra. Eis aí o dilema da história do mundo, sua alternativa de ferro, sua balança no ponto de equilíbrio esperando a decisão do proletariado consciente. O proletariado deve jogar resolutamente na balança a sua espada do combate revolucionário: o futuro da civilização e da humanidade dependem disto. No curso desta guerra o imperialismo teve a vitória. Fazendo pesar a espada sangrenta do assassinato dos povos ele fez pender a balança para o lado do abismo, da desolação e da vergonha. Todo este fardo de vergonha e desolação só será contrabalançado se, do meio desta guerra, nós soubermos retirar a lição que ela contém, se o proletariado conseguir se reorganizar e se ele parar de representar o papel de um escravo manipulado pelas classes dirigentes para se tornar o dono de seu próprio destino. (…)

“Mas nós não estamos perdidos e nós venceremos, desde que nós não tenhamos desaprendido a aprender. E se o guia atual do proletariado, a social-democracia [para nós, os partidos de esquerda], não mais souber aprender, então ela perecerá para dar lugar aos homens [e mulheres] que estarão à altura de um mundo novo.”

É fundamental, nesses tempos difíceis, que não tenhamos desaprendido a aprender…

[1] Todas as citações são do folheto “A crise da social-democracia – Socialismo ou Barbárie?”, publicado por Rosa Luxemburgo sob o pseudônimo Junius. O texto pode ser encontrado em versão digital em https://www.marxists.org/portugues/luxemburgo/1915/junius/cap01.htm#r1

 

 

 

[avatar user=”Rita Coitinho” size=”thumbnail” align=”left” link=”attachment” target=”_blank” /]Rita Coitinho é socióloga, doutoranda em geografia e membro do Conselho Consultivo do Cebrapaz.

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