Por Jéssica Ipólito.
Se eu pudesse voltar uns anos atrás na minha vida, eu faria só por causa da minha mãe. A colocaria sentada no sofá, confortavelmente, e conversaria. Calmamente. Explicaria que a filha dela é lésbica. É lésbica porque sente atração por mulheres, afetiva-sexualmente e que não há nada de errado nisso. Deixaria bem claro que não foi culpa dela… de ninguém, bem como a minha prima gostar de homem também não foi culpa de um alguém.
Explicaria várias vezes pra essa senhora, tomada pela religião, que não há cura pra quem não está doente… E evitaria ter ouvido “Filha, vamos ao médico”.
Mãe, eu ainda lembro disso, mas não me dói como antes porque hoje eu compreendo melhor a senhora do que quando eu tinha 15 anos. De verdade, eu passei a entender suas motivações para ter chegado a um extremo como esse. Te digo que não foi fácil. Muitas foram as vezes em que eu não quis falar contigo por causa dessa frase e de tantas outras que foram ditas pela sua boca. Também consegui lidar da melhor forma possível com seus olhos fechados diante de mim. Os olhos que por anos me protegeram fielmente, e que de uma hora pra outra, se negava a enxergar o óbvio: que a sua filha não havia mudado por gostar de mulheres. A menininha continua com os mesmos valores que lhe foram dados desde o inicio dos anos. Nada se esvaiu.
Revelar algo que não deveria ser segredo tinha que ser tranquilo, se o seu medo não fosse tão grande. Se o seu preconceito não te cegasse tanto a ponto de.
Mãe, nunca houve nada de errado comigo. A senhora foi protagonista da minha vida durante muitos anos, mas eu tomei as rédias da situação agora.
Só agora, depois de ter errado e ter adquirido certa ‘experiência’, vejo que daria pra ter sido diferente entre nós duas.
Nós duas que sempre fomos tão sozinhas na nossa casa. Que sofremos com a morte do seu filho -e meu irmão- uma do lado da outra. Que sofremos com o descaso do homem que você escolheu para caminhar lado a lado. E que veja bem: não foi culpa sua. Ele que foi –e continua sendo– um canalha sem empatia e responsabilidade. Esse mesmo que nunca nos amou, só nos desrespeitou e humilhou. Você sabe do que eu estou falando, mãe…
Nós duas, tão juntas o tempo todo mas tão distante nas percepções do mundo.
Disso tudo eu entendo.Você várias vezes me disse que sua criação foi extremamente ruim, tendo que passar por milhões de dificuldades durante o caminho. Eu nunca esqueço das suas histórias do sítio, de como seu pai te tratava mal e te machucava; das vezes que você tinha que andar descalça pelo mato pra deixar o chinelo pra calçar só na escola -porque ele não podia ficar gasto demais. Sei do trabalho braçal que você era obrigada a fazer quando criança e, principalmente, da parte em que te negaram afeto e carinho.
Sei que há muita dor aí dentro de você, mas eu nunca quis ser sua parte ruim.
Quando fomos forçadas a conversar sobre mim -sobre o sexo da pessoa que eu amava-, eu senti que fui sua parte ruim por ter te desapontado. Mas passei por cima, fiquei triste sozinha, te poupei por me achar errada. Não acredito que isso foi o certo, mas quem irá dizer como seria realmente o certo, naquela época, né? Não dá.
Mas eu faria diferente, se caso desse. Como não dá pra mudar o que já foi, eu me permito deixar devidamente registrado isso aqui, pra quando você comprar um computador e começar sua aventura virtual. Eu sei que você vai achar meu blog por aí, por acaso -ou não. Sabe porquê? Porque esse é o pequeno espaço por onde eu começo traçar meu futuro profissional, mãe. Pode parecer quase nada diante das grandes personalidades da escrita que existem por aí, mas não será em vão.
Você nunca quis que eu fosse lésbica. Você nunca quis que eu fosse jornalista(ainda não, mas estou caminhando para.). Você nunca quis que eu fosse gorda. Você nunca quis que eu morasse longe. Você nunca quis que eu tivesse cabelo colorido e curtinho. E veja só você no que foi que eu me tornei: naquilo que você não queria. E isso não foi escrito com ironia, mãe. Eu sou subversiva por natureza, percebe? Não faço de propósito, é que eu acredito em mim dessa forma, só assim me sinto bem, forte suficiente pra vencer toda essa muralha de desafios que eu tenho pela frente.
Quero que você passe a acreditar verdadeiramente em mim, um dia desses. Sei que hoje você acredita um pouco mais do que há alguns anos atrás… Acontece que você tem muito medo que algo de ruim aconteça, né? Eu já te disse pra parar de assistir televisão, principalmente o Datena (isso causa câncer intelectual, sério!).
Olha, você precisa me deixar ir: sozinha. Eu cresci, mas você não quer entender isso pois vai perder sua garotinha que carece de zelo e cuidado. Mãe… você me deu tudo que eu precisava durante anos, não se preocupe mais. Você solidificou minha base muito bem, acredite nisso. Eu preciso aprender a voar sozinha agora.
Aqui comigo as coisas vão muito bem, apesar de eu guardar as coisas ruins só pra mim e mais ninguém. Acredite, eu amadureci muito depois de um tombo atrás do outro, um tombo atrás do outro. Me machuquei muito nessa trilha selvagem. Mas eu tô inteira; ficaram uns pedaços que não me serviam para trás… Coloquei fragmentos novos nas minhas lacunas. Eu me reinvento sempre que necessário, mãe.
Não sei o que você acha de mim agora, mas eu tenho me achado incrível!
Tem muito de você em mim, acredita? É verdade! Eu sei que não te conto essas coisas, mas é que isso veio de você, entendeu?! (e não é ruim!) Nós não somos assim…abertas&íntimas como muita mãe e filha é por aí. Mas nós temos nossas peculiaridades na comunicação, que às vezes funciona, outras não. O que é muito normal.
Sabe, às vezes converso com algumas meninas que acabaram de contar para a mãe e o pai, da sua lesbianidade (serem lésbicas, mãe!)… E a maioria passa por situações horríveis, tais como as que a gente já passou.
Acho que você um dia, poderia dar um depoimento contando como foi entender que tem uma filha lésbica. Um depoimento para mães&pais de meninas e mulheres lésbicas.É, seria legal. Não tem muito disso por aí…
Eu percebo que os pais se sentem rejeitados automaticamente. O que não deveria, mas vão de tabela por conta das filhas. Pois vocês sabem como a sociedade trata as pessoas que não são heterossexuais.
Você sabe, mãe, porque também tem seus preconceitos enraizados. E uma vez que acontece no seu quintal, aí o negócio muda de figura. Você sabe o que as pessoas vão falar porque é exatamente aquilo que você falava quando via uma sapatão na rua, ou um gay mais ‘afeminado’. A reação dos outros, era a sua reação… e essa sensação de saber o quão ruim é discriminar uma pessoa, bate de frente contigo, porque é sua filha quem sofre.
Hoje eu te escrevo isso motivada por uma garota que conversou comigo estando num momento muito ruim com a família. A única coisa que eu soube dizer a ela é que esperasse. Deixasse o tempo passar e que ela fosse suportando da “melhor” maneira possível.
Na maioria das vezes eu não sei o que dizer, mãe… É muito difícil porque ninguém deveria passar por esse tipo de dor. Essa dor da rejeição, a dor de não ter feito nada de ruim e mesmo assim ser penalizada por isso.
Quando você souber de um caso assim, dê apoio, mãe.
Ninguém apoia a gente. As pessoas acham errado e querem que nos tornemos parte de um molde que não corresponde ao que sentimos. Eu gostaria que você desse força porque, infelizmente, nada será favorável enquanto a maioria esmagadora for contra. É um belo trabalho de formiguinha: você apoia aquela senhora, que pode apoiar a outra, que vai apoiar o tio, que vai apoiar o senhor lá; formando um efeito dominó derrubando os preconceitos. Derrubando as barreiras da dor e estabelecendo o amor como premissa maior de todas.
Não é difícil. Vocês só precisam se livrar dessas amarras sociais que os prendem, lembrar dos valores que deram aos seus filhos/as e perceber o caminho que eles/as estão trilhando.
Você sempre me disse pra eu ser uma mulher de bem, de caráter. Nunca dever nada aos outros e sempre conseguir as coisas pelo meu esforço. E o que eu estou fazendo hoje?
Você também já me disse que as pessoas vem e vão e que eu precisava me acostumar com as perdas na minha vida. E o que eu fiz? Nunca esqueço, mãe…Espero que com isso, devidamente escrito e publicado, a senhora também não se esqueça de quem eu sou e, principalmente, não se esqueça que ninguém tem menos valor moral por amar uma pessoa do mesmo sexo. Isso é irrelevante, mãe.
PS: Isso serve a todos os outros pais e mães da rede, que por ventura, toparam a leitura até o fim.
Obrigada por continuar comigo, espero que você possa ler isso logo.
Att,
Sua filha
gorda e sapatão.
<3
(se você virar a cabeça, isso parece um coração, sério… coisa das internet, você acostuma)
Fonte: Gorda e sapatão.