Não sou de escrever sobre mortes de celebridades, provavelmente por pensar que, para cada grande trajetória famosa, há milhares de brilhantes anônimos que passam e que não tiveram suas histórias contadas e partilhadas com a humanidade exatamente por sua condição de não conhecidos, o que é uma perda experiencial sem tamanho para as pessoas – não é justo. Mas Jair Rodrigues parece ter transcendido um pouco essa polaridade entre estrelas e sujeitos sem luz, talvez por sua intensidade tão própria e aparentemente tão espontânea, diferente dos ensaios performáticos e gestuais minimamente calculados de tantas outras (sub) celebridades.
Eu tive uma única oportunidade de assistir a uma apresentação sua, meio de soslaio, numa madrugada da virada cultural em São Paulo, provavelmente há uns quatro anos. Essa experiência foi muito marcante. Poucas vezes pude ter contato com alguém que tinha e sabia usar seu instrumento de forma tão privilegiada. Eu, que fui educado no Rock – especialmente nas suas vertentes mais apoteóticas, agressivas e dramáticas – em geral pouco simpatizava com a maioria dos intérpretes brasileiros (pelo menos os do mainstream), notadamente por sua falta de potência e extensão vocais, de sua falta de entrega. Claro, há montes de contraexemplos, a minoria deles dentro do Rock nacional.
Tendo pouco convivido com outros gêneros, que pude admirar menos do que gostaria até hoje, eu nunca, de fato, dei a atenção devida a um colosso como Jair Rodrigues. Mas, a partir daquele dia, em frente à Praça da República, eu reconheci, ali, do meu jeito e a partir da minha sensibilidade restrita, um verdadeiro Rockstar, e muito, muito mais do que isso, porque ele era realmente capaz de cantar qualquer música, de qualquer forma, como se fosse a última. Ele podia atingir qualquer nota, e ir além – mas sabendo perfeitamente o que fazia: era “textbook” na sua catarse, uma suposta contradição que praticamente só ele conseguia resolver numa síntese dialética entre técnica e explosão.
Por sua tamanha energia, Jair parece que realmente viveu muito mais do que seus 75 anos. Por um lado, para uns ele poderia ter ultrapassado o centenário, dada sua vitalidade excêntrica; por outro, ele possivelmente viveu umas três vidas de pessoas comuns, como eu e você. Fato é que, por isso mesmo, foi capaz de marcar tantas outras vidas e produzir momentos tão diferenciados, cada um a sua maneira, para cada um de nós, independentemente do repertório (de vida) de cada um – inclusive para mim naquele show, quando ele já tinha mais de 70 anos e cantava com um fôlego que eu, com 25 e alguns anos de aulas de canto, não conseguia acompanhar. Seu legado é maior do que sua “pilha”, sua alegria e seu talento natural. Figuras como ele e Tim Maia transcenderam, e muito, o status de artistas: são a expressão e a vocalização da potência de humanidade que existe no interior de cada um de nós e que é solapada diariamente por outros interesses, questões, opressões. Que bom e inspirador é poder ver, ao menos, o quão longe podemos chegar nesse projeto de Existência, de Ser-no-Mundo. Jair Rodrigues era infinito.
Fonte: Jornal GGN.