Por Rita Coitinho, para Desacato.info.
Prestemos atenção à Declaração Conjunta dos ministros de Relações Exteriores da Federação Russa e da República Popular da China1, tornada pública no último dia 11 de setembro. Vejam bem: 11 de setembro. Data nem um pouco inocente para nós latino-americanos já desde o golpe de Estado ocorrido no Chile (que apeou o governo popular de Allende para que fosse implantada uma ditadura sanguinária) e elevada à condição de “marco” das relações globais desde aquele ano de 2001, quando os acontecimentos até hoje pouco explicados em território dos EUA deram ao governo de Bush Jr. o pretexto necessário à uma nova escalada de guerras e agressões no Afeganistão, depois no Iraque e… bem, todos sabemos – mas é sempre bom retomar, nunca se sabe que idade têm os leitores.
Pois bem. Parece que 11 de setembro de 2020 oferece ao mundo um novo marco: uma declaração conjunta que aborda simplesmente todos os pontos nodais da atual conjuntura política e econômica do mundo, assinada por nada menos do que as duas principais potências que desafiam, com sucesso, a escalada hegemonista da “grande potência mundial” (sabe-se lá até quando poderão os EUA serem assim classificados). Ao que parece, o fim já não está tão distante.
Desde 2001, quando sob o domínio dos chamados neocons no Departamento de Estado os EUA intensificaram as pressões pela construção de uma agenda internacional pautada nos temas da Segurança e da “luta contra o terror”, as instituições internacionais que caracterizaram a ordem mundial do pós-guerra vêm sendo desmoralizadas por seu principal ator. A sede das Nações Unidas não está em Nova Iorque por acidente, ou pela beleza de sua arquitetura, mas pela centralidade assumida pelos EUA em sua construção ao apagar das luzes do maior conflito bélico da história da humanidade. Quando os EUA invadiram o Iraque em 2003 sem a aprovação do Conselho de Segurança, estava dada, para qualquer bom entendedor, a senha. Os estadunidenses deixavam de preocupar-se com a aparência de legitimidade e partiam para a política declarada de superpotência.
Nos dias de hoje, com a administração de Donald Trump, o pouco que restava de “apego” às instituições do pós-guerra foi para o chão. Sob Trump, a tônica do conflito deixou de ser velada. Se as instituições não apoiam, os EUA não recuam. A grande potência, cuja economia já não tem a pujança de outros tempos, parte para a retórica da força e para a hostilidade declarada ao multilateralismo.
De outro lado a China, que emerge como a maior economia do mundo – e contra quem dirige-se a retórica de conflito dos EUA – apresenta-se como campeã do multilateralismo. Investe pesado em soft power, convertendo a crise mundial de saúde pública em momento de reafirmação da cooperação como saída coletiva para os problemas globais. À retórica de conflito de Trump, responde com propostas de cooperação. Nova Rota da Seda; Um cinturão, uma Rota; Comunidade de Destino Comum da Humanidade.
A Rússia, por sua vez, com uma economia não tão pujante, mas em franca recuperação e, ainda, potência nuclear, resiste em dupla frente: de um lado, precisa lidar com o cerco que nunca terminou, mesmo com o fim da guerra fria, em suas fronteiras. No entorno da Rússia, os interesses geopolíticos dos EUA e da Europa Ocidental alimentam – com armas e dinheiro – conflitos de tônica nacionalista e russófoba. De outro, aproxima-se cada vez mais da China, em uma aliança (até recentemente não escrita) de imenso peso político e militar que se apresenta ao mundo como alternativa à escalada de agressividade dos EUA.
É essa a tônica desta declaração de 11 de setembro, na qual as duas potências “conclamam a comunidade internacional a reforçar a interação, aprofundar a compreensão mútua, enfrentar conjuntamente os desafios e da estabilidade política e da recuperação econômica mundial”.
Uma síntese do documento
Em linhas gerais, as duas nações destacam o recrudescimento dos conflitos na arena internacional, sem nomear países, ao mesmo tempo em que demostram preocupação com a efetividade da agenda de desenvolvimento sustentável pactuada nas Nações Unidas para até 2030. Dentre as muitas dificuldades, apontam a pandemia do novo coronavírus como “o mais grave desafio global em tempos de paz”. Manifestam preocupação com o fato de que “estados individuais” (quem serão?) estejam a disseminar falsas informações, dificultando o combate ao problema e causando mais desconfianças mútuas no cenário global.
Como contraponto às ações desses “estados individuais”, China e Rússia reforçam seu compromisso com o fortalecimento das organizações internacionais, particularmente a OMS (atacada por um certo país grande e rico), à qual conferem papel central na “coordenação da cooperação internacional para o combate às epidemias”. Os dois países “defendem o aprofundamento da cooperação internacional [em saúde], bem como a aceleração do desenvolvimento de medicamentos e vacinas”. O documento sino-russo condena o que chama de “politização da pandemia”.
Em seguida, o documento destaca o 75º aniversário do fim da Segunda Guerra Mundial, classificada no texto como “a maior tragédia da história da humanidade, que ceifou dezenas de milhões de vidas”. Os dois países declaram que seus povos foram os mais golpeados: “União Soviética e China receberam o golpe principal do fascismo e do militarismo, suportaram o peso da resistência aos agressores, detiveram, derrotaram e destruíram os invasores à custa de enormes perdas humanas, ao mesmo tempo que mostravam dedicação e patriotismo sem paralelo”.
Afirmam, assim, seu compromisso com a verdade histórica quanto aos acontecimentos da segunda guerra mundial, que vêm sendo falseados por certas narrativas interessadas em manipular os trágicos acontecimentos da época, e declaram sua disposição em não permitir semelhante revisionismo histórico que busca converter os nazistas e seus cúmplices em heróis. Na esteira da afirmação do compromisso com a verdade histórica sobre a Guerra e da defesa dos princípios da Carta das Nações Unidas, China e Rússia reafirmam seu compromisso com o multilateralismo, com a cooperação e com o “Reforço do Papel do Direito Internacional de 25 de junho de 2016”, com a defesa da “paz global e estabilidade”, além da “justiça nos assuntos internacionais, reformando e melhorando o sistema de governança global. As partes rejeitam categoricamente a prática de ações unilaterais e de protecionismo, a política de força e a perseguição entre estados, a introdução de sanções unilaterais que não sejam amparadas por fundamentos jurídicos internacionais; rejeitam também a aplicação extraterritorial de legislação nacional”. Refutam, em seguida, o “velho pensamento” ainda fundado nas “categorias da Guerra Fria”, que apenas serve para gerar desconfianças e ameaçar a paz.
Como contraponto a essa lógica pautada no militarismo e em “velhas categorias”, o documento destaca a “importância de se manterem relações de interação construtiva entre as grandes potências com vistas a resolver problemas mundiais estratégicos em bases de igualdade e em espírito de respeito mútuo. Como membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU e como estados armados com armamento nuclear, as partes desempenham papel especial para preservar a estabilidade estratégica global e trabalham sob o espírito da Declaração Conjunta da Federação Russa e da República Popular da China assinada dia 5/6/2019, para fortalecer a estabilidade estratégica global na era moderna, para continuar a aprofundar a confiança estratégica mútua e manter a interação estratégica global e regional” e conclamam a comunidade internacional a reforçar a construção de políticas para controle de armas e não proliferação nuclear.
Ganham destaque também no documento as recentes ações de interferência em assuntos internos, tanto na China quanto na Rússia. As duas nações reagem ao cerco internacional e afirmam que “opõem-se à politização da agenda internacional de direitos humanos e opõem-se ao uso das questões de direitos humanos como pretexto para interferir nos assuntos internos de Estados soberanos” e “opõem-se à aplicação de duplos critérios nas atividades antiterroristas”, em uma clara alusão às ações dos EUA e da Europa para justificar invasões militares e interferências na política dos países que não se alinham aos seus objetivos.
Um tema central da atualidade, o uso das tecnologias de informação para a manipulação política, é abordado de forma contundente na declaração: “As partes conclamam a comunidade mundial a unir esforços na luta contra o uso de tecnologias de informação e comunicação para fins incompatíveis com os objetivos de manter a paz, a segurança e a estabilidade internacional e regional, bem como para atividades criminosas e terroristas executadas mediante tecnologias de informação e da comunicação. As partes defendem a prevenção de conflitos entre estados que possam surgir como resultado do uso ilegal de tecnologias de informação e comunicação e reafirmam o papel fundamental da ONU no combate às ameaças no campo da segurança da informação internacional”. Reagem aos bloqueios promovidos pelos EUA às suas empresas de tecnologia, e apelam à comunidade internacional para a busca de mecanismos normativos que garantam tanto a segurança dos dados dos cidadãos quanto o regramento dos sistemas, de modo a coibir sabotagens e interferências políticas. Reforçam, ainda, o papel regulador da OMC no comércio internacional, outra instituição frequentemente atacada pela gestão Trump.
Quanto aos problemas regionais (Coreia, Oriente Médio etc.), enfatizam os mecanismos multilaterais de solução de conflitos, ao invés das agressões e do financiamento externo de grupos armados. Concluem a declaração enfatizando seus mecanismos e iniciativas de cooperação, incluindo os BRICS, os quais encaram como saídas coletivas para o desenvolvimento conjunto e pacífico.
Um novo marco
Embora a cooperação sino-russa já não cause surpresas no cenário internacional do século XXI, a declaração conjunta das duas chancelarias revela uma clara tomada de posição da China e da Rússia diante da escalada nos conflitos políticos e econômicos entre China e EUA, causados fundamentalmente pela ação unilateral do governo de Donald Trump – com barreiras comerciais e ameaças frequentes, gestões junto a outros países com vistas ao bloqueio às empresas e tecnologias chinesas – e, ainda, do aumento das tensões no entorno russo com apoio declarado do “ocidente”, que também alimenta (e financia) tensões em Hong Kong e na região de Xinjiang.
Os dois países demonstram, com a publicação do documento, que estão unidos em um objetivo comum. Apresentam o multilateralismo como resposta ao cerco crescente do imperialismo dos EUA, em franca decadência e, por isso mesmo, cada vez mais agressivo e intervencionista – que o digamos nós, latino-americanos!
A crônica instabilidade interna dos Estados Unidos da América – uma nação que tem mais armas em mãos de civis do que adultos – para qual os conflitos externos têm sido a solução encontrada pelas elites dirigentes, há pelo menos 70 anos, para unificar a nação, torna-se cada vez mais perigosa. Tanto para os cidadãos daquele país, a beira de uma guerra civil, quanto para o mundo. Quando mais se aprofunda a crise política e econômica da maior potência militar do planeta, mais proliferam as retóricas de guerra e mais agressivas se tornam suas ações no cenário externo.
China e Rússia, duas potências militares, titulares de assentos permanentes no Conselho de Segurança, informaram ao mundo, neste 11 de setembro de 2020, que estão unidas em um esforço comum de reversão da lógica unilateralista que os EUA buscam impor pela força. Já não se trata de discurso, de “sinais diplomáticos” pouco evidentes. É uma atitude assertiva que promete impactar as relações globais. Um novo marco na história das relações internacionais.
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