Por Roberto Bitencourt da Silva.
O aposentado comandante Fidel Castro Ruz completa 90 anos de idade, em 13 de agosto. Convenhamos, o aniversário do líder cubano corresponde a um acontecimento que merece ser saudado. Um bom motivo, também, para a reflexão política sobre a América Latina.
É difícil fazer comparações em torno da importância de personagens, eventos e processos históricos. A história, enquanto campo de saber, lida em boa medida com as singularidades. As comparações no espaço e no tempo são, no mínimo, controversas.
Mas, arrisquemo-nos a uma observação dessa natureza. No século XX nenhuma liderança política alcançou o status e a proeminência de Fidel, na América Latina. Em toda a nossa história pós-colombiana, talvez seja ombreado apenas por Simón Bolívar, no século XIX.
Me refiro evidentemente a personagens históricos que desenvolveram ações voltadas aos interesses do nosso subcontinente, que se projetaram como símbolos de uma região ciosa por soberania política e econômica, bem como pelo bem-estar dos seus povos.
Fidel Castro foi a principal liderança de uma revolução popular e anti-imperialista, em um país cuja distância da potência estadunidense é inferior a 200 km. Não é pouca coisa. Aliás, tratou-se de um fenômeno épico, heroico, senão mesmo imprevisível.
A simpática Cuba soberana e socialista deixou para trás muito do legado neocolonial imposto pelos EUA: flagrantes injustiças sociais, elevado desemprego e superexploração do trabalho, acentuado racismo, corrupção dos poderes públicos e ofensa à consciência e à dignidade nacional.
Cuba, liderada pelo comandante Fidel, superou o amplo analfabetismo e a miséria que assolavam a maioria da população, para figurar na condição de referência mundial em educação e saúde públicas.
Mas, é claro, as mazelas geradas pelo subdesenvolvimento e o neocolonialismo incidem nas estruturas sociais e econômicas das nações que por esses tipos de experiências passa(ra)m.
Cuba, uma ilha dotada de território pequeno e com limitados recursos naturais, é expressão da força de incidência das chagas do capitalismo subdesenvolvido e periférico, mesmo adentrando experiências distintas de organização da sociedade e do sistema produtivo.
A dependência externa talvez constitua a principal limitação herdada do período pré-revolucionário. Partindo de parco domínio técnico-científico e de uma distorção produtiva revelada pela monocultura do açúcar, Cuba apenas timidamente superou tais limitações em suas forças produtivas. Suas vulnerabilidades são significativas.
Com um histórico de dependência em relação aos EUA e, posteriormente, à antiga União Soviética, hoje suas relações comerciais giram em torno da Venezuela e da China. O absurdo embargo comercial norte-americano, além dos constantes atos de sabotagem e terrorismo patrocinados pelo governo dos EUA, décadas a fio, reforça(ra)m as dificuldades do país (1).
Moniz Bandeira, em estudo sobre Cuba (“De Martí a Fidel: a revolução cubana e a América Latina”), entende que, mais do que um fenômeno político nacional, a revolução cubana é expressão das contradições entre a América Latina e os EUA.
Desse ponto de vista, poderíamos afirmar que nenhum personagem, como Fidel Castro, melhor condensou a denúncia vigorosa contra o imperialismo estadunidense na região, contra a sua agressiva inibição da vontade soberana dos povos latino-americanos. O adágio monroísta da “América para os americanos” encontrou em Fidel um especial e aguerrido adversário.
Fidel Castro é filho das terras latino-americanas. Martiniano, sempre apresentou acentuada veia nacionalista em defesa de Cuba. Também caminhou nas trilhas de Bolívar, pregando a integração latino-americana.
Mas, o comandante é expressão política igualmente universalista. Leitor de Rousseau, Marx e Lenin, sintetiza um pensamento antidogmático, fincado nas especificidades da região, sem desprezo às contribuições intelectuais de outras paragens.
Universalista também no que diz respeito à promoção de sistemáticas e diferentes missões internacionalistas de solidariedade aos povos de nuestra América, da África e da Ásia.
Entretanto, antes de tudo, bolivariano. Poucas lideranças nossas tiveram a capacidade de colocar em prática o apelo do mestre de Bolívar, Simón Rodríguez: “Ou inventamos ou perecemos”. Uma recomendação que norteava o pensamento de Bolívar, como de Fidel.
O comandante é símbolo de uma esquerda latino-americana não colonizada (vale lembrar, amigos, que infelizmente não são apenas as direitas que demonstram tal vício de pensamento). Uma esquerda atenta às especificidades regionais, que entrecruzou o socialismo, com o nacionalismo e o anti-imperialismo.
Fidel liderou inicialmente uma “revolução contra a ordem” imperialista. Depois contra o capitalismo, como assinala Florestan Fernandes (“Da guerrilha ao socialismo – a revolução cubana”), deixando de lado as oligarquias/burguesias nacionais associadas ao capital estadunidense.
Pôs para escanteio um cânone que prevalecia na seara comunista do início da década de 1960, da revolução democrática e anti-imperialista com apoio burguês. Deixou a URSS e os partidos comunistas sovietizados de cabelo em pé e mergulhados na incompreensão.
O comandante Fidel, senão inventou, levou às últimas consequências a combinação do socialismo com o nacionalismo, adotando métodos e lidando com contingências peculiares, que exigiam formulações políticas e intelectuais próprias às situações enfrentadas.
Um “socialismo moreno”, como defendia Darcy Ribeiro para o Brasil. Isto é, um socialismo destituído de dogmas importados, que somente enrijecem a ação e a reflexão política.
O comandante teve a ousadia de liderar a construção do socialismo em um país materialmente pobre, pequeno e cercado pelo gigante imperial do Norte. Os problemas decorrentes para o país caribenho não são poucos e estimulam a reflexão, devido às parcas alternativas abertas para as nossas gentes, na atualidade.
Esquematicamente, de um lado, a superexploração do trabalho, a inexistente ou precária soberania política e de domínio tecnológico, mas com acesso a amplos bens de consumo. De outro, a dignidade nacional, com justiça social, comprometida, no entanto, com restrições técnicas e nas relações internacionais.
Trata-se de uma difícil escolha em nossa região, haja vista a capilaridade da influência dos valores concernentes à sociedade de consumo, à fetichização das marcas das multinacionais no cotidiano dos povos latino-americanos, particularmente no Brasil.
Não obstante, quaisquer ideias que se pretendam sintonizadas com o socialismo e com uma perspectiva que saliente a ruptura da condição periférica no sistema capitalista demandam a reflexão sobre as ideias, o engenho criativo e a ousadia do grande aniversariante, o comandante Fidel Castro.
Roberto Bitencourt da Silva é historiador e cientista político.
Fonte: Jornal GGN e Diário Liberdade.
Consultar:
(1) A respeito, sugiro a leitura do didático artigo de Joana Salém Vasconcelos, disponível em:http://www.iela.ufsc.br/rebela/revista/volume-6-numero-1-2016/rebela/revista/artigo/cuba-e-dependencia-externa-passado-e