Um valentão no STF

Por Lucas Martins

Eike Batista, outrora um dos homens mais ricos do Brasil e do mundo, foi preso na segunda-feira (30) por conta da Operação Lava Jato, acusado de pagar propina para o ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral. Neste momento, ainda está preso no complexo penitenciário de Gericinó, Bangu, RJ. A prisão causou alvoroço no país, em alguns noticiários mundo afora, nas principais redes de notícias e nas redes sociais. Mesmo com as impressionantes e hollywoodianas prisões da Operação, quem imaginaria ver Eike de cabeça raspada, vestido de presidiário junto de outros presos tão comuns? Justiça, afinal?

O que se espera agora é que o ex-empresário e novo preso faça uma delação premiada, delate alguns de seus antigos aliados, muitos dos quais importantes figurões do cenário politico, para que assim sua desagradável estadia dentro dos muros de Bangu seja rápida ou para que passe logo para o regime semiaberto. Dependendo de quantos e de quem ele delatar, talvez ele possa até ter a pena mudada para prisão domiciliar…

Nas palavras do próprio Eike, a Lava Jato está passando o país a limpo. Quem sabe o que Eike quis dizer? Só ele mesmo, em companhia de Deus. Para os meros mortais é bom lembrar que, com base nos dados que existem, a Lava-Jato é apenas uma ação política, que limpa o que interessa e arquiva o que não convém. Mas, deixemos as considerações jurídicas para os juristas. O que mais espanta na prisão de Eike não é a seletividade das instituições brasileiras, mas a confirmação de que não se odeia o crime, mas a cor e a condição social de quem o comete.

O Brasil é o país do linchamento, do “bandido bom, é bandido morto” – mas só para negros e pobres. Virou clichê fazer essa análise, mais repetido que isso só mesmo o número de jovens, negros e pobres que são mortos, presos e injustiçados todos os dias e que não recebem apoio ou chance de se defender como Eike recebeu.

Nada menos do que 42% dos presos (232.244 almas) estão atrás das grades sem condenação (sem julgamento), como aponta o DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional). Muitos desses compartilham uma característica em com Eike: não têm ensino superior completo. Todos pudemos acompanhar a preocupação dos advogados de Eike com a qualidade do presídio para qual seria levado.

Rio de Janeiro - Empresário Eike Batista deixa a sede da PF, na região portuária da cidade, após depoimento na Delegacia de Combate ao Crime Organizado e Desvio de Recursos (Fernando Frazão/Agência Brasil)
Rio de Janeiro – Empresário Eike Batista deixa a sede da PF, na região portuária da cidade, após depoimento na Delegacia de Combate ao Crime Organizado e Desvio de Recursos (Fernando Frazão/Agência Brasil)

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fonte: (http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/documentos/relatorio-depen-versao-web.pdf)

O novo preso está junto com o 1% que tem ensino superior incompleto, sendo assim não tem direito a ficar no regime especial, concedido para quem tem diploma universitário, membros das forças armadas, ministros, governadores e juízes.

Agora vem a grande pergunta, qual a diferença entre o criminoso Eike de seus pares de cela? As características que o diferenciam da maioria dos presos brasileiros são duas em especiais: não é negro e não é pobre.

A lei de Drogas, que passou a vigorar em 2006, em vez de ajudar, produziu um efeito reverso e aumentou a superlotação nos presídios, uma vez que deixa para o juiz a responsabilidade de decidir entre as penas alternativas (para aqueles considerados usuários) ou a prisão (para aqueles considerados traficantes), sem critérios claros (quantidade, redes de contato, organização). Isso acaba por tornar mais fácil para o sistema judicial criminalizar os estereótipos de criminoso: o pobre e negro.

Mas a criminalização da pobreza não se restringe aos crimes ligados às drogas. Enquanto os casos relacionados a tráfico encarceram 25% dos Homens e 63% das mulheres, o segundo maior motivo de prisão para os homens é roubo (21%) e para mulheres furtos(8%) –crimes em grande parte decorrentes da pobreza. E a natureza racista do judiciário brasileiro fica em evidência quando se percebe que 67% dos presos são negros e 31%, brancos. Peguemos o caso de Thor Batista, filho de Eike, e Rafael Braga de exemplo.

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O primeiro foi acusado de matar um ciclista (Wanderson Pereira dos Santos) em 2012, em um caso de grande repercussão, cheio de idas e vindas, anulações de provas (houve um laudo rejeitado pelo TJ-RJ que atestava a velocidade acima da permitida) e afastamento, pelo TJ-RJ, do perito que produziu o laudo técnico que apontava como causa do acidente a velocidade alta em que estava Thor. Uma juíza da primeira instância pediu uma investigação sobre Eike e Thor, por suposto pagamento para o bombeiro que socorreu a vítima, mas a investigação não ocorreu. O fim do caso foi em 2015 com a absolvição de Thor.

Já o segundo, Rafael Braga negro e morador de rua, foi acusado de portar material explosivo durante as manifestações de 2013, também no Rio de Janeiro. O laudo técnico apresentado para o juiz atestava que o material analisado tinha pouco potencial explosivo. Rafael explicou por que: tratava-se de duas garrafas de desinfetante (!!!). Mas, essa constatação não foi o suficiente para o juiz. O menino negro tinha, na ficha, um registro antecedente por roubo e acabou preso. O caso ganhando relevância nacional por conta da relação com as manifestações, e foi usado para expor a perseguição seletiva da polícia.

Outros casos interessantes para comparação são os do ex-médico Roger Abdelmassih e de Amarildo. Enquanto um tem seu caso analisado pela suprema corte do país, o outro nem tem a chance de ser criminalmente apontado –é apenas assassinado por forças estatais.

O médico branco e rico, famoso por ser especialista em inseminação artificial, foi condenado formalmente em 2010 por estupro contra 37 mulheres. A sua pena foi estipulada em 278 anos. Existe também outra investigação pelo estupro de mais 26 mulheres. As acusações são de pacientes, que relatam os abusos durante tratamentos –muitos, inclusive, ocorreram enquanto estavam sedadas.

Mas, mesmo com a condenação, Gilmar Mendes, presidente do STF na época, lhe concedeu um habeas corpus por não considerá-lo perigoso. Foi o que bastou para ele fugir do país, sendo preso novamente somente em 2014.

Já Amarildo, negro e pobre, não chegou a lidar com o sistema judicial. Foi apreendido por policiais enquanto estava em um bar em julho de 2013 e levado para a sede da UPP da região, na favela da Rocinha. Depois de torturado na sede da UPP, sumiu e até hoje seu corpo não foi encontrado. Amarildo tinha 47 anos, uma mulher e seis filhos e trabalhava como pedreiro.

Assim é a Justiça no Brasil. Mas o país, com a quarta maior população carcerária do mundo (atrás apenas de EUA, Rússia e China), para muitos ainda é o país da impunidade. Diz-se que se pune pouco o bandido. Sendo assim, o presidente golpista, com uma dose de cinismo e uma boa pitada de populismo, aproveita a misteriosa morte de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) para indicar Alexandre de Moraes, antigo homem de ferro do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB). Moraes, o filiado ao PSDB que é inimigo declarado dos direitos humanos.

Ou não?

Como secretário de Segurança Pública de São Paulo, ele reprimiu com violência internacionalmente repudiada diversas manifestações políticas que estavam em desacordo com a agenda do governador, inclusive de estudantes secundaristas que se organizavam contra propostas do governo. Coincidentemente, durante sua chefia da polícia paulista, diversas chacinas ocorreram, muitas ligadas a grupos de extermínio da PM, como as chacinas de Itapevi, Carapicuíba e Osasco, na qual seis pessoas morreram e uma ficou ferida. Seguiu-se mais uma chacina na qual dezessete foram mortas e seis feridas, novamente em Osasco e Barueri. Vale lembrar que a PM-SP durante a gestão de Moraes manteve nas nuvens o índice de letalidade policial.

Já como ministro da Justiça, Moraes tornou prioritária a guerra às drogas, e o controle fronteiriço, atuando em direção oposta à preconizada pelo mundo, que se dá conta da falência da criminalização das drogas, política de segurança pública que só serve para encarcerar parcelas vulneráveis da população.

Foi durante a gestão de Alexandre de Moraes que explodiu o caos no sistema prisional, neste começo de 2017. Sua primeira providência foi negar o envolvimento de facções. Foi desmentido pelos fatos.

O programa de segurança pública de Alexandre de Moraes não se preocupa com a discriminação por parte da Justiça. Não se preocupa com o encarceramento em massa. Quer até reforçá-lo. Ele é o homem certo para a linha preconceituosa e punitivista do governo.

A Justiça deveria tratar todos como iguais, mas é impossível imaginar isso em um país no qual desejar a morte de Eike, rico e branco, causa (e deve mesmo) calafrios, mas as cenas de guerra nos presídios são acompanhadas de exortações do tipo “que venham mais”, faladas por pais na frente de crianças. Eike não é bom morto. Ele pode ser um bandido, mas para que matá-lo, além da torpe e desumana vingança? Então, ainda fica a dúvida. Qual a diferença entre um empresário que subornou um governador e um garoto qualquer, que, para muita gente, se não foi morto pela polícia, deveria ter sido?

Foto de capa: foto Marcelo Camargo/Age?ncia Brasil/fotospublicas.com

Fonte: Jornalistas Livres

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