Um mundo insano: Capitalismo e a epidemia de doenças mentais

Foto: Pixabay

Rod Tweedy e Mark Fisher – E se não for a gente quem está doente, mas um sistema em desacordo com quem somos como seres sociais?

[Nota de Tradução: Apresentamos abaixo dois textos discutindo a relação, cada vez mais escancarada, entre os valores incentivados em uma sociedade capitalista e os diversos tipos de sofrimento mental que se alastram por nossas sociedades modernas, deixando para trás a ideia dessas doenças como meras questões individuais:

I. Um Mundo Insano, de Rod Tweedy, comenta sobre pesquisas recentes nas áreas de psicologia e neurobiologia que vêm trazendo à luz questões coletivas relacionadas às doenças mentais, suas conexões com aspectos fundamentais da sociedade atual e desmontando os pressupostos básicos sobre o ser humano que permeiam os valores sociais sob o capitalismo.

II. Não Prestar Pra Nada, de Mark Fisher (publicado originalmente no medium do parceiro Victor Marques), apresenta a força de seu relato pessoal de luta contra a depressão e seu lento caminho de reflexões até a compreensão desse mal como uma questão política e social, para muito além de seu sofrimento individual.]


I. Um Mundo Insano

por Rod Tweedy, no site da Red Pepper, Agosto de 2017

As doenças mentais são agora reconhecidas como uma das maiores causas de sofrimento e miséria individual em nossas sociedades e cidades, comparáveis à pobreza e ao desemprego. Um em cada quatro adultos no Reino Unido hoje foi diagnosticado com uma doença mental e quatro milhões de pessoas tomam antidepressivos todos os anos. “Que maior acusação poderia existir contra um sistema do que uma epidemia de doença mental?”, pergunta George Monbiot.

A extensão chocante desta “epidemia” é ainda mais perturbadora pelo conhecimento de que grande parte disso poderia ser evitado. Isso se deve à correlação significativa entre as condições sociais e ambientais e a prevalência de transtornos mentais. Richard Bentall, professor de psicologia clínica na Universidade de Liverpool, e Peter Kinderman, presidente da Sociedade Britânica de Psicologia, têm escrito de forma convincente sobre essa conexão em anos recentes, atraindo uma atenção poderosa para “os determinantes sociais do nosso bem-estar psicológico”. “A evidência é irresistível, ” observa Kinderman, “não é só que existem determinantes sociais, eles são esmagadoramente importantes”.

Uma Sociedade Doente

Experiências de isolamento social, desigualdade, sentimentos de alienação e dissociação, e até mesmo os pressupostos e a ideologia básicos do materialismo e do neoliberalismo [1] em si, são hoje vistos como impulsionadores significativos – se refletindo nos títulos de uma série de artigos e palestras recentes sobre esse assunto, tais como as dos inovadores podcasts ‘Frontier Psychoanalyst’ do consultor em psicoterapia David Morgan, que incluíram discussões sobre se “O neoliberalismo é perigoso para sua saúde mental” e “O neoliberalismo está nos deixando doentes?”

O psicólogo clínico e psicoterapeuta Jay Watts observa no Guardian que:

“fatores psicológicos e sociais são pelo menos tão significativos e, para muitos, a principal causa do sofrimento. Pobreza, desigualdade relativa, estar sujeito ao racismo, ao sexismo, demissão e a uma cultura competitiva aumentam a probabilidade de sofrimento mental. Governos e empresas farmacêuticas não estão tão interessados nesses resultados, lançando financiamento em estudos que analisam genética e biomarcadores físicos em oposição às causas ambientais do sofrimento. Da mesma forma, há pouca vontade política de relacionar o aumento do sofrimento mental com desigualdades estruturais, embora a associação seja robusta e muitos profissionais pensem que esta seria a melhor maneira de enfrentar a atual epidemia de saúde mental”.

Existem, claramente, interesses e agendas muito poderosos e arraigados, que conscientemente ou inconscientemente agem para esconder ou tentar negar esse relacionamento – o que também faz com que a recente disposição entre tantos psicanalistas e terapeutas para abraçar esse contexto mais amplo seja tão excitante e emocionante.

Comentaristas freqüentemente falam sobre sociedade, contexto social, pensamento de grupo e determinantes ambientais em conexão com desordens e distúrbios mentais, mas acredito que podemos ser um pouco mais precisos sobre qual aspecto da sociedade é o principal dirigente disso, o principal responsável. E neste contexto provavelmente é hora de falarmos sobre aquela-palavra-com-c – o capitalismo.

Muitas das formas contemporâneas de doença e angústia individual que tratamos e com as quais nos envolvemos certamente parecem ser correlacionadas e amplificadas pelos processos e subprodutos do capitalismo. Na verdade, você pode dizer que o capitalismo é, em muitos aspectos, um sistema de geração de doenças mentais – e se estivermos falando sério sobre abordar não só os efeitos do sofrimento e da doença mental, mas também suas causas e origens, precisamos olhar mais de perto, com mais precisão, e de forma mais analítica a natureza do útero político e econômico a partir do qual emergem, e como a psicologia está fundamentalmente entrelaçada com cada aspecto dele.

Neurose Ubíqua

Talvez um dos exemplos mais óbvios dessa conexão íntima entre capitalismo e sofrimento mental seja o predomínio de neurose. Como observa Joel Kovel, ex-psiquiatra e professor de ciência política: “Um traço muito marcante da neurose dentro do capitalismo é a sua ubiquidade”. Em seu ensaio clássico “Terapia no capitalismo tardio” (reimpresso no livro ‘The Political Self’ [‘O Eu Político’]), Kovel se refere ao “fardo colossal de miséria neurótica na população, um peso que, de forma contínua e palpável, trai a ideologia capitalista – que sustenta que a civilização da mercadoria promove a felicidade humana“:

“Se, com toda essa racionalização, conforto, diversão e escolhas, as pessoas ainda estão desoladas, incapazes de amar, acreditar ou sentir alguma integridade em suas vidas, elas também podem começar a concluir que algo está seriamente errado com sua ordem social.”

Há também alguns trabalhos fascinantes nesse sentido feitos mais recentemente por Eli Zaretsky (‘Political Freud’, [‘Freud Político’]) e Bruce Cohen (autor da ‘Psychiatric Hegemony’ [‘Hegemonia Psiquiátrica’]), que escreveram sobre as relações entre família, sexualidade e capitalismo na geração de neuroses.

É significativo, por exemplo, que uma das características mais proeminentes do cenário psicológico que Freud encontrou na Viena do final do século XIX foram as neuroses – o que, como Kovel observa, Freud viu como estando inteiramente de acordo com o desenvolvimento “normal” em sociedades modernas – com grande parte disso, ele acrescenta, estando enraizado em nossa experiência moderna de alienação. “A neurose”, diz Kovel, “é a auto-alienação de um sujeito que foi preparado para a liberdade, mas isso entra em conflito com sua história pessoal”.

Marx foi, é claro, o grande analista da alienação, mostrando como a economia capitalista gera alienação como parte de seu próprio tecido ou estrutura – mostrando como, por exemplo, a alienação fica “perdida” ou “presa”, incorporada em produtos, mercadorias – desde exemplos óbvios (como Nikes feitos em sweatshops e sweatshops incorporados em Nikes) – até um sentido mais largo e muito mais generalizado de que todo o sistema de produção e criação é de alguma forma alienante.

Como Pavon Cuellar observa: “Marx foi o primeiro a perceber que essa alienação na verdade fica contida e encarnada nas coisas – nas “mercadorias” (‘Marxism and Psychoanalysis’ [‘marxismo e psicanálise’]). Essas mercadorias “fetichizadas”, acrescenta, parecem manter e prometer devolver, quando consumidas, a parte subjetivo-social perdida por aqueles que foram alienados enquanto as produziam: “os alienados perderam o que eles imaginam [ou esperam] encontrar naquilo que é fetichizado.”

Essa compreensão da alienação é realmente a questão central para Marx. As pessoas provavelmente o conhecem hoje por suas teorias sobre capital – como questões de exploração, lucro e controle caracterizam e ressurgem continuamente no capitalismo – mas para mim a principal preocupação de Marx, e uma que é constantemente negligenciada ou mal interpretada, é sua visão sobre a centralidade e a importância da criatividade e da produtividade humanas – o “poder produtivo colossal” do homem, como ele o chama – exatamente como de fato o era para William Blake, um pouco mais cedo no mesmo século.

Marx se refere a essa energia e capacidade de ação extraordinárias, capazes de  transformar o  mundo, como nossa “vida como espécie ativa”, nosso “ser-da-espécie” [2] – nossas “energias físicas e espirituais”. Mas sob o sistema atual, estas imensas energias criativas e capacidades transformadoras são, ele observa, imediatamente tiradas de nós e convertidas em algo estranho, objetivo, escravizador, fetichizado.

Reestruturando o desejo

A imagem que ele evoca é de mães dando à luz – outra forma de trabalho, talvez – com o bebê imediatamente sendo levado e convertido em algo estranho, algo como uma boneca – uma mercadoria. Ele considera o efeito que isso deve ter sobre o espírito da mãe. Essa, para Marx, é a fonte da alienação e do mal-estar, o tipo de deslocação profunda do espírito humano que caracteriza o capitalismo industrial. E, como mostra Pavon Cuelar, não podemos comprar nossa saída dessa alienação – produzindo mais brinquedos, mais bonecas – porque é aí que a alienação ocorre e é incorporada e gerada.

De fato, o consumismo e o materialismo são hoje amplamente reconhecidos como impulsionadores básicos de uma série de problemas de saúde mental, desde o vício até a depressão. Como observa George Monbiot, “comprar mais coisas está associado à depressão, ansiedade e relacionamentos partidos. É socialmente destrutivo e autodestrutivo”. A psicoterapeuta psicanalítica Sue Gerhardt escreveu de forma muito convincente sobre essa associação, sugerindo que nas sociedades modernas muitas vezes “confundimos o bem-estar material com o bem-estar psicológico”. Em seu livro ‘The Selfish Society’ [‘A Sociedade Egoísta’], ela mostra como o capitalismo de consumo reestrutura nossos cérebros de forma exitosa e implacável, reconstruindo nossos sistemas nervosos à sua própria imagem. Pois “deixamos passar muito do que é o capitalismo”, observa ela, “se ignoramos seu papel na reestruturação e comercialização dos próprios desejos e impulsos”.

Outro aspecto fundamental do capitalismo e seu impacto nas doenças mentais sobre o qual poderíamos falar é a desigualdade. O capitalismo é tanto um sistema gerador de desigualdade quanto um sistema de produção de doenças mentais. Como um relatório do Royal College of Psychiatrists observou: “A desigualdade é um dos principais determinantes da doença mental: quanto maior o nível de desigualdade, piores os resultados de saúde. Crianças das famílias mais pobres têm um risco três vezes maior de doença mental do que as crianças das famílias mais ricas. Adoecimento mental está consistentemente associado à privação, baixa renda, desemprego, educação pobre, menor saúde física e aumento de comportamentos de risco para a saúde”.

Alguns comentaristas até têm sugerido que o próprio capitalismo, como forma de ser ou modo de pensar sobre o mundo, pode ser visto como um sistema “psicopático” ou patológico. Há certamente algumas correspondências notáveis entre sistemas financeiros e corporativos modernos e  indivíduos com diagnóstico de psicopatia clínica, como muitos analistas têm notado.

Robert Hare, por exemplo, uma das principais autoridades mundiais em psicopatia e o criador da amplamente aceita “Lista de verificação de Hare” [‘Hare Checklist’] para testar a psicopatia, comentou com Jon Ronson: “Eu não deveria ter feito minha pesquisa apenas em prisões. Eu deveria ter passado algum tempo dentro da Bolsa de Valores também.” “Mas certamente os psicopatas do mercado de ações não podem ser tão maus quanto os psicopatas do tipo assassino em série?”, pergunta o entrevistador. “Assassinos em série arruinam famílias”, respondeu Bob, encolhendo os ombros. “Psicopatas corporativos e políticos arruinam economias. Eles arruinam sociedades.”

Instituições Patológicas

Esses traços, como Joel Bakan sugeriu brilhantemente em seu livro ‘The Corporation’ [‘A Corporação’], estão criptografados no próprio tecido das corporações modernas – são parte de seu DNA e modo de operação básicos. “O mandato legalmente definido das corporações”, ele observa, “é perseguir, de forma implacável e sem exceções, seu próprio interesse, independentemente das consequências muitas vezes nocivas que podem causar aos outros”. Por sua própria definição legal, portanto, a corporação é “uma instituição patológica”, e Bakan, de maneira muito útil, enumera os diagnósticos característicos de sua patologia padrão (falta de empatia, busca de interesse próprio, ilusão de grandeza, afetos pouco profundos, agressividade e indiferença social) para mostrar de forma confiável que paciente perturbado é uma corporação.

Por que todas estas práticas e processos sociais e econômicos contemporâneos geram tantas doenças, tantos distúrbios? Para responder a isso, penso que precisamos olhar para trás, de volta para o projeto Iluminista mais amplo e os modelos psicológicos de natureza humana [3] que dele emergiram. O capitalismo moderno surgiu dos conceitos de homem do século XVII como uma espécie de eudesconectado, descontínuo e desvinculado – um ser impulsionado pela competição e por um estreito interesse próprio “racional” – o conceito de homo economicus que dirigiu e subscreveu grande parte do todo o projeto Iluminista, incluindo seus modelos econômicos. Como Iain McGilchrist observa: “Capitalismo e consumismo, formas de conceber relações humanas como baseadas em pouco mais do que utilidade, ganância e competição, vieram a suplantar aquelas baseadas em conexão sentida e continuidade cultural”.

Nós agora sabemos quão equivocado e destrutivo é esse modelo do eu. Pesquisas neurocientíficas recentes sobre o “cérebro social“, juntamente de desenvolvimentos emocionantes nas teorias modernas do apego, psicologia do desenvolvimento e neurobiologia interpessoal, estão revisando e atualizando de forma significativa esta visão bastante excêntrica e antiquada do indivíduo isolado e “racional” – e também revelando uma compreensão muito mais rica e sofisticada do desenvolvimento e da identidade humana, através do aumento do conhecimento da intersubjetividade do “hemisfério direito” do cérebro, dos processos inconscientes, de comportamento grupal, do papel da empatia e da mentalização no desenvolvimento cerebral e do significado do contexto e da socialização em desenvolvimento emocional e cognitivo.

Como o neurocientista David Eagleman observa, o próprio cérebro humano depende de outros cérebros para sua própria existência e crescimento – o conceito de “eu”, ele observa, depende da realidade de “nós”:

“Nós somos um único e vasto superorganismo, uma rede neural incorporada em uma rede de redes neurais muito maior. Nossos cérebros estão tão fundamentalmente conectados para interagir que nem sequer é claro onde cada um de nós começa e termina. Quem você é tem tudo a ver com quem nós somos. Não há como evitar a verdade que está gravada em nossos circuitos neurais: precisamos uns dos outros.”

A dependência está, portanto, incorporada ao tecido de quem somos como seres sociais e biológicos, conectada diretamente em nosso “super-computador central”: é “como o amor se torna carne”, na frase marcante de Louis Cozolino. “Não existem cérebros sozinhos”, observa Cozolino, ecoando Winnicott, “cérebros só existem dentro de redes de outros cérebros”. Algumas pessoas têm denominado essa nova compreensão neurológica e científica sobre os padrões profundos de interdependência, cooperação mútua e o cérebro social de “neuro-marxismo”, por causa das implicações envolvidas.

O capitalismo está, aparentemente, enraizado em um modelo fundamentalmente falho, ingênuo e antiquado (do século XVII!) de quem somos – ele tenta nos fazer pensar que somos isolados, autônomos, desvinculados, competitivos, descontextualizados – em última instância, uma entidade bem dissociada e implacável. O mal que essa visão do eu fez a nós e aos nossos filhos é incalculável.

Muitas pessoas acreditam (e são encorajadas a acreditar) que esses problemas e distúrbios – psicose, esquizofrenia, ansiedade, depressão, auto-mutilação -,que esses sintomas de um “mundo doente” (para usar a fantástica descrição de James Hillman) são deles próprios, em vez de serem do mundo. “Mas e se seus problemas emocionais não forem apenas seus?”, pergunta Tom Syverson. ‘E se eles forem nossos problemas? E se o verdadeiro problema é que estamos vivendo em uma sociedade errada?” Talvez Adorno estivesse correto quando disse: “Umavida errada não pode ser vivida corretamente”.

A raiz deste “viver erroneamente” parece ser porque vivemos em um sistema social e econômico em desacordo com nossa psicologia e nossa neurologia, com quem somos como seres sociais. Como sugiro no meu livro, precisamos perceber que nossos mundos internos e externos interagem constantemente e profundamente e se moldam mutuamente e, portanto, em vez de separar nossa compreensão das práticas econômicas e sociais da nossa compreensão da psicologia e do desenvolvimento humano, precisamos aproximá-los, alinhá-los. E para que isso aconteça, precisamos de um novo diálogo entre os mundos político e pessoal, um novo modelo integrado de saúde mental e uma nova política.

Tradução: Everton Lourenço

Rod Tweedy é um autor e editor da Karnac Books, uma das principais editoras independentes de livros sobre saúde mental e terapia. Sua coleção editada, The Political Self: Understanding the Social Context for Mental Illness [‘O Eu Político: Compreendendo o Contexto Social da Doença Mental’], foi publicada pela Karnac.


II. Não Prestar Pra Nada

por Mark Fisher, no site do Occupied Times 

Sofro intermitentemente de depressão desde a adolescência. Alguns desses episódios foram altamente debilitantes?—?resultando em auto-mutilação, isolamento (onde passava meses confinado em meu próprio quarto, aventurando-me sair apenas para procurar emprego ou para comprar as quantidades mínimas de comida que consumia), e visitas frequentes a enfermarias psiquiátricas. Não diria que me recuperei inteiramente dessa condição, mas tenho satisfação de dizer que tanto a incidência quanto a gravidade dos episódios depressivos diminuíram muito nos últimos anos. Em parte, isso é consequência de mudanças na minha situação de vida, mas também tem a ver com uma distinta compreensão a que cheguei sobre minha depressão e suas causas. Exponho aqui minhas próprias experiências de angústia mental não porque ache que há algo especial ou único sobre elas, mas em apoio à tese de que muitas formas de depressão são melhor compreendidas?—?e combatidas?—?por meio de quadros analíticos impessoais e políticos, e não individuais e “psicológicos”.

Escrever sobre sua própria depressão é difícil. Faz parte da depressão uma voz “interior” desdenhosa que nos acusa de auto-indulgência?—?“você não está deprimido”, “você está apenas sentindo pena de si mesmo”, “dê um jeito nisso” —, passível de se disparada ao tornarmos pública a condição. É claro que não se trata bem de uma voz “interior” , e sim da expressão internalizada de forças sociais reais, algumas das quais têm um interesse escuso em negar qualquer conexão entre depressão e política.

No meu caso, a depressão sempre esteve conectada à convicção de que eu literalmente não prestava para nada. Passei a maior parte de minha vida, até os trinta anos, acreditando que nunca conseguiria ter uma profissão. Aos vinte e poucos, alternava entre a pós-graduação, períodos de desemprego e empregos temporários. Em qualquer um desses casos, o sentimento era de que não me encaixava?—?na vida acadêmica, porque sentia que não era um pesquisador sério, apenas um diletante que tinha de alguma forma fraudado meu caminho até ali; no desemprego, porque não estava realmente desempregado como aqueles que buscavam trabalho honestamente, mas “vagabundo” se aproveitando do sistema; e em empregos temporários por sentir-me incompetente e que, em todo caso, não pertencia exatamente a trabalhos de escritório ou de fábrica, não porque fosse “bom demais” para eles, mas?—?muito pelo contrário?—?em virtude de excessivamente instruído e inútil, tirando o trabalho de alguém que precisava e merecia aquilo mais do que eu. Mesmo na enfermaria psiquiátrica, sentia como se não estivesse realmente deprimido?—?era como se estivesse apenas simulando a condição para evitar o trabalho, ou, na lógica infernalmente paradoxal da depressão, simulando-o para esconder o fato de que eu era incapaz de trabalhar, e que não havia lugar para mim na sociedade.

Quando finalmente consegui um emprego como professor em uma faculdade de Educação Complementar, fiquei exultante por um tempo?—?embora esta alegria, por sua própria natureza, mostrasse que ainda eu não havia me livrado do sentimento de inutilidade que logo desencadearia novos episódios depressivos. Como professor, faltava-me a calma confiança de quem nasceu para o papel. Em algum nível não muito profundo, eu evidentemente ainda não acreditava que fosse o tipo de pessoa que poderia fazer um trabalho como aquele.
Mas de onde vinha essa crença? A escola dominante de pensamento em psiquiatria localiza as origens de tais ‘crenças’ no mau funcionamento da química cerebral, que deve ser corrigido por produtos farmacêuticos; a psicanálise e demais formas de terapia por ela influenciadas são famosas por procurar as raízes da angústia mental no contexto familiar, enquanto a Terapia Cognitiva-Comportamental está menos interessada em localizar a fonte de crenças negativas do que simplesmente substituí-las por um conjunto de alternativas positivas. Não é que esses modelos sejam inteiramente falsos, é que eles deixam escapar?—?e necessariamente têm que deixar escapar?—?a causa mais provável de tais sentimentos de inferioridade: o poder social. A forma de poder social que mais teve efeito sobre mim foi o poder de classe, embora, naturalmente, o gênero, a raça e outras formas de opressão funcionem produzindo o mesmo sentimento de inferioridade ontológica, melhor expressado justamente no pensamento que articulei acima: que você não é o tipo de pessoa capaz de desempenhar papéis destinados ao grupo dominante.

A pedido de um dos leitores do meu livro “Realismo Capitalista”, comecei a investigar o trabalho de David Smail. Smail?—?um terapeuta, mas que tomou a questão do poder como central para sua prática?—?corroborou as hipóteses sobre a depressão nas quais eu havia esbarrado por acaso. Em seu livro crucial, “As Origens da Infelicidade”, Smail descreve como as marcas de classe são projetadas para serem indeléveis. Para aqueles que foram ensinados desde o nascimento a se verem como inferiores, a aquisição de qualificações ou renda raramente será suficiente para apagar?—?em suas próprias mentes ou na mente dos outros?—?o sentido primordial de inutilidade que os marca tão cedo na vida. Alguém que sai da esfera social a qual estaria “designado” a ocupar estará sempre sujeito ao perigo de ser dominado por sentimentos de vertigem, pânico e horror: “… isolado, separado, cercado de espaço hostil, você de repente se vê sem conexões, sem estabilidade, sem nada para mantê-lo firme ou no lugar; uma irrealidade vertiginosa e nauseante se apossa de você; você se vê ameaçado por uma completa perda de identidade, um sentimento de completa fraude; você não tem o direito de estar aqui, agora, habitando este corpo, vestido desta maneira; você é um nada, e ‘nada’ é, literalmente, o que você sente que está prestes a se tornar.”

Já há algum tempo, uma das táticas mais bem-sucedidas da classe dominante tem sido a da “responsabilização”. Cada membro individual da classe subordinada é encorajado a sentir que sua pobreza, falta de oportunidades, ou desemprego é culpa sua e somente sua. Os indivíduos culparão a si mesmos antes de culparem as estruturas sociais; estruturas que, em todo caso, eles foram induzidos a acreditar que de fato não existem (são apenas desculpas, invocadas pelos fracos). O que Smail chama de “voluntarismo mágico”?—?a crença de que está dentro do poder de cada indivíduo se tornar o que quer que seja?—?é a ideologia dominante e a religião não oficial da sociedade capitalista contemporânea, empurrada goela abaixo tanto pelos “experts” da TV e gurus dos negócios quanto pelos políticos. O voluntarismo mágico é ao mesmo tempo um efeito e uma causa do nível historicamente baixo da consciência de classe. É o outro lado da depressão?—?cuja convicção subjacente é a de que somos todos exclusivamente responsáveis ??pela nossa própria miséria e, portanto, a merecemos. Um duplo imperativo particularmente cruel é imposto aos desempregados de longa duração no Reino Unido: uma população que, durante toda a sua vida, foi levada a acreditar que não prestava para nada é simultaneamente bombardeada pela injunção de que pode fazer tudo o que quiser fazer.

Devemos entender a submissão fatalista da população do Reino Unido à austeridade como consequência de uma depressão deliberadamente cultivada. Esta depressão manifesta-se na aceitação de que as coisas vão piorar (para todos, exceto para uma pequena elite), que temos sorte de ter um emprego que for (então não devemos esperar que os salários acompanhem a inflação), que não podemos nos dar o luxo de bancar serviços públicos providos coletivamente. A depressão coletiva é o resultado do projeto da classe dominante de ressubordinação. Há algum tempo, temos cada vez mais nos resignado à ideia de que não somos o tipo de pessoa que pode agir. Esta não é uma falha de vontade individual, da mesma forma que uma pessoa deprimida não pode simplesmente sair da depressão em um “estalar de dedos” ao “arregaçar as mangas”. A reconstrução da consciência de classe é, de fato, uma tarefa formidável, que não será alcançada com soluções prontas e fáceis. Mas, ao contrário do que nossa depressão coletiva nos diz, é uma tarefa que pode ser realizada: inventando novas formas de envolvimento político, revitalizando instituições que se tornaram decadentes, convertendo o descontentamento privatizado em raiva politizada. Tudo isso pode acontecer, e, quando acontecer, quem sabe o que será possível?

Tradução: Victor Marques

Revisão: Jorge Adeodato

[Nota de Tradução: No dia 13 de janeiro desse ano, Mark Fisher nos deixou. Aos 48 anos tirou a própria vida em um episódio agudo de depressão, condição com a qual lutava desde a juventude e sobre a qual escrevia abertamente. Ainda pouco conhecido no Brasil, Fisher era um respeitado crítico cultural, um teórico de crescente influência e um militante político dedicado. Fundou na década de 90, junto com Nick Land, o célebre Cybernetic Culture Research Unit (Ccru) e nos anos 2000 tornou-se conhecido por meio do seu blog K-Punk, onde discutia música, cultura pop e política. Ganhou notoriedade em 2009 a publicar o livro Capitalist Realism (Realismo Capitalista), no qual argumenta que a grande vitória do neo-liberalismo foi ter consolidado um senso comum no qual não há alternativa possível ao capitalismo, bloqueando nossa imaginação utópica e obliterando formas de consciência que apontem para um horizonte emancipatório pós-capitalista. Como escritor, palestrante e ativista Mark Fisher contribuiu imensamente para afrouxar as amarras do “realismo capitalista” na mente das novas gerações militantes, sobretudo na Inglaterra. Como homenagem, traduzi seu texto “Good for nothing”, na qual ele aborda sua própria depressão no esforço de politizar, e tornar mais coletivo, o debate sobre saúde mental. Espero que o texto possa servir para atiçar a curiosidade a respeito do trabalho de Fisher, que segue útil e potente na nossa luta coletiva para abrir, contra o melancólico “cancelamento do futuro” imposto pelo neo-liberalismo, um novo futuro comum.]


Notas

[1] Alguns ótimos textos para entender do que se trata o Neoliberalismo e seu estado atual: Neoliberalismo, A Ideologia na Raiz de Nossos Problemas, de George Monbiot; Como Vai Acabar o Capitalismo?, de Wolfgang Streeck; O Ano em Que o Capitalismo Real Mostrou a Que Veio, de Jerome Roos; além de Realismo Capitalista e a Exclusão do Futuro e Como Matar Um Zumbi: Elaborando Estratégias Para o Fim do Neoliberalismo, do próprio Mark Fisher. [N.M.]

[2] no original, ‘active species-life’, our ‘species-being’. Agradeço sugestões melhores de tradução. [N.M.]

[3] alguns outros textos muito interessantes sobre essa tal “natureza humana”: O Socialismo Soa Bem na Teoria, Mas a Natureza Humana Não o Torna Impossível de Se Realizar?, de Adaner Usmani & Bhaskar Sunkara; Por Que Socialismo?, de Albert Einstein; e O Comunismo Não Passa de Um Sonho de Utopia? Só Funcionaria Com Pessoas Perfeitas?, de Terry Eagleton. [N.M.]

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