Por Miguel Martins.
Contra o mito do “bom selvagem”, índios brasileiros são reduzidos a uma única etnia e retratados como predadores da fauna e flora ante portugueses sensíveis ao desmatamento da Mata Atlântica. Contra uma suposta convicção popular, a “revelação” de que o samba é influenciado por ritmos estrangeiros e não é “100% nacional”. Contra profecias não cumpridas, a cobrança pelo “erro” de Graciliano Ramos ao desmerecer o futebol em uma crônica do início da década de 1920.
A abordagem “do contra” adotada pelo primeiro episódio da série “Guia Politicamente Incorreto”, do History Channel, dá motivos para nomes como Lira Neto, Lilia Schwarcz e Mary Del Priore pedirem a retirada de seus depoimentos da produção sobre a história do Brasil.
Os pesquisadores foram entrevistados pela produtora Fly e só descobriram tratar-se de um programa inspirado na série de livros homônima do jornalista Leandro Narloch em meio a seu lançamento. Em sua página no Facebook, Lira Neto, autor de uma relevante trilogia biográfica sobre Getúlio Vargas, relatou o pedido do entrevistador para responder as perguntas como se explicasse história para “alguém com a inteligência de um Homer Simpson”.
De linguagem youtuber e voltada a um público de massa, a série busca os hipotéticos “Homers” a partir de conceitos e preconceitos históricos há muito revisados no ambiente acadêmico, mas ainda perenes fora dos muros das universidades. Com o suposto objetivo de mostrar ao espectador os erros de nossa historiografia, o “Guia” apenas combate senso comum com mais senso comum.
Alguns dos principais entrevistados do episódio são o jornalista Eduardo Bueno, autor de livros para o grande público, o próprio Narloch, Evaristo de Miranda, pesquisador da Emprabapa, e o roqueiro Lobão.
A série peca menos pela mentira e mais pela fragilidade das análises, costuradas sob uma edição que aborda superficialmente os personagens históricos. Sobressaem-se o anacronismo, com a utilização de conceitos contemporâneos para analisar sociedades antigas, e a repercussão de falsas polêmicas que chegam a cobrar dos atores o conhecimento do próprio futuro e das consequências finais de suas ações. Permeia ainda no discurso a defesa de um evolucionismo cultural típico do século XIX.
Conheça abaixo alguns dos temas retratados pelo episódio à luz de certos conceitos e debates da historiografia e das ciências sociais.
O anacronismo da relação entre índios e questão ecológica
Um dos temas principais do episódio trata da suposta responsabilidade indígena pelo desmatamento da Mata Atlântica. Sem dados relevantes para sustentar a tese, os participantes garantem que a técnica da coivara foi responsável por parte da depredação da vegetação nativa antes da chegada de Cabral.
A coivara, técnica que consiste na derrubada da mata e a queima da vegetação seguida do plantio intercalado de culturas, era utilizada pelos povos indígenas brasileiros, notadamente os Tupi-Guarani, como um sistema típico de agricultura de subsistência do litoral, no qual os impactos ambientais são mínimos se comparados à depredação para fins comerciais da Mata Atlântica. Os entrevistados ignoram o tempo de repouso adotado pelos índios na técnica e a falta de recursos tecnológicos, como machados de ferro, para a derrubada em escala da mata.
Cobrar consciência ecológica dos povos indígenas pré-cabralinos é um anacronismo, como o jornalista Reinaldo José Lopes lembra no programa. Em qualquer sociedade humana, a cultura interage e pode modificar o ambiente, mas não a ponto de atribuir aos índios o mesmo prejuízo à mata nativa que a adoção de um monopólio pela Coroa portuguesa para explorar mais uma especiaria em seu império ultramarino: o pau-brasil.
Segundo o programa, os portugueses, eles sim, buscaram preservar a mata com uma carta-régia de 1542, que determinava normas para o corte e desperdício do pau-brasil. O “Guia” omite motivos mais pragmáticos: havia competição, como a de corsários franceses, no comércio da especiaria e era preciso garantir a parte da Coroa no negócio.
Assim como a descrição do índio brasileiro como um “bom selvagem” é de fato equivocada, pintá-lo como um selvagem anti-ecológico, uma espécie de espelho histórico do ruralista que atualmente lhe opõe, é um exagero na mesma medida. Pior talvez seja reduzir a diversidade indígena brasileira, repleta de exemplos de sedentarismo, a um seminomadismo incendiário e predador, um estereótipo que nem sequer explica os Tupi-Guarani.
O povoamento da América e o evolucionismo cultural
O primeiro tema tratado pelo episódio refere-se à presença indígena pré-cabralina no Brasil. Logo de partida, a série faz uma análise sobre a diferença evolutiva entre os povos originais da Europa e da América. Após narrar a teoria da chegada do ser humano à América pelo Estreito de Bering, uma tese posta em dúvida por um estudo recente publicado na revista Nature, o apresentador Felipe Castanhari compara as estimativas do início da ocupação humana no Brasil e na Europa e conclui: “Isso quer dizer que eles (os europeus) tiveram 30 mil anos a mais para se desenvolver.”
A abordagem dá a entender que há etapas civilizatórias a serem cumpridas em uma linha evolutiva. Um esquema de interpretação antropológica semelhante à do chamado evolucionismo cultural, corrente do século XIX cujos principais expoentes foram Henry Morgan, Edward Burnett Tylor e James George Frazer.
A tese principal dessa teoria é a de que a humanidade atravessa três etapas fundamentais: magia, religião e ciência, ou selvageria, barbárie e civilização. Dentro dessas etapas, a adoção de técnicas pelos povos é utilizada para situá-los dentro da linha do tempo, como se todos fizessem as mesmas opções culturais, sendo alguns apenas mais competentes que outros, ou mais desenvolvidos.
São muitos os exemplos que depõe contra esse esquema evolutivo e a favor de uma certa ou boa dose de relativismo cultural. Para ficar na América, tema do programa do History Channel, os chamados povos pré-colombianos dominavam técnicas e conhecimentos por muito tempo ignorados pela Europa Ocidental. Os Maias, por exemplo, são considerados um dos pioneiros na adoção do número zero em seu sistema numérico, e as técnicas agrícolas de incas e astecas eram extremamente avançadas.
Nesse ponto, a série coloca índios brasileiros em disputa com os europeus como se ambos estivessem em uma partida de Civilization, jogo de computador em que se desenvolve civilizações a partir de escolhas lineares de tecnologia e cultura. Mas a história é um pouco mais complexa.
O samba não é “100% brasileiro”. E daí?
Um dos quadros do programa foge ao Brasil Colonial e passa a dissecar um suposto mito da nossa história musical: o samba não é, ao contrário do que pensam muitos, um estilo 100% brasileiro.
A suposta polêmica não encontra ressonância em historiadores culturais ou musicólogos sérios. Jamais negou-se na crônica minimamente informada que o samba nasce de um encontro orgânico e de difícil precisão entre ritmos estrangeiros como a polca e manifestações locais como o maxixe e o lundu, para citar apenas alguns.
O alvo do programa parece ser a apropriação varguista do samba no Estado Novo, como revela Lobão. “É você estabelecer várias regras cínicas, mentirosas para você se apropriar como se fosse uma reforma agrária intelectual, “Isso é meu!”.
A edição procura, porém, desconstruir uma suposta imagem popularizada do samba como manifestação de um nacionalismo exarcerbado e latente, embora seja muito difícil de medir de onde venha convicções de senso comum como “o samba é 100% brasileiro”. Certamente não partem de especialistas ou até de curiosos de primeira viagem.
Em um dado momento, o programa lembra, para sustentar os estrangeirismos no samba, que Pixinguinha sofreu influências do jazz de New Orleans. É verdade, assim como o jazz dos anos 1950 foi influenciado pelas possibilidades da Bossa Nova, que por sua vez também moldou-se a partir do gênero. Um grande fã do estilo, o historiador Eric Hobsbawn escreve em sua História Social do Jazz sobre a chamada pré-história do gênero. Ela nasceu em grande parte na África, como o samba.
Graciliano Ramos e sua “profecia” sobre o futebol
Não se discute a paixão que o futebol desperta como cultura de massa. Mas nem sempre foi assim. Nas primeiras décadas do século XX, era um esporte de elite, que não abria espaço para atletas negros. A exceção no início dos anos 1920 foi o Vasco da Gama, primeiro clube do Rio de Janeiro a aceitá-los.
Naquele período, Graciliano Ramos criticou o projeto de massificar o esporte no Brasil em vez de valorizar “esportes nacionais” como a rasteira. O texto, de uma fina ironia, refletia um certo apego nacionalista do autor contra o esporte e, de forma menos direta, talvez um incômodo com o elitismo à inglesa do futebol no início dos anos 1920. Havia clubes, mas eram em sua maioria de classe média e alta. Não se vislumbrava que o esporte seria amplamente reinventado pelas camadas populares nas décadas seguintes.
É impossível cobrar profecias de Graciliano Ramos, mas tampouco seu texto sugere a “lacração” dos tempos atuais: é literário, irônico e divertido. Falava a partir de seu próprio tempo, com os horizontes de perspectiva disponíveis à época.
O programa do History Channel preferiu chamar dois comentaristas de futebol, Mauro Betting e Milton Neves, para denunciarem o suposto erro do autor de Vidas Secas. Embora seja o quadro mais divertido do programa, acaba por omitir a própria história de preconceito do futebol em seus primeiros anos, o que também gerava opositores na opinião pública.
Cobrado também no programa, Lima Barreto era um enorme crítico do esporte e o enxergava como uma doença social, como mostra Lilia Schwarcz em sua biografia recém-publicada sobre o escritor. No seu caso, havia sim uma obsessão contra o esporte, assim como contra quase todas as atividades físicas. Na comparação com Ramos, Barreto foi até poupado pela série.
Fonte: CartaCapital