Em meio a um cenário protagonizado por homens, a história da compositora é invisibilizada
Por Rani de Mendonça
Talvez com o nome “Frevo nº 1 do Vassourinhas” você não se recorde, mas se já experimentou ir atrás de algum bloco na capital pernambucana ou em Olinda durante o carnaval, sabe bem que música é esta. É aquela canção que quando a orquestra começa a tocar “Pã rãn rãn rãn rãn rãn rãn“, ninguém ficara parado. O que era bastante desconhecido é que esta marcha de carnaval em sua versão original tinha letra e foi escrita por uma mulher negra.
Joana Batista Ramos, junto com Matias da Rocha, criou um dos hinos do Carnaval pernambucano, em 6 de janeiro de 1909. Embora existam depoimentos de ex-participantes do Clube Carnavalesco Misto Vassourinhas de que a Marcha foi escrita na mesma data de sua fundação, um documento de 1949, descoberto por Evandro Rabello no 2º Cartório de Registro Especial de Títulos e Documentos, revela, numa declaração de Joana Batista, a autoria e a data da composição.
“A marcha intitulada Vassourinhas pertencente ao Clube Carna Mixto Vassourinhas. Foi composta por mim e o maestro Matias da Rocha no dia 6 de janeiro de 1909, no Arrabalde de Beberibe em um Mocambo de frente à estação do Porto da Madeira, dito mocambo, hoje é uma casa moderna”, diz o documento. Em 18 de novembro de 1910, os dois cederam para o Clube os direitos autorais da música, por três mil reis, de acordo com recibo assinado por eles, localizado no acervo do clube carnavalesco.
Embora escrita em 1909, a Marcha nº 1, só teve sua primeira gravação, pela Continental, em 1945, com melodia e letra interpretada por Déo e Castro Barbosa. O pouco que se sabe sobre esta mulher compositora, que talvez seja filha de escravos, é que ela faleceu em 1982, com 74 anos. O seu atestado de óbito foi encontrado pela equipe do documentário “Joana: se essa marcha fosse minha”, que pretende revelar a história completa de quem foi e o que fez Joana.
O filme, que ainda não tem previsão de lançamento, é dirigido pela produtora cultural Tactiana Braga e os jornalistas Camerino Neto e Maíra Brandão e começou a ser filmado ainda com poucas informações sobre Joana. O único documento público que comprovava a sua existência era o recibo de venda dos direitos autorais da música para o tradicional Clube Vassourinhas. Mas, agora é sabido que Joana era doméstica e que teve três filhos com Amaro Vieira Ramos. Já foram feitas entrevistas com familiares dela, como netos e bisnetos, além de artistas e militantes que defendem a visibilidade das mulheres negras, como Vera Baroni, advogada com especialização em Direitos Humanos e Saúde Coletiva, fundadora da rede de Mulheres de Terreiro de Pernambuco. A película ainda conta com participações das cantoras Fláira Ferro, Gabi da Pele Preta e Isaar França, todas pernambucanas.
A trajetória
Depois de mais de 100 anos de escrita, a música já passou por diversas modificações até chegar a famosa de hoje. Em 1945, o compositor e cantor Almirante (Henrique Foréis Domingues) descobriu que a letra da canção de roda se encaixava corretamente na de Joana Batista Ramos e Mathias da Rocha. Usou a segunda estrofe da canção de roda e escreveu mais duas outras e gravou com o nome de Frevo Número Um e um subtítulo – Marcha Regresso do Clube Vassourinhas.
Primeira versão escrita por Joana:
Somos nós os Vassourinhas
Todos nós em borbotão
Vamos varrer a cidade
Ah, isto não! Ah, isto não!
Tu bem sabes o compromisso
Ah, isto não! Não pode ser
A mostrar nossas insígnias
E a cidade se varrer
Ah! Reparem meus senhores
O pai desse pessoal
Que nos faz sair à rua
Dando viva ao carnaval
Versão de 1945:
Se esta rua fosse minha
Eu mandava ladrilhar
Com pedrinhas de brilhante
Para meu bem passear
A tristeza, Vassourinhas
Invadiu meu coração
Ao pensar que talvez nunca
Nunca mais te veja, não
A saudade, Vassourinhas
Enche d’água os olhos meus
Que tristeza, Vassourinhas
Neste derradeiro adeus