Uma análise marxista sobre o conflito na Ucrânia de 2022. Por Doni Ribeiro.

Créditos: Olga Skopina – Rossa Primavera News Agency

Por Doni Ribeiro.

Enquanto a RA-A continua pintando um mergulho bem específico e profundo sobre o que está acontecendo na Ucrânia e o que diz respeito ao futuro desta e da região como um todo através da tradução dos materiais publicados pelo movimento Essência do Tempo e a Agência de Notícias Rossa Primavera, é sempre em oportunidades como essa que precisamos dar um passo para trás e fazer perguntas mais difíceis. Como foi que chegamos aqui e qual é a história fundamental e subjacente do que está acontecendo?

Como chegamos a um ponto em que a Novarrússia está voltando para a Rússia, ou como chegamos a um ponto em que a Ucrânia como estado pode não existir mais. Não estou mais satisfeito com as versões moralistas do bem ou do mal, o que pretendo fazer agora é engajar em um tipo de análise materialista da história da Rússia e da Ucrânia após a queda da União Soviética, levando aos eventos do golpe da Maidan e as implicações que isso tem para a Rússia.

Os comentários de Sergey Kurginian com certeza são um dos fatores que me inspiraram a engajar em tal análise, pois estamos lidando com um cenário muito interessante que merece mais reflexão do que apenas narrativas sobre o que está acontecendo por uma ótica maniqueísta. Sabemos de fato que a imprensa ocidental está em um estado vergonhoso com o qual a sua desonestidade na cobertura do conflito, um estado de total calamidade. Isso já está bem entendido, e não estou mais interessado em apenas relatar os detalhes disso, quero trazer uma forma de pensar mais profunda e ampla.

Usando a teoria marxista-leninista para poder ter uma compreensão superior de como chegamos a esse ponto, para que possamos ter um tipo de entendimento mais subjacentemente neutro e objetivo, porque acho que é isso que está faltando. Estamos presos nessa guerra de informações onde dizemos: “tudo bem, se está mentindo muito a respeito da Rússia, por isso trazemos aqui a verdade”, mas onde está a neutralidade pelo ponto de vista da objetividade? Onde está uma espécie de senso básico de realidade não saliente por preconceitos ideológicos, paixões nacionais e outras coisas do tipo?

É isso que quero trazer agora, não só sobre o conflito em si, mas sobre o futuro da própria Rússia. Para onde a Rússia está indo? Quais implicações o fim da União Soviética teve para a Rússia? Esses grandes tópicos de análise são basicamente o feijão e arroz de que direção as análises da RA-A devem tomar em geral, não como sendo apenas novas análises, mas analises capazes de trazer grandes ideias de visões mais amplas sobre os temas aqui tratados. Com análises além do que é imediatamente aparente para nós.

Então a primeira coisa que temos que apontar é; há muitos detalhes que as pessoas perdem, e detalhes estes que são importantes de serem trazidos a cena. Por isso, partiremos de uma análise precoce das excitações daquilo que está nas manchetes diárias a respeito do que a Rússia está ou não fazendo para uma onde o contexto é ampliado e um círculo hermenêutico criado.

Então vamos lá, o que é um círculo hermenêutico? Um círculo hermenêutico é basicamente uma forma de derivar significado e conhecimento de um determinado objeto ou corpo de trabalho, pode ser de um livro, de uma região, de uma história, do que você quiser. Uma forma onde conhecer os detalhes permite que pintemos um quadro amplo, e com esse quadro amplo obtemos mais detalhes, e com mais detalhes o quadro amplo começa a ser mais completo. A questão do círculo hermenêutico é o tipo de paradoxo que ele representa, onde cada detalhe do conhecimento reflete algum quadro amplo, mas todo quadro amplo só é expresso por meio desses pequenos detalhes, e eles trabalham juntos dialeticamente para dar uma visão mais ampla em uma compreensão holística da situação.

Então quando realmente temos uma análise profunda do que está acontecendo na história e tudo mais, estamos começando do particular para o universal, e não o inverso. Não estamos começando de alguma afirmação ideológica universal e em seguida preenchendo os espaços em branco, estamos realmente começando a partir de algum tipo de análise objetiva. Essa análise não é tão carregada de todos os preconceitos e fanatismos ideológicos que impedem as pessoas de serem capazes de ter uma imagem precisa do que está acontecendo, mas também é uma análise que vai precisar chegar a um tipo de conclusão objetiva positiva, em vez de apenas o fato de que tudo bem, o Ocidente é ruim, o governo ucraniano é ruim, o Azov é ruim, etc. Isso tudo nós já entendemos, o que realmente está acontecendo é a questão.

O primeiro material que quero trazer é esse artigo do Instituto Katehon que fala brevemente sobre a história da Novarrússia e da Ucrânia. O artigo é de 2016 e é dedicado a expor as várias mentiras em relação a ambas que circulam na internet:

Existem várias mentiras circulando na internet sobre a antiga Ucrânia, a Novarrússia e a Rússia. Essas mentiras são espalhadas por trolls da junta nazista de Kiev e seus mestres estadunidenses com o objetivo óbvio de desinformação. Mas só os tolos acreditam nessa desinformação e só os mentirosos e traidores tentam promovê-la ainda mais.

Então, a primeira mentira que você vai ouvir sobre a situação é que:

“O povo ucraniano escolheu seu caminho para a UE”. Bem, “o povo ucraniano” NÃO escolheu seu “caminho para a UE”. O “povo ucraniano” havia escolhido o mundo russo, uma união aduaneira com a Rússia, a Bielorrússia e o Cazaquistão quando escolheram Ianukovytch como presidente e uma Rada pró-russa (embora com uma pequena maioria) nas últimas eleições legítimas antes do golpe nazista. Houve então esse golpe nazista, dirigido dos EUA, contra o presidente legal e o governo. Todas as “eleições” após o golpe nazista são nulas e ilegais e não foram democráticas nem justas, pois toda a oposição fora banida, presa ou morta. Que ninguém se esqueça disso. Não queremos Ukrops ou traidores tentando distorcer os fatos! (E quem é o “povo ucraniano” afinal? Os nazistas da Galícia? Os russos da Novarrússia e Malorrússia? Os ucranianos de língua russa nas partes centrais, se lhes for permitido falar como quiserem? Ou todas as pessoas de “origem mista”, ou seja, que tenham um pai russo e uma mãe ucraniana ou vice-versa? Como o mundo os vê? Eles estão ao menos sendo questionados sobre como eles se vêem?)

A próxima mentira:

“A Rússia não precisa da Novarrússia”. Aqueles que fazem esta afirmação não têm ideia (ou fingem não ter) sobre a história ou a cultura russa. Além disso, eles não têm conhecimento de geopolítica em geral e de política de segurança em particular. A Rússia precisa da Novarrússia por muitas razões: primeiro e mais importante, porque é uma parte genuína da Rússia e tem sido assim há 300 anos. Foi roubado da Rússia durante um período de fraqueza russa e quando a Rússia era governada por lacaios estadunidenses na década de 1990. A maioria das pessoas na Novarrússia são russos ou ucranianos de língua russa que se opõem à junta nazista de Kiev e querem se juntar ao mundo russo. Mas a Novarrússia também é o escudo da Rússia contra a agressão da OTAN e as bases militares inimigas.

E isso é algo que vou destacar aqui, porque quando se trata de chegar a uma análise materialista do por que a Novarrússia é tão importante, não se pode apenas proceder a um tipo de análise nacional, não se pode proceder apenas de uma perspectiva de estratégia militar, porque em última análise, a guerra é uma extensão da política, e isso seria se engajar no tipo de pecado capital do idealismo, seria supor que as formações políticas são o que está por trás de tudo isso. Seria assumir até que as formações nacionais estão por trás de tudo isso, quando um materialista vai proceder no nível mais fundamental do que é a essência de todas essas coisas, como o que faz uma nação e uma política. E é isso que está em questão, ser capaz de formar uma análise coerente e sustentável do que está acontecendo na Ucrânia.

O mesmo vale para o leste da Malorrússia. Todas as terras a leste do Dnipro (e todas as terras na costa do Mar Negro) são terras russas pagas por sangue russo muitas vezes ao longo da história. É traição até mesmo pensar em abandonar essas terras aos nazistas e à OTAN.

Mais uma mentira a ser desmascarada: “Haverá guerra mundial se a Rússia libertar Novarrússia”. Esta afirmação é absurda porque é contrariada até mesmo por declarações da Europa e dos EUA. Nenhum deles está preparado para ir à guerra para salvar alguns nazistas em Kiev, especialmente porque qualquer libertação russa da Novarrússia e do leste da Malorrússia seria apenas isso, uma libertação, não uma ocupação! Esta libertação não será estendida à Galícia porque aquela parte nunca foi terra genuinamente russa e agora está muito infectada com nazistas para valer o custo da desnazificação.

Essa Galícia em questão não é a da Espanha ou da França, mas uma região histórica e geográfica da Europa Central.

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Localização da Galícia entre a Polônia e a Ucrânia.

Essa região nunca foi historicamente território russo. Foi ocupada pelos soviéticos após os alemães invadirem a Polônia e posteriormente anexada a República Socialista Soviética da Ucrânia. Havia na região também populações ucranianas e rutenas que eram oprimidas pelos poloneses, mas historicamente falando esta não tem antecedentes russos, sua história se remonta a entidades como o Império Austro-Húngaro e a República das Duas Nações (também conhecida como Comunidade Polaco-Lituana). Os russos não pensam que serão capazes de anexar a Galícia a sua esfera, não possuindo ilusões no que diz respeito a isso.

Outra mentira constantemente levantada é que o mundo russo é apenas a Rússia, esta é uma parte bem interessante do artigo, porque muitas pessoas tendem a de uma maneira vaga taxar esse tipo de visão de duguinista, quarto-posicionista e logo fascista, pois bem, vejamos o que está sendo dito:

Na verdade, não deve haver limites para o mundo russo – se uma pessoa quiser se juntar ao mundo russo por qualquer motivo, ela deve ser bem-vinda. Pode ser, por exemplo, que a pessoa tenha um cônjuge russo, goste da cultura russa ou da ortodoxia ou do estilo de vida russo e assim por diante. Claro, não estou falando sobre a criação de “guetos”, como o que aconteceu na Europa Ocidental, mas qualquer pessoa que se junte ao mundo russo deve estar disposta a se assimilar pelo menos até certo ponto a sociedade russa (aprender língua, cultura, tradições), sem ter que negar suas próprias raízes. A Rússia deve receber cerca de ½ milhão de pessoas de todo o mundo anualmente, e elas devem preferencialmente ser jovens e educadas ou dispostas a obter educação em seu novo país. Há muitas dessas pessoas em todo o mundo que gostariam de se mudar para a Rússia se tivessem a chance. Isso daria um impulso à economia e à sociedade russas também. É claro que os refugiados da antiga Ucrânia e Novarrússia também devem ser levados para a Rússia, mas com o claro entendimento de que eles retornarão a Novarrússia e a Malorrússia libertadas mais cedo ou mais tarde!

Geograficamente, é claro que é mais fácil definir o mundo russo como Federação Russa + Bielorrússia + norte do Cazaquistão + Novarrússia + leste da Malorrússia + Transnístria, Abecásia, Ossétia do Sul e algumas regiões do Báltico, como Narva, por exemplo. Qualquer parte deste território é tão sagrada e russa quanto Moscou e deve ser igualmente defendida.

Tal visão sem dúvidas é digna de irritar muita gente da dita “direita alternativa”, infame por sua obsessão com pureza racial e outras teorias ocidentais que para os russos não fazem muito sentido. Pois bem, o que foi dito é claro, não acho que os autores realmente se importem com o que esse tipo de gente pensa.

Enfim, esse é um tipo de imagem da visão geopolítica subjacente a isso, mas acho que a fraqueza da análise até agora está em confiar predominantemente na base geopolítica, pois tudo que vemos nesse artigo se resume a política em última instância e não a uma concepção materialista da situação. Para isso, precisamos de uma compreensão mais profunda das circunstâncias que cercam a queda da União Soviética e as implicações que isso teve para os povos que vivem naquela região em um sentido material.

Comecemos então com o Donbass em si e seu significado. No Brasil, podemos relacionar este com o ABC paulista, cujo economia e modo de vida das pessoas está atrelado as indústrias locais, ou então até mesmo no norte do país, com os controversos garimpos que a população tira seu sustento para sobreviver, ambos influenciam significamente a política da região respectivamente. Mas ainda acho que o significado do Donbass fica melhor comparado com o de países de economia de desenvolvimento não tardio, e isso elaborarei mais para a frente. Como por exemplo, o significado do estado da Virgínia Ocidental para os EUA, ou do condado de Lancashire no Noroeste da Inglaterra, ou então as regiões mineiras da Valónia para a Bélgica, todas áreas de mineração de carvão.

A Virgínia Ocidental por exemplo, é um estado majoritariamente republicano, onde um forte apoio ao ex-presidente Donald Trump estava localizado. Era ali que se encontravam as indústrias pesadas que definiam a espinha dorsal da economia nacional dos EUA, e com o passar do tempo os empregos dessas pessoas foram ameaçados, ou não receberam os devidos investimentos, e o que acabou por definir a política da região foi a preservação desse modo de vida mais antigo.

Essa é uma análise materialista fácil de usar para explicar o cenário pois o carvão foi o que determinou toda a forma política da região, definindo quem ia ou não para o Congresso. Enquanto os progressistas queriam eliminar o carvão, esse se mantinha como a fonte de subsistência das pessoas que viviam na Virgínia Ocidental, com isso temos todo esse entendimento de uma compreensão materialista da própria economia política. Sendo essa economia política o que os órgãos regulatórios do “estado monopolista” dos EUA em conjunto com empresas de carvão, petróleo, automóveis e manufatura, usava para formar toda essa totalidade do dito “Sonho Americano” e o “American Way of Life”, que definiam o modo de vida das pessoas, e não somente isso, mas os definia como uma classe também.

Eles não eram a classe trabalhadora do passado que não tinham país, eram uma classe trabalhadora que tinham um país de alguma forma, que tinham algum investimento ou participação no estado. Alguns marxistas podem definir tal fenômeno como uma aristocracia trabalhista, mas acho isso simplista, a aristocracia trabalhista de que Lênin falou era a camada superior do movimento operário, um fenômeno de massa que definiu as pessoas de baixo para cima, o próprio solo das próprias pessoas.

Esse tipo de “Sonho Americano” também pode ser traduzido no contexto soviético e russo, porque havia também um “Sonho Soviético” na forma da própria economia. Como nas indústrias pesadas onde os trabalhadores soviéticos eram empregados, esses que tinha direito a uma dacha no campo, uma casa ou um apartamento na cidade, uma pequena fazenda se fossem camponeses labutando a terra. Tinha-se um jeito muito específico da vida que estava ligada à indústria pesada e à manufatura, mas não havia essa economia de serviços e tecnologia. Quando se compara a economia estadunidense do século 20 com a soviética por uma perspectiva sociológica, há muitas diferenças, mas também há muitas semelhanças.

Isso porque estamos lidando com uma situação em que a maior parte do mundo estava se transformando em uma direção socialística após a crise de 29, incluindo claro os EUA e a Europa Ocidental, onde os estados estavam se tornando cada vez mais favoráveis aos operários, com suas vastas regulamentações e mecanismos de controle econômico que levavam em conta as considerações sociais, assim como a vida da classe trabalhadora e no caso dos EUA o “Sonho Americano”.  Não estou dizendo que esses estados serviam à classe trabalhadora ou foram estados operários no sentido de uma ditadura do proletariado, claramente foram estados que sempre serviram os interesses de financistas e monopolistas capitalistas, tal como banqueiros de Wall Street e da Cidade de Londres e toda essa gente fantasmagórica.

O que estou tentando dizer é que havia aspectos desse estado que vagamente faziam referência a um estado operário, pois até certo ponto o estado e a economia são moldados em torno da reprodução de um modo de vida específico. Agora a intenção por trás disso, no que diz respeito à classe dominante da burguesia no século XX, era garantir que a classe trabalhadora estaria satisfeita e complacente, não se voltando para o comunismo. Foi essa a razão e motivação por trás disso tudo. Porém, os partidos da ordem chegavam a ganhar uma espécie de poder através desse tipo de classe trabalhadora, apesar de estarem ainda completamente capturados e em dívida com os capitalistas.

Havia sim ainda algumas medidas de infraestrutura estatal emergente que não eram diretamente controladas pela classe capitalista, como se fossem esse arranjo que existia por razões sociais e não apenas para tornar os capitalistas ricos. É claro que no fim das contas figuravam na máquina estatal imperialista mais ampla, especialmente no sistema de controle imperialista global. Mas a única evidência real de que não era algo que servia diretamente aos interesses do capital reside no fato de que durante a chamada “era do neoliberalismo” tudo isso foi desmantelado e desinvestido, muito parecido com o desmantelamento da própria União Soviética.

Os estados ocidentais simplesmente cessaram de investir nesse tipo de modelo. Nos EUA, as pessoas na Virgínia Ocidental e em Detroit, Michigan, foram esquecidas, a fabricação foi terceirizada para o México e o resto do mundo. Logo, muito claramente aquele grau de socialização que ocorreu após o período de guerra não era apenas para apoiar o lucro, havia um grau de sociabilidade naquela política que emergiu. Alguns podem dizer que era social fascista, e estou aberto a essa interpretação. Era algo que mesmo fazendo parte do imperialismo, ia um pouco mais além do que Lênin descreveu nesse imperialismo.

Pois bem, nesse pôster de propaganda do período soviético podemos ver um mapa da parte leste da Ucrânia e a região do Donbass:

On the debris of the Donbas | Eurozine

O que vemos aqui faz referência a essa região estar energizando a totalidade da economia soviética e sua indústria, fábricas em todo país estão sendo alimentadas pelo que se lê no pôster como: “Donbass o coração da Rússia”. Essa bacia no leste da Ucrânia foi responsável pela esmagadora maioria do consumo de energia da União Soviética internamente.

Por mais que a União Soviética fosse um país exportador de petróleo depois da década de 70, em termos de consumo interno de energia o que abastecia a própria indústria vinha do Donbass, semelhante à Virgínia Ocidental aos EUA e a Valónia a Bélgica. Era essa mineração de carvão que na verdade fora a fonte de subsistência para as pessoas que viviam ali, toda a infraestrutura que foi construída na região do Donbass, todo o modo de vida, a educação, as instalações, os alimentos que as pessoas consumiam, a forma como elas se relacionavam com tudo isso, foi através da riqueza que estava sendo criada por causa do carvão. Por causa desse arranjo econômico específico que tinha com o resto da União Soviética.

Para dar mais contexto, hoje em dia, a infraestrutura das cidades que existem na região do Donbass são um resquício daquela era soviética. Então essa é a primeira coisa que devemos ter em mente, é esse o contexto da região.

Para mostrar o significado que o carvão ainda tem, basta olharmos para esse mapa mais contemporâneo da Ucrânia:

Distribution of coal production according to the regions of Ukraine. | Download Scientific Diagram

Vemos no mapa que as regiões do leste de Dnipropetrovsk produzem 18,4 bilhões de toneladas de carvão, de Donetsk 15,6 bilhões, e de Lugansk 5,3 bilhões. Nacionalmente falando, os habitantes do Donbass são falantes do russo, muitos são russos étnicos, mas qual é a conexão mais fundamental que eles têm com a Rússia que é realmente responsável pelo conflito em geral? Tem muito a ver novamente com o carvão.

Após a queda da União Soviética, algumas coisas aconteceram tanto para a Rússia quanto para a Ucrânia, que levariam ao contexto formativo dos protestos da Maidan. Por isso que a história de como a Ucrânia e a Rússia chegaram a este ponto é na verdade mais como uma tragédia do que uma história unilateral do bem contra o mal. A Ucrânia tinha uma das maiores partes da indústria pesada soviética, tendo sido construída especificamente para cooperar com a indústria russa, a separação tanto política como econômica da Rússia com a Ucrânia no contexto pós-soviético foi bem dolorosa e serviu apenas para o plano atlantista.

Quando a União Soviética desmoronou, todos sabem o que aconteceu, uma classe oligárquica emergiu tanto na Rússia quanto na Ucrânia. Toda a indústria que foi construída sob o estado soviético, não apenas no leste da Ucrânia, mas em todo o país, foi comprada por esses oligarcas. E o que os oligarcas basicamente fizeram foi privatizar o socialismo, mantendo as grandes empresas e entidades intactas, que eram como fraturas de pequenos pedaços do gigante planejamento central soviético.

Esses oligarcas consolidaram todos esses tipos de meios de produção na forma de empresas socialistas de capital próprio em empresas privatizadas gerais, agrupando-as todas de forma privada semelhante a uma mini economia centralmente planificada. Grande parte da necrose da indústria pós-soviética é por causa desses oligarcas, que tiraram toda a infraestrutura construída sob a União Soviética e transformaram-na em ativos financeiros especulativos, apenas extraindo renda dessa infraestrutura dos antigos povos soviéticos, para as transformar nesses ativos financeiros que são então integrados ao mundo das finanças internacionais e empresas offshore através de distritos financeiros.

A economia soviética não foi realmente dissolvida, muitos pensam que o socialismo foi abolido, bem ideologicamente foi, mas em termos da economia centralmente planificada no geral, o que restou desta foi dividido em pequenos pedaços, onde esses novos senhores, feudais para todos os efeitos, assumiram esses segmentos dessa economia soviética planificada mais ampla e as mantiveram funcionando intactamente enquanto cobravam da antiga população soviética uma espécie de renda para que pudessem continuar vivas.

Ao contrário da União Soviética, os oligarcas não investiram, atualizaram ou buscaram de qualquer forma integrar essa polaridade a um todo maior que beneficiaria o povo como uma entidade holística. Eles apenas transformaram essa infraestrutura econômica em ativos e instrumentos financeiros integrados a um mundo de finanças internacionais centrado no Ocidente, basicamente transformando-as em partes da polaridade ocidental.

Agora, a nacionalização da indústria petrolífera russa sob Putin foi praticamente o primeiro ato que compensou isso e restabeleceu alguma forma de soberania econômica. Quando se fala de soberania econômica, temos que relembrar que isso significa que toda uma parte da economia está sendo organizada em torno de servir a sua própria economia e por extensão sua esfera. Neste caso, a indústria petrolífera da Rússia permite que o governo invista em sua população e construa indústrias russas, que abastecem uma economia russa. Enquanto que no tipo de arranjo oligárquico das privatizações da década de 1990, tanto na Ucrânia quanto na Rússia, não havia espaço para isso.

Para dar uma representação melhor de como mais ou menos era a organização oligárquica da economia na Ucrânia e na Rússia, imagine que você está em um hospital público, e de repente aparece alguém que assume esse sistema como uma arma dizendo que se não receber uma determinada quantia por hora, seu plano será cancelado. Os oligarcas agiam dessa maneira, basicamente segurando essas coisas que servem de apoio básico a vida das pessoas naquelas regiões. É só lembrar que quase imediatamente após a privatização da saúde na Federação Russa, quase sete milhões de russos rurais morreram por falta de cuidados relacionados a esta.

Eles nem bons capitalistas são. Muita gente pensa que a Rússia simplesmente se tornou capitalista, pois bem, tecnicamente, em um mundo ideal, um capitalista faz um investimento e então obtém um retorno sobre esse investimento. Mas neste caso só se tem esse tipo de privatização de uma forma muito estagnada e decadente de socialismo, onde não é como se eles estivessem lucrando com base em retornos de investimentos arriscados.

Eles estão apenas segurando esses gigantescos pedaços da antiga infraestrutura soviética e cobrando das pessoas que dependiam deles como fonte de subsistência para espremer não lucros, mas renda, através de aluguéis do financeiro. E essa é a parte mais fascinante de todo este dilema, e também o porquê não se pode entender esse conflito a partir de uma tradicional crítica anticapitalista da perspectiva do sistema.

Dada essa visão mais ampla da economia oligárquica, entendemos que após a União Soviética entrar em colapso: a sua economia ainda continuou sendo a fonte de sobrevivência e sustento para a maioria das pessoas que viviam sob ela; o que aconteceu foi a privatização dessa economia soviética por esses capitalistas financeiros parasitários que não reinvestiram na infraestrutura, mas apenas a mantiveram em uma linha de vida; logo deixando tanto esta quanto as pessoas que dependiam desta para trás enquanto extraíam rendas e não lucros; que por sua vez foram transformadas em derivativos financeiros como ativos especulativos, basicamente ativos derivativos; que foram integrados ao mercado financeiro capitalista mundial através de distritos financeiros e empresas offshore.

Esse é o resumo básico do cenário que está formando o contexto de tudo isso ok, mantenhamos este em mente à medida que avançamos.

Agora, a coisa que mais chateou esse arranjo foi a ascensão de Putin ao poder. Muitas pessoas subestimam o grau de continuidade entre o regime de Yeltsin que foi completamente capturado pelos oligarcas e o de Putin. Houve sim continuidade, não podemos esquecer que Putin foi nomeado por Yeltsin, então a razão pela qual Putin passou a representar a soberania russa é o fato do assunto que agora temos que tratar.

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Putin e Yeltsin em 1999.

Putin não subiu ao poder de uma maneira cesariana e populista como Hugo Chávez por exemplo, ele fora nominado. O contexto de Putin é mais profundo, é a política, especificamente a geopolítica. A primeira grande fenda entre o Ocidente e a Rússia foi a Iugoslávia, mais precisamente a Sérvia. E até mesmo antes com Yeltsin se tinha noção dessa fenda, isso porque havia já muita coisa não resolvida na Abecásia, na Ossétia do Sul, na Transnístria e em outros lugares. A Rússia foi jogada nessa situação em que até mesmo Yeltsin e os oligarcas que o apoiavam tinham que ser patriotas em algum sentido, por que era do interesse da classe oligárquica adotar uma visão geopolítica russa.

A razão por trás de tal visão é bastante simples; para conseguir manter o fluxo constante de rendas financeiras que eles extraíam da privatização da antiga economia soviética, eles tiveram que considerar a Rússia como um bloco com seus próprios interesses que necessitam ser defendidos. Se estava basicamente tentando transformar a Rússia em um cartel, uma grande narco-empresa cujo interesses se estavam dispostos a serem defendidos com base nisso.

Isso basicamente vai definir toda a contradição trágica que molda a trajetória da Rússia na situação geopolítica atual. Quando Putin foi nomeado, este tomou a decisão de nacionalizar a indústria de gás, basicamente cimentando a primeira forma de soberania econômica russa. Naquele momento, aquela mesma oligarquia que havia confiado em Putin já na questão geopolítica (que na época era a Chechênia) quando este tratou de defender o direito de soberania territorial da Rússia, vira que ele não estava na verdade sob seu controle.

A razão pelo qual Putin se voltou contra as oligarquias podem estar relacionadas a questões ideológicas pessoais. O que aconteceu foi que Putin atravessou o rio Rubicão e teve seu momento de Júlio César, dando mais um passo adiante e nacionalizando a indústria petrolífera, começando a derivar seu mandato do povo russo. Então de certa forma, e isso pode ser um choque para muitos, a Rússia tornou-se mais democrática.

Sim, pois antes a Rússia estava submetida a pessoas que negavam a democracia em sua essência mais básica. Em conversações com diplomatas dos EUA, oligarcas russos diziam que a Rússia por ser na verdade um país asiático e não ocidental, não era capaz de ter essa transição imediata para a democracia. Sendo então necessário que primeiro exista essa oligarquia, já que os russos são selvagens e incivilizados demais para serem democráticos e governar com base em um governo que venha majoritariamente do povo. O povo russo ainda é muito estúpido para se auto governar, por isso precisavam dos oligarcas no comando naquele momento. Era isso que aquela gente dizia ao menos.

Logo, Putin estava aumentando a democratização da Rússia por ter a fonte real de legitimação e soberania do estado vindo não de um seleto grupo de governantes oligárquicos, mas de um mandato mais ou menos popular oriundo do povo russo. Agora, Putin não é um salvador da Rússia, ele não é um Júlio César comunista que estava fazendo as coisas pela bondade de seu coração, por ser alguém convicto de razões ideológicas. Putin fora confrontado com um rio Rubicão em seu caminho, e a travessia deste resultou em sua transformação em um político centrista padrão.

É como se a nacionalização da indústria do petróleo desse ao estado russo uma fonte definitiva de receita com o qual será capaz de sustentar o povo russo em uma espécie de bote salva-vidas, já que os oligarcas não são capazes de fazer isso de maneira dissipada.

Sob o reinado de Putin (é aqui que vamos realmente começar a falar sobre o aspecto trágico disso tudo, se é que já não está trágico o suficiente) ainda se tem o mesmo nível de decadência, necrose e estagnação que definiam o domínio dos oligarcas. A única diferença é que havia cada vez mais uma aparência de um novo tipo de Rússia, Moscou com certeza passou por uma grande reforma sob Putin, assim como reconhecidamente outras partes do país. Mas para a maioria dos russos, eles estavam vivendo da mesma maneira que os ucranianos, basicamente em um bote salva-vidas, sendo este o recebimento de pensões para os aposentados e garantia de trabalhos braçais que a classe trabalhadora não tinha antes.

Nesse contexto também temos um êxodo imenso da Rússia, um êxodo de muitas pessoas pensantes, migrantes (muitos deles jovens) indo para o Ocidente em busca de oportunidades. Mas ao mesmo tempo, Moscou também começou a ser um alicerce para novos empreendedores, novos tipos de startups e negócios que foram possibilitados por essa recém-descoberta soberania econômica russa. Tudo isso minou os oligarcas para que então a Rússia pudesse estar nesse estado estável de sobrevivência básica, onde o povo está sendo capaz de sobreviver e resistir.

Isso é definitivamente alguma coisa, porque nos anos 90 o povo estava morrendo, morrendo de mortalidade precoce e falta de apoio do estado, e agora sob Putin eles estão conseguindo sobreviver. Mas sob Putin ainda há estagnação, ainda tem um pouco desse mesmo controle oligárquico da antiga economia soviética, aquela velha necrose e parasitismo ainda estão presentes, e acima de tudo, ainda tem aquele tipo de venda do povo russo para o mercado capitalista ocidental na forma de ativos derivativos e especulativos. Isso é realidade não apenas para a Rússia, mas para toda a antiga esfera soviética.

Um dos motivos do porque não usei um exemplo brasileiro desse tipo de economia política foi justamente porque estamos nesse mesmo estado que os russos, o de sobreviver. Mesmo no passado não tivemos o nosso “Sonho Brasileiro”, não progredimos para essa etapa fundamental das relações de produção. Ainda que pode-se dizer que algo do tipo estava sendo construído nas décadas de 50 e 60, mas sua ideia acabou por ser abandonada.

Voltando a Rússia, sob Medvedev, esta quer se aproximar ainda mais do ocidente a fim de se conciliar geopoliticamente com este, mas no fim é justamente por razões geopolíticas que isso não é possível de acontecer.

Vejamos agora esse gráfico a respeito das exportações da Ucrânia para a Rússia e vice-versa:

Podemos ver claramente que em sua grande maioria é tudo indústria pesada, desde produtos manufaturados a matérias-primas processadas primárias. Ao mesmo tempo que podemos ver muitos derivados químicos, podemos ver também ferro, aço e bens industriais manufaturados. Isso é então basicamente o que a Ucrânia está exportando para a Rússia, e como vimos antes, isso é controlado pelos oligarcas. Imaginemos isso como os intestinos da economia soviética arrancados e privatizados sob o controle de oligarcas e suas famílias naquele contexto que vimos antes onde todas as aparências da antiga economia estão sendo mantidas em um bote salva-vidas.

Agora o que realmente subjaz à história que levou a Maidan e à insatisfação com a Rússia e Putin na Ucrânia? Bem, a estagnação continuou a definir mais ou menos toda a esfera russa, exemplo da Ucrânia sob Ianukovytch, a população vivia sob estado de sobrevivência, mas sem inovação e oportunidade. Por conta disso, meio que compreensivelmente nas partes mais desenvolvidas da Ucrânia Ocidental, as pessoas estavam fartas desse antigo arranjo, estavam fartas da classe oligárquica corrupta, vindo a tona na população uma espécie de ilusão. E isso é o cerne do que está sendo dito e o que torna todo esse cenário uma tragédia.

Há muitas formas de utopia que as pessoas creem quando estão insatisfeitas com o status quo e o sistema prevalecente. No caso da Ucrânia Ocidental, a utopia era a Europa. Havia essa ilusão, essa ideia de que o aumento da integração econômica com a Europa levaria ao enriquecimento da pequena burguesia democrática ucraniana, que as startups, os empreendedores e toda essa juventude faminta por oportunidades estavam certos que iriam conseguir isso com o aumento da cooperação econômica com a Europa Ocidental. Não só a Europa, mas o Ocidente em si se tornou essa utopia. E essa visão utópica é a grande tragédia.

Sob pressão da população ucraniana ocidental, e também por não ser realmente leal à Rússia a nível geopolítico, Ianukovytch primeiramente decidiu buscar integração econômica com a Europa. Ele foi até Bruxelas, capital da Bélgica e sede da UE, dizendo aos chefes e líderes não só políticos, mas também econômicos desta, como o presidente do Banco Central Europeu da época e todos os representantes da zona do Euro, que estava disposto a se juntar a eles e abandonar a Rússia.

Ianukovytch e seus apoiadores oligarcas demonstravam apenas interesse na integração com a Europa Ocidental e o abandono da Rússia naquele momento. A Rússia era considerada como um cachorro morto, um desperdício de empenho, um parceiro incapaz de providenciar mais lucros para uma Ucrânia lotada de oligarcas que estavam justamente com fome de lucro. Porém, Ianukovytch deixa claro que infelizmente seu país ainda é economicamente dependente da Rússia, logo, para abandonar esta e se juntar a Europa, é necessário que os europeus deem empréstimos e ajudem a resgatar a economia ucraniana da influência russa de uma maneira fundamental.

Frente a isso, o que disse Bruxelas a Ianukovytch? Disse que de jeito nenhum investiria nos humildes ucranianos, pois não acreditava no potencial destes, o Ocidente simplesmente não via na Ucrânia um investimento que valesse a pena para si mesmo. É claro que se se a Ucrânia se juntasse à UE este veria benefícios, usando esta como uma colônia econômica para mão de obra barata e migrantes, onde matérias-primas podem ser extraídas e uma nova colônia de dívidas como a Grécia criada. Mas reestruturar seriamente a economia e preencher o buraco deixado para trás pela Rússia? Isso não estava nos interesses daqueles senhores.

A Europa se recusou a concordar com aquilo que a Ucrânia precisava para se juntar à ela e deixar a Rússia para trás. Essa é a história por trás da Maidan, pois quando Ianukovytch decidiu abandonar a integração econômica com a Europa, não porque ele não quisesse, mas porque a Europa se recusou a realmente cumprir o que a Ucrânia precisaria para tal processo, eclodiu a revolução colorida. Temos que ir além da intervenção dos EUA, da CIA, do NED e de toda essa quadrilha por detrás dos serviços atlantistas de mudanças de regime pelo mundo e pararmos para nos questionar apenas o porquê tantas pessoas em Kiev e na Ucrânia Ocidental irritadas com o governo tinham a impressão de que a Ucrânia não se integrou a UE por uma ordem de Putin que Ianukovytch cumprira?

Para elas a Europa representava uma oportunidade econômica, um futuro, uma parceria capaz de modernizar a infraestrutura, ou apenas uma imagem de um futuro onde não persista por tanto tempo toda essa estagnação, decadência e corrupção. Era esse o pensamento que eles tinham na cabeça, e quando Ianukovytch vira as costas para a integração europeia, para eles era como se ele só fizesse isso por causa de Putin e seus corruptos oligarcas, os mesmos que eles associavam a esse mundo pós-soviético estagnado.

Mundo este que por sua vez se associa com Putin, pois a Rússia é o grande cartel que busca sempre manter o fluxo constante das rendas financeiras dos oligarcas nesse espaço. Logo, para aquelas pessoas era basicamente como se Putin estivesse os impedindo de se livrar dessa maldita estrutura econômica oligárquica. Era o mundo russo e o tenebroso passado soviético que estava impedindo os ucranianos de se libertarem dessa decadência e estagnação infernal da antiga ordem, cujo a Rússia é a grande representante e logo deve ser culpada por tudo.

A verdade, porém, é mais trágica, não fora Ianukovytch, Putin ou até mesmo os oligarcas a razão por de trás da Europa ter rejeitado revitalizar a economia ucraniana. A razão fora os próprios europeus simplesmente não se importarem com os ucranianos. A Europa não os vê como iguais, os europeus historicamente não têm nada a em comum com a Ucrânia, logo para que ajudar esta a ser economicamente independente da Rússia? Sendo que nem mesmo a própria Europa é capaz de ser.

Quando a Alemanha Nazista invadiu a Ucrânia na Segunda Guerra, eles tinham um plano para forçar uma fome na região e depois saquear todos os recursos e mandar colonos alemães colonizarem a terra. São povos completamente diferentes, os europeus não dão a mínima para a Ucrânia, essa é a trágica verdade, é por isso que Ianukovytch não conseguiu alcançar a integração econômica com eles. Mas os manifestantes da Maidan, irritados com toda e estagnação, decidiram que a Europa era a utopia deles.

Foi uma espécie de forma desordenada de socialismo utópico que rapidamente se transformou em um nazismo esquizofrênico e um fascismo genocida, onde seus sonhos vinham às custas da realidade, e que os russos estavam atrapalhando tal sonho. Esse é o cenário que se tem na Ucrânia Ocidental. Agora, indo do céu para a terra, da terra dos sonhos de volta à realidade, temos o pessoal do leste da Ucrânia, estes que estão sobrevivendo através de ajuda econômica, passando por indústrias vestigiais da era soviética, não havendo nestas muitas melhorias, mas eles estão focados principalmente em não passar fome e apenas ter alguma seguridade na vida.

Logo, o que eles muito corretamente veem que está acontecendo na Maidan é que, esses ucranianos ocidentais querem destruir tudo que eles tem, e não só isso, mas eles próprios, porque eles mesmos só existem por causa do passado soviético. Toda a infraestrutura por detrás de capacitar com que aquela gente obtivesse uma renda, todo o modo de vida e cultura destes vem justamente do passado soviético, e os ucranianos ocidentais querem tirar isso deles e destruir?

A tragédia da Ucrânia Ocidental tornou-se uma espécie de luta e transformação pelo futuro, mas no leste da Ucrânia era o contrário, era uma luta para ser, uma luta pela sobrevivência e defesa do passado. Basicamente tivemos uma situação muito trágica onde ambas as pessoas na Rússia e na Ucrânia não estavam necessariamente cientes da razão pela qual seus países estavam estagnados e não se tem um tipo de reinvestimento no próprio povo.

A razão pela qual ninguém estava disposto a investir nos dois países e povos, seja a Europa ou essa oligarquia pós-soviética, é muito simples, é porque ambas Rússia e Ucrânia se afastaram do comunismo. O comunismo foi a única coisa que investiu nessas pessoas, a única coisa que acreditou nelas. Todas essas empresas comandadas por oligarcas se utilizam da infraestrutura construída pelos comunistas enquanto as devoram ??e colocam em holding.

Foi por causa do abandono do comunismo que a economia que antes era baseada no que era do melhor interesse das pessoas comuns passou para uma baseada em princípios capitalistas liberais de livre mercado, que na realidade, se traduziam em abandonar de maneira quase genocida as pessoas e deixá-las à mercê, apodrecendo na melhor das hipóteses.

Esse é o contexto de toda aquela situação. As pessoas que estavam furiosas com o governo de Ianukovytch não eram necessariamente culpadas, é só que eles articularam essa fúria de forma errada, de forma delirante e ilusória. O verdadeiro inimigo do povo ucraniano e do povo russo igualmente, não pode ser identificado como uma questão nacional, e sim como uma questão de classe com um contexto civilizacional, da civilização criada pelo União Soviética. São esses oligarcas que converteram a economia pós-soviética em um estado rentista feudal, onde extraem da força vital dos antigos povos soviéticos sem dar nada em troca e sem nada investir neles, especialmente na juventude e nas novas gerações.

Então você pode me perguntar, mas por que então apoiar a Rússia de Putin sendo que essa também tem esses oligarcas no poder? Porque tem de se entender o contexto da revolução que está acontecendo no mundo russo, que é para todos os efeitos também uma revolução social e de classe contra as oligarquias. Isso está acontecendo, as revoluções no leste da Ucrânia iniciaram uma profunda revolução social e de classe que sem dúvidas se espalhará para a Rússia, mesmo que venha às custas do próprio Putin.

A Maidan simplesmente enganou os habitantes urbanos da Ucrânia Ocidental a servirem aos interesses das facções oligárquicas do mundo pós-soviético contrárias a Rússia, como podemos ver nessa matéria publicada pelo New York Times em 2 de março de 2014:

À medida que as tensões aumentavam nas ruas das partes da Ucrânia Oriental falantes da língua russa, a resposta do novo governo na capital no domingo não foi enviar tropas, mas enviar pessoas ricas.

O governo interino, preocupado com os esforços russos para desestabilizar ou tomar regiões no leste da Ucrânia depois de efetivamente assumir o controle da península da Crimeia no sul, está recrutando empresários ricos do país, conhecidos como oligarcas, para servir como governadores das províncias do leste.

A estratégia, que a mídia ucraniana está atribuindo a Yulia V. Tymoshenko, ex-primeira-ministra e líder do partido, é o reconhecimento de que os oligarcas representam a elite industrial e empresarial do país e exercem grande influência sobre milhares de trabalhadores no leste, que é em grande parte etnicamente russo

Essas regiões do leste estavam prontas para pegar em armas, o país estava em turbulência com sua porção leste se rebelando contra os golpistas de Kiev. E a resposta do governo da Maidan a isso foi literalmente enviar oligarcas para serem os governadores dessas regiões do leste. Esses mesmos que já reinavam economicamente agora também iriam exercer poder político direto, pois bem, comecei me referindo a estes como senhores feudais na intenção de fazer uma metáfora. Agora vejamos quem esses oligarcas são e que tipo de influência exercem:

O gabinete do presidente Oleksandr V. Turchynov anunciou no domingo as nomeações de dois bilionários – Sergei Taruta em Donetsk e Ihor Kolomoysky em Dnipropetrovsk.

Ambos esses oligarcas são donos das indústrias no leste da Ucrânia, das minas de carvão, das fábricas, e a bem dizer dos trabalhadores russos daquelas terras. Vamos começar então vendo quem é esse sujeito de nome Sergei Taruta. Esse é o fundador da União Industrial do Donbass, possuindo mais de 40 empresas industriais no leste da Ucrânia, Hungria e Polônia. Devido a proclamação da República Popular de Donetsk em abril do mesmo ano, a sede de suas empresas fora mudada de Donetsk cidades da região que se mantiveram sob a administração do regime de Kiev, como Kramatorsk e Gorlovka.

Tmbém é mencionado o nome de Igor Kolomoysky. Quem já está um pouco mais familiarizado com todo esse contexto provavelmente já ouviu falar nesse nome antes. Kolomoysky é o dono do Grupo Privat, que controla milhares de empresas de praticamente todos os setores da Ucrânia, tais como siderurgia, petróleo, energia, gás, química, e costumava incluir até mesmo o famoso Banco Privat que fora nacionalizado em 2016 devido a péssima gerência, como disse antes, esses oligarcas nem bons capitalistas são.

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Oligarca Igor Kolomoysky, infame por bancar grupos neonazistas armados na guerra do leste do país.

Essa nomeação de oligarcas não aconteceu apenas no leste da Ucrânia, oligarcas foram nomeados diretamente em posições de poder em todo o país. Algumas semanas depois dessa matéria do New York TimesReuters publicou esta com o título de: “Governador oligarca busca ajuda para manter o Donbass ucraniano”. Na entrevista, Sergei Taruta basicamente implora por ajuda dos países ocidentais, dizendo que o Kremlin está por trás desses militantes separatistas que estão chamando a Rússia para invadir a Ucrânia, e que o único jeito de parar isso seria com o Ocidente fornecendo ajuda humanitária e econômica para o Donbass. Um grande quadro está prestes a ser pintado aqui.

Essa publicação de 2015 do Carnegie Endowment intitulada de “Ucrânia: O reino dos oligarcas”, já logo no começo fornece uma bela ilustração para esse novo quadro:

Um ano após o colapso do governo de Viktor Ianukovytch, a esperança de que o novo governo ucraniano possa controlar o poder dos oligarcas corruptos e instalar uma nova geração de elites reformistas é, na melhor das hipóteses, incerta. As velhas elites da Ucrânia e suas formas de fazer negócios estão prevalecendo sobre aqueles que buscam construir um sistema político transparente e um Estado moderno construído sobre o Estado de Direito. Até agora, a legitimidade do novo governo não se baseia em seu histórico de sucesso na promoção de reformas, mas em fatores externos, ou seja, sua capacidade de responder à agressão russa e angariar apoio para a Ucrânia no Ocidente.

E só lembrando que isso quem diz é o Carnegie Endowment, um instituto totalmente atlantista alimentado pela Open Society Foundations, o Rockefeller Brothers Fund, o Departamento de Desenvolvimento Internacional do Reino Unido e assim por diante, toda a mesma fraternidade que permitiu com que a Maidan se tornasse realidade. Como podemos ver a derrubada de Ianukovytch não diminuiu o papel dos oligarcas na política ucraniana ou legitimou totalmente o poder do governo central, especialmente aos olhos desses mesmos oligarcas.

Mais à frente é dito que:

Embora a Maidan fosse, sem dúvida, um movimento de “poder popular” dirigido contra um regime odiado e corrupto, os oligarcas também desempenharam um papel fundamental na intermediação do governo pós-Ianukovytch. Foi ninguém menos que Dmytro Firtash que, apesar de estar em prisão domiciliar em Viena, supostamente forjou o acordo que uniu os partidos políticos liderados por Poroshenko e Vitali Klitschko antes das eleições presidenciais de maio.

A Ucrânia continua a ser governada por oligarcas hoje. No entanto, a dinâmica de poder entre os grupos oligárquicos mudou drasticamente. Mais importante ainda, a influência geral dos tradicionais corretores de energia com controle sobre os ativos metalúrgicos e de carvão da Ucrânia está diminuindo. Tendo perdido 5,8 bilhões de dólares de seu patrimônio líquido em 2014, Rinat Akhmetov – o homem mais rico da Ucrânia antes da guerra – parece ser o maior perdedor. No entanto, ele continua poderoso e tem a capacidade de intermediar relacionamentos entre Kiev (onde mora) e Donbas (onde ainda controla ativos). Akhmetov tem laços com Aleksander Zakharchenko, o autoproclamado líder da República Popular de Donetsk, e acredita-se que ele esteja trabalhando com forças de ambos os lados da linha de cessar-fogo. Seu negócio de energia, no entanto, está sob pressão do colega oligarca Ihor Kolomoysky, que, até recentemente, era considerado o maior vencedor da era pós-Maidan em termos de influência política.

Sendo a tragédia que foi, o povo enganado da Maidan se tornou um instrumento dessa disputa inter-oligárquica de ucranianos e russos. Oligarcas se uniram contra Ianukovytch, pois o poder deste ameaçava diretamente seus interesses desde a falha de integração com a Europa, já que este havia se aproximando da Rússia, e na Rússia os oligarcas como classe estão declinando e perdendo o poder, mais uma vez temos que entender isso dentro do quadro da luta de classes.

Com essa visão ampla da Maidan como esse evento que aumentou o poder dos oligarcas a alturas que nunca foram vistas antes, a questão é qual é o significado real da revolução na Novarrússia que serviu como contragolpe a Maidan com a proclamação das Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk e agora a operação especial russa na Ucrânia, qual o sentimento mais amplo dentro da Rússia e a forma como os ventos estão mudando dentro do país por causa da guerra. O que está acontecendo é uma situação em que essas pessoas que foram encaradas como um mau investimento por esses oligarcas e sua economia (e em certa medida pelos governos ucraniano e russo respectivamente), sendo logo deixadas para trás e mantidas puramente em um bote salva-vidas, estão agora pegando em armas e estabelecendo formas de poder político.

Todo o poder político vem do cano de uma arma, é o poder político que foi colocado na Chechênia e em outros lugares após a guerra, e é o poder político cujo governo não é simplesmente feito de capitalistas que se baseiam em controlar certos tipos de propriedade, mas em sua propriedade e captura do estado, que no caso está chegando às custas do poder dos oligarcas. Após pegar em armas, as pessoas no Donbass estão finalmente subindo para a ocasião de defender-se como um povo, não apenas como um povo no qual vale a pena investir no que diz respeito às medidas e políticas econômicas, mas também a fins de um estado regional, não mais ucraniano, e sim russo, da emergente Novarrússia.

É preciso entender a imensa revolução social que essas pessoas tem em suas mãos. Mesmo que elas não tivessem as aspirações revolucionárias dos ucranianos ocidentais, que estavam cansados da situação do país e simplesmente começaram a se revoltar indo as ruas a fim de destruir as coisas, os ucranianos orientais, não importando o quão ralados estivessem, não tiveram uma revolução assim, onde iam revoltados as ruas pedindo por mudanças. Eles estão defendendo a capacidade de manter o status quo, assim como na Revolução Iraniana, sendo ambas revoluções de natureza heideggeriana.

No caso, o status quo não é o que pensamos que é, o status quo é a essência, é em termos heideggerianos o dasein da civilização soviética. Essa revolução que as pessoas no leste da Ucrânia estão lutando por não é uma revolução para se sair na rua e implementar mudanças, é uma revolução para se defender o que têm, já que é isso que justamente está em disputa e é o que mina o poder dos oligarcas. O que está sendo trazido à tona é a existência dos povos russos e soviéticos em geral.

Se os fins e objetivos dessa polaridade e modo de produção serão ou não sobre o modo de vida, a cultura, e a herança soviética desse povo como um todo, as consequências econômicas disso nós nem vimos até agora em relação ao sistema que está em vigor. Podemos esperar que mais estatizações aconteçam, que os oligarcas tenham seu poder completamente minado, uma verdadeira revolução pelo reinvestimento da civilização russa.

Essas são acima de tudo revoluções genuinamente democráticas, tendo em conta que estas eram regiões literalmente governadas por oligarcas anteriormente, a República Popular de Donetsk e Lugansk escolhem seus líderes com base em eleições, nas pessoas que querem. O que estamos testemunhando é uma espécie de “revolução democrática burguesa”, por mais que esse seja um termo arcaico, o que está acontecendo no Donbass é uma autêntica revolução democrática, como aquelas que trouxeram independência aos povos da América Latina do colonialismo europeu. O povo da Ucrânia Oriental está quebrando o controle sobre o poder político que os oligarcas possuem, para que o estado não possa ser usado como braço do monopólio financeiro desses capitalistas.

Este é um solo fértil sem precedentes para que uma pequena burguesia em ascensão possa ter uma chance, em uma nova era para o povo e a economia russa, uma revolução democrática genuinamente progressiva e autêntica. Essa é a história que muitos estão perdendo, a democracia soviética foi destruída por um regime oligárquico, de uma perspectiva materialista, as implicações dessa revolução democrática são abertas. Não está claro nem se Putin vai sobreviver a esta revolução, o povo russo foi despertado a tal ponto que não tem retorno, eles não estão mais aceitando a necrose e a decadência de seu passado soviético.

O povo russo pretende chegar à ocasião de ter sua esfera e polaridade reconhecida como algo pelo qual vale não apenas lutar por com armas, esse novo vlasti russo valerá o investimento justamente por que as pessoas estão colocando neste algo que vale mais que todo o dinheiro do mundo, o seu próprio sangue. Que é objetivamente aquilo que vem definindo épocas históricas bem antes do próprio capital.

O capitalismo emergiu do contexto de guerra, mais especificamente da Guerra Civil Inglesa e da Guerra dos 30 anos. A capacidade do soberano exercer seu poder pelo sangue é o contexto que lançou por definitivo as bases para a modernidade, exceto que neste caso não temos em termos hobbesianos esse “leviatã” soberano e abstrato da modernidade, temos o vlasti e a polaridade do mundo russo se afirmando e pagando por esta com seu próprio sangue na guerra.

Não estamos olhando para o renascimento da União Soviética, e sim para algo que vai além da própria União Soviética, para um despertar que eu ainda acredito que o Partido Comunista da Federação Russa está melhor equipado para fornecer a liderança necessária. Toda a conversa sobre nacionalizar ativos e mudar completamente a economia são drásticas. Mudanças no próprio simbolismo vem sendo discutidas, quero dizer, o Partido Comunista da Federação Russa algumas semanas atrás propôs seriamente através de um projeto de lei enviado à Duma do estado que restabeleça a bandeira soviética como a bandeira oficial da Rússia.

O Partido Comunista da Federação Russa vem liderando esse caminho, isso porque eles representam desde o início os movimentos de independência do Donbass, representam desde o início o apoio a adesão da Crimeia à Federação Russa. Os comunistas vêm desde o início liderando e representando os antigos povos russos e soviéticos deixados para trás, é aqui que o partido traça sua base de apoio material. A Maidan foi uma falsa revolução, uma falsa derrubada de oligarcas, mas esta é a verdadeira revolução que está acontecendo agora.

Por uma perspectiva materialista, a Rússia está voltando à grandeza, se tornando uma grande potência novamente, não apenas por causa de sua operação especial na Ucrânia, mas também porque há uma revolução social e uma luta de classes acontecendo na Rússia, que está destronando o poder da classe oligárquica, e o que vem a seguir para isso é uma questão aberta. A ponto é que a escravização e a venda da Rússia e suas riquezas para o capitalismo financeiro internacional acabou.

A Rússia vai agora construir sua riqueza através da força e do poder de seu próprio povo, junto de uma integração econômica com a China, não mais com a utopia da Maidan, o Ocidente.

 

A opinião do/a/s autor/a/s não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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