Por Caroline Oliveira.
Nesta segunda-feira, 15 de março, a Guerra da Síria, um conflito que iniciou a partir das revoltas populares por reformas democráticas que integraram o movimento insurgente conhecido como Primavera Árabe, em 2011, completa 10 anos. De lá para cá, o Brasil, ainda que não seja o principal destino dos sírios, já recebeu 11.231 refugiados, de acordo com dados do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare). Entre eles, encontra-se Fátima Ismail, que saiu de Aleppo, uma das cidades mais afetadas pelo conflito armado, na região norte da Síria, e chegou ao Brasil há pouco mais de seis anos.
À época grávida, com um filho de um ano, outros três mais velhos e seu marido, Ismail afirma que, quando saiu da Síria, logo no início do conflito, se dirigiu primeiramente para o país vizinho Jordânia. Lá, ela não imaginava que a situação iria perdurar uma década. “Eu não imaginava essa guerra, até hoje, piorando, cada dia pior. A gente ainda não entendeu o porquê. Hoje eu estou longe da família. A gente às vezes pensa que nunca vai voltar, que irá continuar a vida aqui. Cada vez uma notícia horrível. Cada vez tem coisa pior. Não está melhorando. Já passaram 10 anos, e se perdeu um monte de coisa”.
Ainda que a situação no Brasil não possa ser comparada à da Guerra na Síria, a família de Ismail também passa por dificuldades no Brasil. Segundo a cidadã síria, os sete membros de sua família têm acesso a serviços básicos que raramente teriam no país árabe no atual contexto, como internet, água e luz. No Brasil, “tem coisa boa, mas [só] com o ‘bem-vindo’ não dá para fazer nada, não é o suficiente. A gente agradece, mas o refugiado sofre bastante. A vida não está fácil aqui”, afirma.
Ao chegar na cidade de São Paulo, ela ficou dois anos sem emprego e até hoje tem dificuldades para se comunicar devido à barreira linguística. Foi com o auxílio da organização social Migraflix, que ajuda imigrantes a empreender, e com um curso da Acnur, a agência da ONU para refugiados, que Ismail passou a vender comidas típicas da Síria sob encomenda. No entanto, com a pandemia de covid-19, Ismail precisou suspender todas as entregas, que agora têm sido retomadas a passos lentos.
Política brasileira para refugiados
A chegada de Ismail ao Brasil coincide com as mudanças na política de recebimento de refugiados instauradas pelo mandato do ex-presidente Michel Temer (2016-2018). O então ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, suspendeu as negociações com a União Europeia para receber famílias refugiadas da Síria. Até então, o governo de Dilma Rousseff (2011-2016) buscava recursos internacionais para abrigar cerca de 100 mil sírios que fugiam do conflito.
Daí em diante, a política brasileira só piorou. Com o capitão reformado Jair Bolsonaro na Presidência do Brasil, houve rapidamente a revogação do Pacto Global para uma Migração Segura, Ordenada e Regular (GCM), da Organização das Nações Unidas (ONU). Um ano depois, foi emitida a Portaria 666, regulando a aplicação da Lei da Imigração de 2017, que passou a disciplinar a deportação sumária de imigrantes suspeitos de crime de terrorismo ou tráfico de drogas. Na época, houve protestos acusando a decisão de uma tentativa de criminalizar os refugiados.
O recrudescimento dos obstáculos produzidos pelos últimos governos se somam às dificuldades intrínsecas à situação de refúgio: a procura por emprego, o choque cultural, a barreira linguística, o acesso a todos os documentos necessários, moradia, saúde e educação.
A ofensiva, no entanto, também se dá também no discurso. Em 2015, aproximadamente um ano depois de Ismail chegar ao Brasil, Bolsonaro se referiu aos refugiados sírios como a “escória do mundo”, ao jornal Opção, de Goiás, dando o tom de sua política migratória a ser concretizada anos depois.
Para Bruna Kadletz, fundadora e presidente da organização Círculos de Hospitalidade, destinada a refugiados, esse tipo de “linguagem e linha de pensamento normalizam o confinamento de tais populações em zonas de exclusão, seja nas periferias de sociedades, em campos de refugiados ou em centros de detenção”, afirmou em um artigo escrito ao site MigraMundo.
A imigrante Rawa Alsagheer, de 24 anos, está no Brasil desde 2015. Para a jovem, não há respeito pelo refugiado nem mesmo no processo de encaminhamento de refúgio. “Acessa só documento, SUS e educação, só que além disso o refugiado tem que manter sua vida inteira. Não tem casas para te receber, não tem campos. Nem no aeroporto não tem nada para encaminhar no processo de refúgio”, conta.
O Brasil foi para Alsagheer o segundo refúgio. Seu pai nasceu na Palestina, mas em 1948 (ano conhecido como o Nakba, “catástrofe” ou “desastre”, quando o Estado de Israel foi fundado) teve que se refugiar na Síria, onde Alsagheer nasceu como refugiada palestina e se criou até os 17 anos. “Também o refúgio e a imigração são uma luta por direitos, segurança, respeito, antifascismo, antirracismo. Tudo isso entra nessa luta de refúgio e imigração”, diz a jovem.
No quarto ano de guerra na Síria, quando Alsagheer já tinha perdido dois primos e um tio, todos mortos no conflito, ela e o restante de sua família, que estava espalhada pelo mundo, entre Turquia, Egito e Malásia, decidiram se reunir e formar uma nova vida juntos no Brasil.
Assim como Fátima Ismail, Rawa Alsagheer nunca imaginou que a guerra completaria uma década. “Quando começou, todo mundo falava que em um mês ia acabar. São 10 anos, e nunca está acabando. E por que nunca está acabando? Porque tem muitas mãos entre essa guerra, não só o governo, muitas mãos de fora mexendo para destruir esse país, esse povo. Nunca imaginamos que iria acontecer isso, esse tamanho de destruição, de caos, de perdas das pessoas, de mortes, de fome”, lamenta Alsagheer.
Guerra da Síria
Entender como e porque a guerra se estende por tanto tempo e chegou a esses números estarrecedores não é uma tarefa fácil. Se no começo do conflito, em março de 2011, os ventos foram de democratização do país, assim como em boa parte da região com a Primavera Árabe, hoje é palco de diversos interesses conflitantes – o petróleo é apenas um deles -, que envolvem facções e outros países, como Estados Unidos, Qatar, Arábia Saudita, Turquia, Jordânia, Líbano, China e Rússia.
Em países como a Líbia e a Síria, onde houve movimentos da Primavera Árabe, os governos não foram alinhados às potências ocidentais. Segundo Marcelo Buzetto, doutor em Ciências Sociais e especialista em geopolítica do Oriente Médio, os protestos legítimos por mais democracia “foram sequestrados pelo projeto de guerra híbrida dos Estados Unidos, que via no presidente sírio Bashar Al-Assad um inimigo”, afirmou ao Brasil de Fato, em uma reportagem sobre os 10 anos da Primavera Árabe.
“O que houve foi uma intervenção do imperialismo estadunidense e europeu, com apoio das monarquias árabes reacionárias lideradas pela Arábia Saudita e participação dos Emirados Árabes Unidos, Turquia, Catar, Israel e outros, além de milícias terroristas”, explica o especialista. Do outro lado, formou-se um outro eixo, tornando-se Irã, China e Rússia aliados da Síria.
Os frutos do jogo de interesses por poder na região e da correlação de forças armadas fez com que, em 2017, a ONU classificasse a Guerra da Síria, como o “pior desastre causado pelo homem desde a Segunda Guerra Mundial”. Em uma década, foram cerca de 400 mil mortos, sendo os civis a maior parte das vítimas: aproximadamente 117 mil, de acordo com o Observatório Sírio de Direitos Humanos (OSDH).
Metade da população síria se encontra refugiada em outras partes do mundo, como Fátima Ismail e Rawa Alsagheer. Dos 22 milhões que moravam no país antes do conflito, cerca de 11,5 milhões estão espalhados, principalmente entre Turquia, Jordânia, Líbano e Egito, segundo as Nações Unidas. Daqueles que permaneceram no país, cerca de 80% vivem abaixo da linha da pobreza, de acordo com um relatório produzido pela ONU e pela Universidade de Saint Andrews, na Escócia.