Um plano para liquidar o norte de Gaza está ganhando força

O próprio fato de que propostas abertas para matar de fome e exterminar centenas de milhares de pessoas estejam em debate demonstra precisamente onde a sociedade israelense está hoje.

Soldados israelenses operando na cidade de Gaza, 28 de julho de 2024. Foto: Erik Marmor/Flash90

Por Meron Rapoport, em parceria com Local Call.

A data é outubro, novembro ou dezembro de 2024, ou talvez o início de 2025. O exército israelense acaba de lançar uma nova operação em todo o norte de Gaza — “Operação Ordem e Limpeza”, como a chamaremos. O exército ordena a evacuação temporária de todos os moradores palestinos ao norte do Corredor Netzarim “para sua segurança pessoal”, explicando que “as FDIs (N. da T. Forças de Defesa de Israel) devem tomar medidas significativas na Cidade de Gaza nos próximos dias e quer evitar ferir civis”.

A ordem é semelhante à que os militares emitiram em 13 de outubro de 2023 para mais de 1 milhão de palestinos que viviam na Cidade de Gaza e seus arredores na época. Mas está claro para todos que, desta vez, Israel está planejando algo totalmente diferente.

Embora o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e o Ministro da Defesa Yoav Gallant permaneçam calados sobre os verdadeiros objetivos da operação, o Ministro das Finanças Bezalel Smotrich e o Ministro da Segurança Nacional Itamar Ben Gvir, assim como outros ministros da extrema direita, os declaram abertamente. Aqui, eles citam um programa que o “Fórum de Comandantes e Combatentes da Reserva”, liderado pelo Maj. Gen. (res.) Giora Eiland, propôs há apenas algumas semanas: ordenar que todos os moradores do norte de Gaza saiam dentro de uma semana, antes de impor um cerco total à área, incluindo o corte de todos os suprimentos de água, comida e combustível, até que aqueles que permanecerem se rendam ou morram de fome.

Outros israelenses proeminentes, nos últimos meses, também pediram aos militares que realizassem extermínio em massa no norte de Gaza. “Remover toda a população civil do norte, e quem permanecer lá será legalmente sentenciado como terrorista e submetido a um processo de fome ou extermínio”, elaborou o Prof. Uzi Rabi, pesquisador sênior da Universidade de Tel Aviv, em uma entrevista de rádio em 15 de setembro. E em agosto, de acordo com uma reportagem no Ynet, ministros do governo já haviam começado a pressionar Netanyahu para “limpar” o norte de Gaza de seus habitantes.

Outra proposta foi escrita em julho por vários acadêmicos israelenses, intitulada “De um regime assassino a uma sociedade moderada: A transformação e reconstrução de Gaza após o Hamas”. De acordo com esse plano, que foi submetido aos tomadores de decisão israelenses, a “derrota total” do Hamas é uma pré-condição para iniciar um processo de “desradicalização” dos palestinos em Gaza. “É importante que o público palestino também tenha uma ampla percepção da derrota do Hamas”, argumentaram seus autores, acrescentando: “Os ‘primeiros socorros’ podem começar em áreas expurgadas do Hamas”. Um dos autores da proposta, Dr. Harel Chorev, pesquisador sênior do Moshe Dayan Center, onde Rabi também trabalha, expressou total apoio ao plano de fome de Eiland.

Giora Eiland testemunha durante uma audiência do comitê de investigação civil sobre o massacre de 7 de outubro, em Tel Aviv, 8 de agosto de 2024. (Avshalom Sassoni/Flash90)

Giora Eiland testemunha durante uma audiência do comitê de investigação civil sobre o massacre de 7 de outubro, em Tel Aviv, 8 de agosto de 2024. (Avshalom Sassoni/Flash90)

Mas voltando ao nosso cenário: a “Operação Ordem e Limpeza” está em andamento, e apesar das ordens de evacuação do exército, cerca de 300.000 palestinos permanecem entre as ruínas da Cidade de Gaza e seus arredores, recusando-se a sair. Talvez eles fiquem porque viram o que aconteceu com seus vizinhos que partiram no início da guerra, acreditando que era uma evacuação temporária, e que até hoje vagam pelas ruas do sul de Gaza sem um lugar seguro para se abrigar. Talvez porque temam o Hamas, que pede aos moradores que recusem as ordens de evacuação de Israel. Ou talvez porque sintam que não têm mais nada a perder.

De qualquer forma, o exército impõe um bloqueio completo em uma semana a todos os que permanecem no norte de Gaza. Os combatentes do Hamas — o documento de Eiland estima que restem 5.000 no norte, mas ninguém sabe realmente o número real — se recusam a se render. Na televisão internacional e nas mídias sociais, pessoas ao redor do mundo assistem à Cidade de Gaza ser consumida pela fome em massa. “Preferimos morrer do que ir embora”, dizem os moradores aos jornalistas.

Na TV israelense, os comentaristas não estão convencidos de que esse movimento será decisivo para vencer a guerra. Mas eles concordam que uma “campanha de fome e extermínio” é preferível ao exército continuar a arrastar os pés em Gaza. Algumas vozes nos estúdios alertam sobre o dano potencial às relações públicas de Israel, mas, mesmo assim, o plano obtém o apoio da maioria do público judeu-israelense. Cidadãos palestinos de Israel, que intensificam seus protestos contra o genocídio, são presos até mesmo por postar sobre isso online, e a polícia suprime à força as manifestações da esquerda radical.

O Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, expressa preocupação, afirma que Washington está comprometido com a integridade territorial de Gaza e a solução de dois Estados, e alerta que esta última campanha pode sabotar as negociações para um acordo de reféns — mas Netanyahu não se comove. Sob pressão da direita, que vê a expulsão dos moradores da Cidade de Gaza como sua oportunidade de arrasar a área completamente e construir assentamentos sobre as ruínas, o exército inicia a fase de “extermínio” que Rabi delineou.

Como o exército alegou que os civis podem deixar o norte de Gaza — embora os soldados atirem aleatoriamente e matem os civis palestinos que tentam evacuar — ele trata qualquer um que permaneça na cidade como um terrorista. Essa estratégia se alinha com o que o tenente-coronel A., comandante do esquadrão de drones da Força Aérea Israelense, disse à Ynet em agosto sobre a operação para resgatar reféns no Campo de Nuseirat: “Quem não fugiu, mesmo que estivesse desarmado, no que nos diz respeito, era um terrorista. Todos que matamos deveriam ter sido mortos.”

Palestinos observam a destruição causada por uma operação militar israelense no campo de Nuseirat, no centro da Faixa de Gaza, em 8 de junho de 2024. (Khaled Ali/Flash90)

Palestinos observam a destruição causada por uma operação militar israelense no campo de Nuseirat, no centro da Faixa de Gaza, em 8 de junho de 2024. (Khaled Ali/Flash90)

A Cidade de Gaza está completamente destruída, e entre as ruínas estão os corpos de milhares ou talvez dezenas de milhares de palestinos. Ninguém sabe o número exato, porque a área continua sendo uma “zona militar fechada”. A Operação Ordem e Limpeza foi considerada um sucesso. O exército, conforme proposto no plano de Eiland, se prepara para replicar operações semelhantes em Khan Younis e Deir al-Balah. Em coordenação com os comandantes de campo, aparentemente sem a aprovação do Estado-Maior, o movimento revitalizado para reassentar Gaza — que está esperando nos bastidores há meses — começa a estabelecer as primeiras novas comunidades em áreas que foram “purgadas” de palestinos.

Um cenário provável, mas não inevitável 

Não há certeza de que esse cenário se materializará. Ele pode ser bloqueado em vários momentos: o exército pode transmitir que não está interessado na ocupação total da Faixa de Gaza, nem no restabelecimento de um governo militar lá. Os militares estão cientes de que uma operação em larga escala pode levar à execução dos reféns restantes, como aconteceu em Rafah, e não querem ser responsáveis ??por seu assassinato. Assim como temem que uma operação em larga escala em Gaza possa desencadear uma resposta mais forte do Hezbollah e, ??portanto, uma guerra intensa em duas frentes, ou talvez mais.

Apesar de toda a leniência que o governo dos EUA demonstrou com as ações genocidas de Israel em Gaza — matando de fome e aniquilando dezenas de milhares de palestinos — o próximo estágio pode ser demais até mesmo para o autoproclamado presidente “sionista” Joe Biden e a candidata presidencial Kamala Harris, que fala de “sofrimento palestino”. Este pode muito bem ser o movimento que forçará a Corte Internacional de Justiça (CIJ) a declarar que Israel está cometendo genocídio e agilizar o Tribunal Penal Internacional (TPI) a emitir mandados de prisão, e não apenas para Netanyahu e Gallant. 

Os países europeus, que até agora hesitaram em sancionar Israel, podem ir com tudo. Netanyahu pode concluir que o preço internacional de semelhante operação será alto demais — danem-se os desejos de seus aliados de direita.

Israelenses protestam pedindo a libertação de reféns em Gaza em frente à sede do Ministério da Defesa em Tel Aviv, 14 de setembro de 2024. (Avshalom Sassoni/Flash90)

Israelenses protestam pedindo a libertação de reféns em Gaza em frente à sede do Ministério da Defesa em Tel Aviv, 14 de setembro de 2024. (Avshalom Sassoni/Flash90)

A sociedade israelense também pode representar obstáculos à implementação do plano. Como evidenciado pelas manifestações em massa das últimas semanas , grande parte do público judeu-israelense perdeu a fé nas promessas do governo de “vitória total” em Gaza ou na noção de que “apenas a pressão militar libertará os reféns”. Liderados pelas famílias dos reféns — que se radicalizaram desde a recente execução dos seis reféns pelo Hamas em um túnel em Rafah — centenas de milhares de israelenses, ao que parece, querem não apenas ver os reféns retornando para casa, mas também deixar a guerra para trás. O plano Rabi-Eiland, que certamente prolongará a guerra em Gaza e provavelmente condenará o retorno dos reféns restantes, pode ser rejeitado por centenas de milhares de manifestantes precisamente por essas razões.

No entanto, também devemos admitir que o cenário que esbocei acima não é absurdo. Desde 7 de outubro, a sociedade israelense passou por um processo acelerado de desumanização em relação aos palestinos, e é difícil ver o exército se recusar em massa a realizar semelhante campanha de extermínio, certamente se for apresentada em etapas: primeiro forçando a saída da maioria dos moradores, seguido pela imposição de um cerco, e só então a eliminação daqueles que permanecem. 

Não é simplesmente uma questão de vingança pelas atrocidades cometidas pelo Hamas em 7 de outubro. Dentro da lógica distorcida que regula a política israelense em relação aos palestinos, a única maneira de restaurar a “dissuasão” após a humilhação militar de 7 de outubro é esmagar completamente o coletivo palestino, incluindo suas cidades e instituições.

Para alguns, pode ser fácil descartar as propostas israelenses para “terminar o trabalho” no norte de Gaza como uma bomba genocida, improvável de ser executada. Mas elas foram concebidas por Eiland, Rabi e outras pessoas influentes — não apenas aquelas no círculo “messiânico” de Ben Gvir e Smotrich. E independentemente do que aconteça nos próximos meses, o próprio fato de que propostas abertas para matar de fome e exterminar centenas de milhares de pessoas estejam em debate demonstra precisamente onde a sociedade israelense está hoje.

Nota: este artigo foi editado para esclarecer que a proposta acadêmica mencionada acima — intitulada “De um regime assassino a uma sociedade moderada: a transformação e reabilitação de Gaza após o Hamas” — não endossa a fome ou o extermínio, embora um de seus autores tenha expressado apoio ao plano Rabi-Eiland e até mesmo vinculado as duas propostas.

Uma versão deste artigo foi publicada pela primeira vez em hebraico no Local Call. Leia aqui .

Tradução: TFG, para Desacato.info.

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