Apresentamos a seguir alguns pontos de análise sobre a tese do Supremo Tribunal Federal (STF), estruturada em treze tópicos, resultante do julgamento do Recurso Extraordinário 1.017.365, de repercussão geral, concluído no dia 27 de setembro.
Nesta abordagem, tecemos comentários aos aspectos relevantes da tese do STF, que podem nos ajudar a entender a decisão que se mostrou bem complexa.
Na ocasião, a Corte fixou o entendimento de que a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que os povos indígenas tradicionalmente ocupam não depende da sua presença no território em 5 de outubro de 1988 ou da configuração do esbulho renitente.
Os pontos que destacamos em relação ao julgamento são os seguintes:
- O STF declarou inconstitucional a tese do marco temporal, pondo fim a esse debate no judiciário.
- O STF reafirmou os direitos originários, ou seja, reconheceu que os direitos indígenas são pré-existentes, anteriores à colonização europeia.
- O STF reconheceu que as terras dos povos indígenas são aquelas “por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.
- A tese assegura a possibilidade de que os povos venham a requerer a revisão dos limites de demarcações já realizadas; no entanto, especifica prazo decadencial de cinco anos para que seja solicitada a revisão, contados a partir da homologação presidencial da terra indígena. Entretanto, observa-se que aqueles pedidos de revisão de limites já feitos junto à Funai até a data do julgamento do STF, em 27 de setembro de 2023, são válidos, bem como as demandas judicializadas e sem decisão judicial definitiva, não sendo incluídos ao prazo decadencial.
- O STF julgou que a preservação ambiental é compatível com a ocupação tradicional indígena, assegurando que as comunidades utilizem as áreas para atividades de subsistência na forma tradicional, que não impactam, por óbvio, o meio ambiente.
- O STF reforça, na tese, que os direitos indígenas são meramente declaratórios, ou seja, não são direitos criados, mas reconhecidos como plenamente eficazes.
- Embora não tenha sido acrescentado na tese, o STF também referiu que os direitos indígenas estão entre aqueles caracterizados como fundamentais – expressos no artigo 5º da Constituição Federal de 1988.
- As terras indígenas destinam-se ao usufruto exclusivo dos povos e de ninguém mais. Embora o debate sobre exploração de recurso naturais existentes em terras indígenas tenha aparecido, consubstanciado no voto do ministro Dias Toffoli, o que flexibilizaria o usufruto, ele foi retirado da tese final aprovada pela Corte.
- O STF determinou que todo o judiciário passe a reconhecer os indígenas com plena capacidade jurídica, ou seja, assegura que em todas as demandas judiciais – contra ou a favor das comunidades – elas venham a ser reconhecidas como partes – litisconsortes necessários –, direito fundamental já previsto no artigo 232 da Constituição Federal. O efeito desse direito é a nulidade dos processos onde os indígenas não foram ouvidos e tiveram qualquer prejuízo.
- O STF reforça, através da tese, que os ocupantes de terras indígenas, sendo eles de boa-fé, têm direito à indenização pelas benfeitorias edificadas sobre as áreas indígenas – já havia essa previsão constitucional.
- Os ocupantes de boa-fé – pessoas que compraram terras e depois souberam que estas eram indígenas – também terão reconhecidos os seus títulos de propriedades como legítimos, para fins de indenização pelo valor da terra nua e para garantia do direito de retenção até o depósito do valor do incontroverso.
- O STF introduziu em sua tese uma espécie de marco temporal para indenizações de benfeitorias, posses e de títulos legítimos – sempre de boa-fé – aos ocupantes daquelas áreas indígenas que foram demarcadas ou reivindicadas para demarcação depois da promulgação da Constituição Federal de 1988. As indenizações serão concedidas apenas nos casos em que não houvesse a presença indígena e nem renitente esbulho na terra quando da aquisição dos títulos ou da concessão de posse.
- Assim, os detentores de título de domínio, quando de boa-fé, serão indenizados pela União no valor da terra nua, mais o valor das benfeitorias, sem excluir a responsabilidade dos entes federados – estados ou municípios – que promoveram a concessão de títulos de propriedade ou que tenham concedido direito de posse a agricultores, fazendeiros e posseiros nas áreas indígenas.
- As indenizações poderão ser concedidas em duas modalidades, sendo que a primeira delas, o reassentamento, é prioridade. Não sendo possível o reassentamento, a indenização pode ser por meio do pagamento no valor da terra nua em dinheiro ou através de títulos da dívida pública, desde que com a concordância do agricultor.
- Quando for inviável o reassentamento, caberá à União, a partir da legislação, fazer a avaliação do valor correspondente da terra nua a ser indenizada, e efetuar o pagamento do valor “incontroverso” – aquele que a própria União reconhece como devido. Caso a União não pague este valor, os possuidores de títulos de boa-fé terão o direito de retenção, ou seja, eles não precisam desocupar a área, mesmo que esteja demarcada.
- O pagamento das indenizações deve ser prévio, ou seja, antes mesmo de ser concluído o procedimento de demarcação.
- Se o ocupante da terra indígena avaliar que este valor “incontroverso” não corresponde a sua proposta e expectativa, pode requerer administrativamente da União a revisão para que o valor da indenização seja complementado, sem prejuízo de possível ação judicial. A discussão acerca dos pagamentos será feita em procedimento apartado, separado daquele de identificação e delimitação da terra indígena. Diferente do valor “incontroverso”, avaliado pela União, este valor extra poderá ser discutido judicial ou administrativamente, mas não dá aos ocupantes o direito de retenção da posse da terra.
- Pela tese do STF, o direito à terra indígena – reconhecida como tal através de procedimento demarcatório – não se põe a questionamento. Ao terceiro afetado caberá apenas direito à indenização com base no valor da terra nua, mais as benfeitorias, podendo ser utilizado como fundamento o que é previsto no artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição Federal de 1988 – indenização por ato ilícito.
- Não caberá indenização alguma quando a ocupação for de má fé. Nesses casos, o ocupante perde qualquer direito às benfeitorias, à posse e aos títulos de propriedade.
- Não cabe indenização aos ocupantes de terras indígenas que já tenham publicada a Portaria Declaratória. Essa fase do processo de demarcação também é tomada como fase pacificadora em relação à tradicionalidade, garantindo aos indígenas, a partir daí, direito à posse da terra após o depósito do valor incontroverso.
- O STF reafirma a possibilidade de criação de reservas indígenas naquelas situações em que houver absoluta impossibilidade de aplicação dos direitos constitucionais de demarcação de terras. Nesse caso – e somente nesse caso – se autoriza a criação de reservas indígenas, inclusive com autocomposição entre os entes da federação – estados e municípios – no sentido de definir, com anuência das comunidades indígenas, a área a ser reservada.
- Os laudos antropológicos constituem-se num dos elementos fundamentais para comprovação de terra indígena. Nesse sentido, se poderia dizer que a antropologia é a ciência que aglutina todas as demais provas que se constituem como fundamento do RCID – Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação.
A tese de repercussão geral – RE 1.017.365 – proposta pelos ministros do STF teve um caráter bastante abrangente, buscando dar amplitude ao entendimento acerca dos direitos constitucionais dos povos indígenas, consagrados desde 1988. No entanto, introduziu condicionantes que se contrapõem ao texto constitucional, especialmente ao prever indenização pela terra nua, reconhecendo como válidos os títulos de propriedades que venham a ser reconhecidos como de boa-fé, mas que, pelos ditames do artigo 231, parágrafo 6º, são considerados nulos, portanto, sem eficácia jurídica.
A tese, ao referendar indenizações, atende pleitos de setores ruralistas. Todavia, impõe ao governo federal o ônus de pagar a conta: caso não as pague ao possuidor, este permanecerá na área indígena – que é um bem da União para usufruto exclusivo dos indígenas –, esbulhando e causando outros danos ao patrimônio, às vidas e aos modos de ser dos povos indígenas.
Além do que, se introduz na tese uma espécie de marco temporal às avessas, quando se garante a posse, as benfeitorias e os títulos daqueles que ocuparam terras indígenas desde a vigência da Constituição Federal de 1988, condicionando esses direitos a que não houvesse a ocupação indígena e nem renitente esbulho na área em 5 de outubro de 1988.
O governo federal, desde logo, precisa retomar todos os procedimentos de demarcações de terras paralisados por influência tese do marco temporal, mas precisará dedicar atenção – além das normas próprias estabelecidas pelo Decerto 1775/1996 e pela Portaria 14/1996, que regulamentam os procedimentos demarcatórios – e criar estruturas administrativas para identificação dos títulos de boa-fé, até então nulos, e promover, tecnicamente, os levantamentos dos valores dos títulos correspondentes à terra nua.
Para além disso, os Grupos Técnicos (GT) que farão os estudos demarcatórios deverão contar com especialistas em direito agrário, em levantamento fundiário, cartorial e histórico, além de antropólogos, geólogos, arqueólogos e etno-historiadores.
O governo federal, por fim, tem a responsabilidade de constituir um fundo específico para os custeios indenizatórios e reservar terras adicionais a serem ofertadas através do reassentamento de ocupantes não indígenas.
Os desafios dos povos indígenas, em relação ao acesso à terra que não foi demarcada ou regularizada, serão maiores do que se previa.
E, ainda, corre-se o risco de haver uma intensificação das ameaças e outras formas graves de violências.
Chapecó, 02 de outubro de 2023.
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