Na realidade, tudo começara no terraço daquela casa desocupada na Rua Jeremias.
O dinheiro era pouco, muita era a disposição. Algumas latas de sardinha Coqueiro (não sei por que a insistência dele com aquela marca de sardinha), uma garrafa de cachaça adoçada e colorida com Q-Suco de morango. E haja “sangue-de-onça”.
Não sei como bebiam aquela geringonça. No entanto, era do que dispunham. Depois, lá para as tantas, sempre aparecia o Aires com um cigarrinho de maconha para rebater os efeitos colaterais. Foi assim que eu descobri Marx e Engels. Foi assim, depois da terceira dose, que ele retirou os livros de baixo do sovaco e fez as apresentações: “Isso aqui vai mudar a sua vida!”. É claro que não levei a sério. Nunca o levara a sério, diga-se de passagem. Talvez eu ainda não soubesse que a revolução se daria através de lumpem-proletariado.
Mas quem se importava com isso, naqueles dias de sol. Havia todo um universo a ser descoberto e explorado além da Rua Jeremias. Isso sem falar nas xerecas das meninas que começavam a encabelar e emitir um cheiro diferente (quem sabe não era essa tal de progesterona).
Assim, quem poderia garantir que aqueles livros velhos e remendados seriam lidos. A vida era muito mais animada e interessante. Guardei-os com cuidado, porém. Não iria fazer a desfeita de extraviar ou avariar os livros. O cara demonstrara a maior consideração. É bem verdade que comera as sardinhas com denodo e tomara o sangue-de-onça como quem bebe o néctar dos deuses. Àquela hora da madrugada, a fome se fazia sentir. Logo logo o dia amanheceria e a rotina da rua seria refeita.
Marx e Engels que me aguardassem. Ainda teríamos a vida inteira pela frente para nos conhecermos.
Recife 2006.