Por Fausto Salvadori Filho.
Bastou uma bolsa.
A Praça Roosevelt, no centro de São Paulo, estava cheia no último 31 de maio. A madrugada de sexta para sábado, apenas começando. Nos teatros, atores encenavam vidas alheias sobre o palco. Na praça, ciclistas circulavam em meio a skatistas que rodopiavam ollies pelo ar. Nos bares, atores, músicos e escritores conversavam sobre a vida, o universo, editais e tudo mais.
Uma bolsa. Foi o que bastou.
A bolsa que mudou tudo pertencia a uma moça que estava sentada na calçada em frente a um dos bares da praça. Às 0h20, um jovem, identificado pela polícia como Natiel Silva dos Santos, 21 anos, negro, baiano de Nazaré, aproximou-se da moça, arrancou sua bolsa e saiu correndo. No minuto seguinte, a gente fina, elegante e sincera que frequenta a Praça Roosevelt transformou-se num exército de linchadores – uns por agredir, muitos por apoiar e outros por não se importar com o que acontecia.
“Se tivessem batido no menino por mais cinco minutos, ele não tinha saído vivo dali”,
Segundo o relato de testemunhas, uma pessoa esticou o pé, fazendo o ladrão tropeçar. De todos os lados, veio mais gente para bater no rapaz caído no chão. Um skatista acertou um golpe com o skate em suas costas quando ele tentava se levantar. Uma bailarina deu-lhe um soco no rosto. Natiel se arrastou pela calçada até se abrigar entre dois carros, onde conseguiu fugir do alcance de parte dos murros e dos pontapés. A pancadaria prosseguiu até ele ser tirado de lá pelo segurança de um bar e por guardas civis municipais.
Sem registro
“Se tivessem batido no menino por mais cinco minutos, ele não tinha saído vivo dali”, contou o funcionário de um bar, que preferiu não se identificar. A mesma testemunha disse que compreendia o comportamento dos linchadores. “Eu não tiro a razão de ser deles. Se deixassem o moleque continuar roubando, um dia ele podia voltar aqui com um revólver, e aí seria pior”, disse à Ponte.
A bolsa foi recuperada e devolvida, intacta, à sua dona. Já Natiel teve de ser levado pelos guardas ao pronto-socorro da Santa Casa, onde foi socorrido e recebeu alta no mesmo dia.
As autoridades não fizeram qualquer menção à tentativa de linchamento. No 78º DP, nos Jardins, o Boletim de Ocorrência 4662/14, registrado pela delegada plantonista Cristina Yuriko, explica os ferimentos de Natiel afirmando que ele “saiu correndo, vindo a tropeçar e cair”. A delegada arbitrou fiança no valor de um salário mínimo. Sem dinheiro para pagar, o suspeito permaneceu preso, pelo crime de furto.
Procurada desde 24 de junho sobre este caso, a assessoria de imprensa da Secretaria da Segurança Pública (SSP) não respondeu às perguntas da Ponte. Embora o boletim de ocorrência seja um documento público, a delegado titular do 78º DP, Victoria Lobo Guimarães, e a SSP negaram o acesso da reportagem à integra do documento.
Sonhos e linchadores
Na Praça Roosevelt, estão localizados quatro teatros, mais a SP Escola de Teatro, além de vários bares, frequentados tanto por pessoas do meio teatral como por músicos, jornalistas, escritores. Também é ponto de encontro de skatistas, ciclistas e corredores, e serve de cenário para todo tipo de evento, de batalhas de rap a espetáculos de malabares. Faz parte do roteiro obrigatório de movimentos de contestação, como as Marchas da Maconha e das Vadias. A praça serve de laboratório para coletivos que buscam pensar forma mais democráticas de ocupar o espaço público, através de movimentos como o festival Existe Amor em SP, que busca “uma cidade mais humana, justa, amável e acolhedora”, ou a festa Buraco da Minhoca, que ocorre dentro de um túnel fechado para carros à noite.
…linchadores são movidos por “um medo social difuso”, José de Souza Martins
O mesmo espaço que articula arte, espaço e sonhos de uma São Paulo mais humana pode se tornar de uma hora para outro o palco de ação de uma turba de linchadores? O episódio de 31 de maio mostra que sim.
O caso foge ao padrão dos linchamentos praticados no Brasil, que, na sua maioria, ocorrem em áreas urbanas ou rurais “de povoamento recente, um bairro novo ou uma região de fronteira, lugares onde a sociedade procura se consolidar e onde os valores de referência da conduta recíproca ainda não se consolidaram”, conforme o sociólogo José de Souza Martins, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP, explica neste artigo, publicado em O Estado de S. Paulo.
Na Roosevelt como em qualquer outro lugar, a motivação é o medo. Segundo Souza, linchadores são movidos por “um medo social difuso”, que “se dissipa momentaneamente no ato de linchar porque nele a multidão se sente forte e invencível”. O sociólogo calcula que, nos últimos 60 anos, ao menos um milhão de pessoas participaram de linchamentos ou de tentativas de linchamento no país. Segundo estes dados (que podem conter distorções, já que se baseiam apenas em notícias de jornais), os brasileiros participam de quatro linchamentos por semana, número que teria saltado para pelo menos um linchamento diário após junho de 2013.
“Me deixa muito preocupada ver as pessoas tentando justificar um linchamento”, afirma a artista Fernanda D’umbra, que dá aulas na SP Escola de Teatro e há anos atua nos teatros da Roosevelt como atriz e cantora. “Fico chocada com esse linchamento que aconteceu a duas quadras da minha casa, mas minha indignação vai além. Linchamentos não podem acontecer em lugar nenhum. Se a gente permite isso, acaba tudo, vira barbárie”, afirmou à Ponte.
Fernanda disse que o episódio a deixou com vontade de estampar uma camiseta com a frase Eu faço coisa errada. Batam em mim!. “Da mesma forma como lincham um menino por roubar uma bolsa, alguém pode achar errado dois homens se beijando e juntar um grupo para bater neles. Todo mundo faz alguma coisa errada aos olhos de outra pessoa.”
Foto: Reprodução/Ponte.org
Fonte: Ponte.org