Um guia para o filme “O espírito da colmeia”. Por Zaza.

Ilustração: Zaza

Por Zaza, para Desacato.info.

É contraintuitivo produzir corrimões para um filme sobre a mentalidade infantil, aprender a ver, descobrir a descobrir, no mesmo calão de respeito à infância de Kiarostami e Miyazaki. A experiência de O Espírito da Colmeia (Víctor Erice – 1973) parece contraditória pois no mesmo lugar em que se propõe como um retorno à irracionalidade intuitiva de uma experiência cinemática livre dos vícios industriais televisivos, ao mistério anterior à moldificação massiva, conduz um implícito e fantasmagórico subtexto político sobre essas mesmas crianças. Mais que o típico filme “para se experienciar, não para se entender”.

Pode ser impossível dizer sobre o que é O Espírito da Colmeia mas se eu tivesse que escolher a dedo os seus sabores que eu gostaria de incluir em um resumo líquido, estaria reduzindo-o à cena em que Ana, em fuga, dorme nas ruínas de uma casa destruída. É literal a cristalização da história na sequência: uma juventude que não conhece ainda o espírito inescapável da história, se abriga em uma casa abandonada com uma própria história, seus próprios dias deixados de fora do filme, seus próprios habitantes esquecidos, inacessíveis. É a decadência, a História, e sua relação com o indivíduo. A de corromper lentamente o ovo frágil de geleia translúcida que é a inocência.

Assista ao filme

Porém tornar o filme uma fábula sobre consciência política e reflexão sobre o fascismo espanhol, incrivelmente, é reduzi-lo. Erice consegue registrar nele algo grande sobre a experiência infantil, a intangibilidade de sua leitura da realidade e o vulto de suas memórias por meio da singeleza sombria nos pequenos momentos da perspectiva de Ana e sua família nuclear espanhola no que seguia o fim da guerra civil.

Com a chegada de um novo filme à vila pelo cinema itinerante, a figura do Monstro de Frankenstein introduz a menina à dualidade das imagens, o real e o fantástico, e uma metamórfica ponte que une os dois. Embora muitas sinopses atropelem a leveza do acontecimento (“Ana fica OBCECADA pelo monstro e tenta ENCONTRÁ-LO”), o desenrolar dos eventos é assoprado pela inobjetividade de uma criança, e lentamente desabrocha, de várias formas ao longo da obra, o fantástico e o monstro na forma da imaginação de Ana, o proibido, a autoridade e o seu próprio poder. A adolescência para Erice é descobrir a própria potência e suas consequências diretas. Mas essa, também, é uma resumidíssima forma de tentar descrever os eventos que retratam o despertar na obra.

Em uma marcante passagem pintada no belo momento infantil de um cochicho subversivo antes de dormir (interrompido pelo soar autoritário dos passos pesados do pai), a irmã de Ana, Isabel, tenta explicá-la sua errônea e ou mentirosa lógica da ficção. Apesar de decodificações alegóricas do simbolismo do filme, produzido ainda nos últimos anos de Franco, serem facilmente e frequentemente ignoráveis (Roger Ebert covardemente desconsiderou ser seu trabalho interpretar o filme) em meio à magia sensorial da obra, estudiosos costumam ler Isabel e sua vantagem intelectual sardônica sobre a irmã como uma iteração das gerações mais velhas sobre aquelas que nasceram e cresceram sob a dureza do falangismo, estas ainda cegas pelo controle e isolamento de um mundo espectral. Podemos ir além e determinar com certa obviedade o patriarca como o próprio Franco, um apicultor que observa o funcionamento impessoal e mecânico das abelhas que cria em uma casa de janelas de hexágonos amarelos.

A mãe provavelmente é a classe intelectual e artística suprimida em seu casamento forçado: escrevendo cartas melancólicas a amantes secretos e passando seus dias presa pelos laços de incomunicabilidade, olhares fugazes na estação de trem, proibições e lembranças do passado, ansiando por um tempo impossível, pois é difícil sentir nostalgia depois de tudo que passou esses anos. Sua distância infligida é circulada pelas informações que não pode dar a Ana enquanto penteia seu cabelo, no despertar isolado do marido pela manhã, e a melancolia de seu piano entoa uma das sequências mais belas que eu já vi, em que Ana, revirando livros misteriosos com cheiro de mofo, lê uma frase que não pode entender, retirada diretamente do refluxo de tempos passados em um dia monótono iluminado apenas pela luz de fim de tarde que invade os vidros amarelos. Dias em que os personagens vagam pelo casarão sem rumo como se navegassem pela sociedade falangista. Chamando as crianças ou pulando por entre as portas altas a gritinhos infantes.

Porém o simbolismo mais rico e mais difícil se guarda na intertextualidade com o mito de Frankenstein, já tão rico em sua obra original, pela imagem da inocência, alienação e “criação humana”. São muitos os caminhos interpretativos que podem ser tomados pela criatura e sua relação com Ana, alguns até preguiçosos. Mas para a criança, o monstro é a possibilidade, resguardada pelos adultos que habitam sua solidão. E Isabel disse que ele existe sempre que se fecha os olhos, debaixo dos olhares dos adultos.

A cena da escola é uma das que mais palpitam por debaixo da censura franquista (que admitidamente só liberou o filme por acreditar que não existiria interesse nele entre o povo espanhol). O corpo humano é apresentado como mecanismo funcionalista até que Ana lhe dá os olhos e desencadeia uma das mais enigmáticas mensagens do filme. Na sequência seguinte ela e a irmã se aventuram até o poço onde reside a criatura e vemos Ana em contato com algo maior que ela. Muito do filme existe na subjetividade com que se assiste a naturalidade das crianças, a natureza da inocência e seus desdobramentos, na bota na pegada, nas sombras dos dedos contra a luz. Um ennuismo pueril Caspar Friedrichiano, um vazio que apesar de ser ausência carrega o mistério da onipresente presença, da sua pequenez individual em frente ao mundo neblinoso da incomunicabilidade, a realidade inalcançável mas assombrante do mundo dos adultos silenciosos mas proibitivos. Estética e textualmente o filme pode lembrar Paisagem na Neblina, de Angelopoulos, sobre o sofrimento da formação da adultez em um mundo sem guias, mas principalmente sobre a procura de uma origem e identidade (curiosamente representada por um pai) que carrega a humanidade pelos caminhos do sofrimento. A observação da natureza de seus personagens é o maior instrumento do público aqui, como é em O Espírito.

“Outro dia iremos… porém têm de prometer-me uma coisa; não digam nada à sua mãe”

O filme escorre com a melifluidade de uma tarde sem ambições de outono. Um papel de parede rasgado num quarto infantil. E como a tarde, representa o início de uma percepção infante da individualidade, da sinonimicidade entre identidade e conflito, e ir para além dos pais que não podem a ensinar. Os espanhóis nascidos no pós-guerra encarando o ruir de um mundinho estabelecido e sonhando com o além das muralhas, a menina encarando cogumelos e sonhando com o jardim dos cogumelos. O estranho e o indivíduo em constante provocação, perdidos em uma confusão indifusa das principais pulsões do filme, o esconder e o procurar.

A aparição do guerrilheiro parece representar mais uma gênese de Ana. Agora ela tem o próprio segredo, do pai e de Isabel, e a forma como os segredos existem faz ela finalmente ousar além do mundo que lhe foi imposto, contemplar o além e encontrar-se com o místico espírito que havia sido banido. Já li a cena final sendo descrita como o chamado vão de Ana pelo Espírito, mas é uma leitura sem imaginação. O Espírito não precisa aparecer para estar, não tem corpo. Ana pode vê-lo. As ideias vivem por dentro do simulacro da autoridade.

São mantidos segredos das crianças mas elas também têm seus segredos, sussurrando de noite e alimentando guerrilheiros fugitivos. O mistério e a inocência que ditam esse mundo. Inocência essa que termina em Ana quando ela se aproxima dos seus medos e das verdades ocultas, das palavras de precaução do pai e de cogumelos venenosos. Tentam esconder as crianças do Espírito, mas ele não tem corpo, portanto não se pode matá-lo. Se for seu amigo pode falar com ele quando quiser. Feche os olhos e o chame.

“Don José já pode ver”

Zaza, um mal crítico, mas um bom escritor.

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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