Um presidente que não aprende. Por Cristiano Botafogo.

Durante a pandemia, todos aprendemos uma série de conceitos. Conceitos que foram sendo atualizados com o aparecimento de novas evidências. Mudar conclusões em função de novas evidências não é sinal de fraqueza, mas de honestidade intelectual e inteligência. Bolsonaro, no entanto, não aprendeu nada.

Foto: Instagram

Por Cristiano Botafogo.

Aprendemos sobre o conceito de “imunidade de rebanho”, que poderia acontecer por contaminação ou por vacinação, que a imunidade de rebanho depende da transmissibilidade do vírus, e que o estimado para o coronavírus original (não as variantes) era de coisa de 70%. No início da pandemia, levantou-se a hipótese de que as vacinas demorariam muitos anos para vir e que, portanto, seria impossível contar com ela. O objetivo, naquele momento, seria “achatar a curva”, ou seja, evitar que os hospitais ficassem cheios demais a ponto de colapsar o sistema. Por essa lógica do início da pandemia, seria inevitável que chegássemos, eventualmente, à imunidade de rebanho por contaminação, pois não poderíamos ficar trancados em casa por anos e anos até que as vacinas viessem. No entanto, estudos sorológicos de prevalência e letalidade pela covid foram publicados. A letalidade seria de coisa de 0,5%-0,7% dos infectados, o que levava à conclusão de que, se 0,5%-0,7% de 70% da população brasileira contraísse o vírus, 735.000–1.029.000 pessoas viriam a óbito por conta da doença, o que é absolutamente inaceitável e imoral.

O presidente, no entanto, defende até hoje a inevitabilidade da imunidade de rebanho por contaminação, que possui uma série de “senões”: grande número de mortos, risco de problemas para os infectados que sobrevivem (a covid longa), e a imunidade não duradoura (como visto pelo risco de reinfecção), etc.

Aprendemos também sobre o processo de desenvolvimento de vacinas e muitas foram criadas. Vetores virais, adenovírus, vacinas de RNA, vírus inativados, etc. Aprendemos que costuma ser um processo demorado. Contudo, para a vacina contra o sars-cov-2, não foi o caso, por uma série de motivos.

O presidente, no entanto, fez tudo o que pode para colocar desconfiança sobre as vacinas. Declarou que não tomaria, que não compraria a vacina chinesa, que essas não inspiravam confiança por sua origem. Gerou, com isso, atrito diplomático com o país atualmente responsável por 80% do IFA das vacinas aplicadas no Brasil até o momento. Disse que mais de metade das pessoas não tomariam a vacina e comemorou quando um dos voluntários do estudo de fase III da Coronavac veio a falecer.

Aprendemos a severidade do coronavírus nas mortes e nas sequelas, mas o presidente, no entanto, minimizou-o o quanto pode, transmitindo à uma parte significativa da sociedade que ainda o admira uma falsa sensação de segurança. Disse, reiteradamente, que “esse vírus é como uma chuva, vai pegar em 70% de vocês”, que que era uma gripezinha (“depois da facada não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar, não”). Em meados de 2020, declarou que “parece que está indo embora a questão do vírus”, e, já no final do ano, que estávamos num “finalzinho de pandemia”, que a pandemia estava acabando e que o que estávamos sofrendo era “um pequeno repique”. Ignorando os perigos do vírus, declarou que temos “que enfrentar como homem, e não como moleque”, que o vírus não causaria estragos aqui porque “o brasileiro tem que ser estudado, entra no esgoto e não acontece nada”, que era “histeria”, que “o poder destruidor do vírus” estava sendo “superestimado”, etc. Defendeu a tese de que havia muita morte sendo atribuída falsamente à covid (o eterno mantra do “morreu com covid e não de covid”) e que “muita gente já ia morrer mesmo, muito idoso que se pegasse qualquer coisa ia morrer”. Recentemente, no dia 14/4/21, com 13 meses de pandemia, um admirador lhe diz que “o vírus vai existir sempre”, ao que o presidente repete “vai, nunca mais vai embora”, ou seja, não tinha o que fazer. O vírus provavelmente se tornará endêmico, como outros, mas isso não significa que não devamos controlá-lo. Na mesma fala, Bolsonaro também revela que pediu para o Ministério fazer um levantamento de 5 anos de mortes, dizendo que “problema de coração praticamente acabou no Brasil, morre pouca gente, morre de doenças respiratórias pouca gente também. Tudo é covid”, reiterando, até hoje, o mote da “fraudemia”.

Aprendemos que uma das melhores estratégias a funcionar contra a pandemia era a testagem em massa e o rastreio de contatos. O Ministério da Saúde e o presidente, no entanto, deixaram testes estragando no aeroporto; e vocês ouviram as palavras “rastreamento de contatos” saindo da boca de alguém do governo federal?

Reaprendemos os conceitos de mutação, de seleção e de evolução dos vírus e que quanto mais cópias do vírus são feitas, mais chances há de uma mutação, que poderia trazer (e trouxe) ao vírus características ainda mais negativas. O presidente, no entanto, ignorou total e absolutamente o perigo, inclusive culpa as variantes pelo problema atual, como se não tivesse qualquer responsabilidade sobre o criadouro.

Aprendemos, ainda em meados do ano passado, como o processo de desenvolvimento de vacinas caminhava célere, e como seria, sim, possível a proteção por vacinas, o que justificava ainda mais a manutenção da proteção e dos cuidados.

presidente, no entanto, falou contra as vacinas, desincentivou seu uso, não as contratou precocemente e colocou todos os poucos ovos durante muito tempo na cesta da AstraZeneca. Defendeu o fim de todo e qualquer cuidado e a “volta a normalidade”. Só recentemente disse “seguindo as recomendações aí que estiverem em voga”, apesar de nunca ter feito qualquer recomendação, e, inclusive, as ter desincentivado constantemente.

Aprendemos que “covid” era feminino; “coronavirus disease”, ou seja, doença causada pelo coronavírus. O presidente, no entanto, fala “o covid” até hoje. Durante a fatídica reunião ministerial, quando todos já sabíamos disso e que certas condições como doenças cardiovasculares e diabetes aumentavam a susceptibilidade de pacientes à doença, as “comorbidades”, o presidente diz “codiv” e não se recorda do termo “comorbidades”.

Aprendemos que medicamentos testados para outras doenças poderiam funcionar contra o coronavírus. Apareceu o malfadado artigo do pesquisador francês apontando a possibilidade do tratamento com hidroxicloroquina e azitromicina. Os estudos avançaram, foram replicados e, os mais robustos (randomizados, controlados, etc.), demonstraram não haver diferença entre medicação e placebo, seja preventivamente ou em qualquer momento da infecção. O mesmo ocorreu com a ivermectina e a nitazoxanida. E, assim, partimos para outras possibilidades. Remdesivir? Regeneron? Soro do Butantan? Se foi demonstrado que não deu certo, partamos para a próxima tentativa. É o certo e inteligente a se fazer. Sem teorias da conspiração.

O presidente, no entanto, com uma visão torta do método científico e dos conceitos de correlação e causalidade, acha, até hoje, apesar de 80% das pessoas que tem covid se curarem sozinhas sem qualquer auxílio, o responsável pela cura da sua infecção foi a hidroxicloroquina, a ivermectina e a nitazoxanida. Repetiu exaustivamente que “mais de 200 funcionários do palácio tiveram, tomaram hidroxicloroquina e se safaram”. Mesmo meses depois de passarmos do “sem comprovação científica” para o “comprovadamente ineficaz”, o Ministério da Saúde e o presidente ainda promoviam o chamado “kit covid”. Ainda hoje o presidente o defende sob as vestes da “liberdade e autonomia do médico”, esquecendo que prescrever medicamento off-label comprovadamente ineficaz não é liberdade, é “erro médico” puro e simples.

Aprendemos, lá no início da pandemia, por conta do aumento do número de contágios e dado o desconhecimento da doença, que o melhor era procurar atendimento médico nos hospitais se houvesse falta de ar. Os números mostravam que, na maioria dos casos, a infecção seria branda ou não seria grave e que, como havia o risco de não ser alguma outra síndrome gripal ou do paciente se infectar com o coronavírus, a recomendação era manter o isolamento e procurar atendimento médico só em último caso, quando se tivesse falta de ar. Erramos. Desde então, aprendemos que o melhor era que as intervenções fossem realizadas antes disso.

O presidente, no entanto, distorce o fato acima para defender o “atendimento precoce” ou o “atendimento imediato”, a mais nova transmutação do “tratamento precoce”, apesar de todos saberem que ele não está falando de “atendimento”, mas sim do uso do “kit covid”.

Aprendemos também que algumas terapias, de fato, funcionam contra a tempestade de citocinas, a inflamação gerada pelo coronavírus no corpo dos pacientes mais graves (dexametasona, anticoagulantes) e como a posição “pronada” (de barriga para baixo) ajudava alguns pacientes. O presidente, no entanto, nunca as mencionou. Pelo contrário, vai atrás das que “ainda não tem dono”, como o spray nasal de Israel, para poder chamar de suas.

Aprendemos também que crises econômicas podem gerar perda de vida, de QALYs (perda de anos de vida de qualidade), mas que, segundo estudo realizado pela Fiocruz sobre os anos 2012 a 2017, não chegam nem perto do efeito do coronavírus e, se há contraponto por parte do Estado, isso se suaviza. O presidente, no entanto, insiste que “o efeito colateral do remédio não pode ser pior do que o vírus”, querendo dizer que as medidas restritivas matariam mais que o vírus. Não é; não matam.

Aprendemos que, dadas as características habitacionais do Brasil, onde muitas famílias se empilham em residências pequenas em favelas e etc., que seria inviável um lockdown restrito aos grupos de maior risco, ou seja, vertical. O presidente, no entanto, insiste até hoje no lockdown vertical dizendo que “devemos fazer uma campanha pro idoso ficar em casa, pra quem tem comorbidades ficar em casa e o resto vamos pro trampo, vamos trabalhar”. Um repórter o perguntou: “É possível isolar só a população de risco, presidente?”, ao que ele respondeu: “Ô, cara, cê tem que isolar quem você pode, pô. Você quer que eu faça o quê? Que eu tenha o poder de pegar cada idoso lá e levar pra um lugar? ‘Ó, fica aí, tá aqui uma pessoa pra te tratar’. É a família dele que tem que cuidar dele, rapaz. O povo tem que deixar de deixar tudo nas costas do poder público.” Políticas públicas não é com ele.

Aprendemos que a economia do Brasil é muito lastreada no setor de serviços, bastante dependente de presencialidade, e que esse setor só volta ou com irresponsabilidade e aumento do contágio e mortes ou com o estancamento da pandemia. O presidente, no entanto, ignora essa característica da economia brasileira, promove a irresponsabilidade e não trabalha pelo estancamento da pandemia. Como seu próprio Ministro da Economia disse recentemente, “sem saúde, não há economia”.

Aprendemos que o auxílio emergencial tem duas funções: i) compensar a renda perdida em um momento de crise causada pelo vírus; e ii) permitir que quem não pode trabalhar de casa, fique em casa, preservando sua segurança e a de outros. O presidente, no entanto, ignorou totalmente e continua ignorando (na segunda versão do auxílio) o segundo objetivo (o valor não permite que os beneficiários fiquem em casa) e só trabalhou sobre o primeiro por pressão do congresso, reduzindo significativamente a eficácia do auxílio.

Aprendemos que a principal via de disseminação do vírus é a aérea, e que a via de disseminação por contato era marginal. E que, portanto, deveríamos evitar encontrar pessoas de fora do nosso círculo íntimo. Que caso precisássemos encontrá-las, que deveríamos usar máscaras e dar preferência a locais abertos e com ótima ventilação. O presidente, no entanto, não usa máscaras, desincentiva o uso e aglomera cotidianamente, inclusive proibiu a obrigatoriedade de máscaras em vários locais.

Aprendemos que máscaras funcionam, e que algumas máscaras funcionam mais do que outras. E passamos a adotar as PFFs (ou N95) nas situações de maior risco em que éramos obrigados a estar. O presidente, no entanto, fala mal de máscaras em geral, e nunca promoveu qualquer política pública de incentivo ao uso, quiçá de PFFs.

Aprendemos que, mesmo valorizando a liberdade, não faz sentido defender inexoravelmente o direito de ir e vir nesse momento, dado que esse ir e vir pode matar. O presidente, no entanto, insiste no ponto, como se a liberdade de contaminar e possivelmente matar ou deixar sequelas no outro fosse algo admirável.

Sem máscara e sem manter distanciamento (assim como os seguranças e muitos dos “cercadiners”), em sua fala no cercadinho do dia 14/4 (repito, com espantosos 13 meses de pandemia), Bolsonaro demonstra não ter aprendido nada.

Mostra o celular com uma matéria do Correio Braziliense: “Brasil tem 125 milhões de pessoas que não sabem se vão se alimentar bem. Família com renda mais baixa sofrem com alta dos alimentos”. Ao que ele comenta: “O que que eu falei em março do ano passado? Aquela política ‘fique em casa, a economia a gente vê depois’, estão vendo. Quero saber se a imprensa agora vai apontar os verdadeiros responsáveis ou vai continuar apoiando a política do lockdown? Conversei com o Coronel Araújo da Ceagesp, que disse que os produtores de tomate estavam deixando de produzir porque não tem mais restaurantes e quitandas abertas. Em consequência, quando voltar a abrir, vão ter que plantar de novo e demora um pouquinho. Vai ter escassez, e o que é comum quando tem escassez? O preço sobe, vem inflação. Vão culpar quem?”

Como dito, políticas públicas não são com ele. Estoques públicos? Regulação de estoques? Estímulos ao produtor rural e a empresas? Nada. Tudo o que foi feito, foi implementado pelo Congresso.

Para ele, não há o que fazer contra o vírus, as mortes são inevitáveis e as restrições à circulação de pessoas só prejudicarão a economia. Portanto, aceita, sem mais problemas, as mortes.

Já está clara a intencionalidade do presidente no descontrole da pandemia, como revelado por estudo da USP/Conectas. Ademais, estudo recente da demógrafa Márcia Castro, coloca o governo federal como principal responsável. As evidências são fartíssimas e estão todas aí para todos verem.

Estamos no pior momento da pandemia, estacionando no tétrico patamar de 3000 mortes diárias. Continuando como estamos, perderemos, desnecessariamente, um número inaceitável de vidas, amores, amigos e companheiros. Ainda há tempo de salvá-los, mas precisamos mudar. Sem mudança, a pandemia, ao fim das contas matará mais de meio milhão de brasileiros. O presidente, no entanto, já deixou claro que não vai mudar.

Retirar Bolsonaro da cadeira presidencial pode salvar inúmeras vidas e é preciso fazê-lo.

Cristiano Botafogo é jornalista, editor e narrador do podcast Medo e Delírio em Brasília

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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