Por Talita Bedinelli.
No último sábado à noite, o ar de Santos, uma das principais cidades do litoral paulista, exalava esterco. Era o odor dos excrementos de mais de 25.100 bois confinados no navio Nada, de bandeira panamenha, parado no porto da cidade havia oito dias. Eles seriam exportados para a Turquia, mas uma decisão judicial proibia a saída da embarcação, onde uma perícia constatou maus-tratos aos animais.
O navio acabou partindo na noite de domingo, após intervenção do Governo Michel Temer e da bancada ruralista, representada no Ministério da Agricultura pelo ministro, Blairo Maggi. Mas o caso se tornou um símbolo para ativistas, que prometem mais protestos e pretendem pautar o Congresso Nacional para tentar a proibição do tipo de transporte no país —um projeto de lei foi protocolado na Câmara nesta segunda-feira, pelo deputado Ricardo Tripoli (PSDB-SP).
Os animais, com até um ano de idade, pertenciam à Minerva Foods, uma empresa com sede em Barretos (interior de São Paulo), que se apresenta em seu site como “uma das maiores exportadoras de gado vivo do mundo”. Eles começaram a ser embarcados em 26 de janeiro numa operação que terminou cinco dias depois. O gado já havia enfrentado uma jornada de até 14 horas em caminhões, que deixaram uma área de pré-embarque localizada a 500 quilômetros dali. Durante o percurso, mal conseguiam se mover e suas as fezes e urinas foram lançadas em via pública, o que rendeu à empresa duas multas da Prefeitura de Santos, num total de 2,5 milhões (por maus-tratos e contaminação da rede de drenagem; e pelo forte odor de excremento que tomou conta da cidade).
Enquanto o procedimento de embarque ocorria, ativistas da Agência de Notícias de Direitos Animais (ANDA) e do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, uma entidade que reúne 136 organizações não-governamentais brasileiras, acionaram a Justiça federal. Pediam a suspensão do embarque de animais vivos em todos os portos brasileiros e o desembarque imediato do gado de Santos, para poupá-los da extenuante viagem de semanas pelo oceano Atlântico rumo à Turquia.
No dia 31, o juiz Djalma Moreira Gomes proibiu, em uma decisão liminar (provisória) a saída do navio NADA e de outras possíveis embarcações com carga viva de portos brasileiros. Ordenou ainda a vistoria por uma veterinária, que em visita no dia seguinte constatou serem “abundantes os indícios de maus-tratos e violação explícita da dignidade animal“, segundo reportou em seu relatório, publicado na internet pelas ONGs e cujos trechos foram usados em sentença judicial. Em seu relato, ela afirma que a situação dos animais variava a depender de onde estavam suas baias no navio, com 13 pisos. Num dos andares, mais acima, as condições de iluminação, ventilação e lotação estavam “aparentemente moderadas” e o assoalho apresentava uma cobertura feita por cascas de arroz, para evitar que os animais escorregassem durante a movimentação da embarcação.
Mas em andares inferiores, onde estavam os animais que foram embarcados primeiro, “as condições de higiene eram muito precárias”. “A imensa quantidade de urina e excrementos produzida no período propiciou impressionante deposição no assoalho de uma camada de dejetos lamacenta (…) No interior das baias é unicamente possível ao animal prostrar-se ao chão. Tal movimento diminui espaço na área e sujeita o animal a contato íntimo com seus dejetos e os dejetos de outros animais”, relatou ela. Segundo a equipe do navio, continuou a veterinária, a lavagem dos pisos ocorre a cada cinco dias, mas esse sistema só é colocado em funcionamento após partida da embarcação, já que o descarte é feito no próprio mar, sem tratamento, o que não seria possível na costa. A veterinária também relatou a existência da graxaria, setor com um equipamento para triturar os animais que morrem no caminho—o resultado disso também acaba lançado no mar, destacou ela.
Em nota, a Minerva Foods afirmou que o manejo do gado segue todos os procedimentos adequados para preservar o bem-estar dos animais durante o transporte, embarque e no decorrer da viagem até o destino. E que este tipo de exportação é devidamente regulamentada pelo Ministério da Agricultura. Um relatório do Serviço de Vigilância Agropecuária do Porto de Santos, usado pelo Governo federal na ação, atestou que as condições de manejo e de bem-estar dos animais embarcados atendiam o preconizado nas normas editadas no país. Com base no impasse entre as versões da vistoria, o recurso da empresa para liberar o navio acabou negado na tarde de sábado (3).
Um alvoroço no Governo Temer
A detenção do navio causou um alvoroço no Governo Temer. No domingo à tarde, o deputado federal Beto Mansur (PRB-SP), vice-líder do Governo na Câmara, esteve no porto de Santos para visitar a embarcação, enquanto o ministro Blairo Maggi se reunia com o presidente. O Governo argumentava que o desembarque dos bois traria grave risco de lesão à agropecuária nacional e que o navio tinha condições de se submeter ao transporte internacional de animais. Dizia que a embarcação se tornou um fator de “potencial de risco à introdução de diversos agentes patógenos”, já que os animais já haviam sido alimentados com rações não existentes no país, podendo disseminar sementes de plantas daninhas através de seu esterco. E a logística para o desembarque exigiria ao menos 30 dias, colocando em risco a saúde dos animais. Na noite do próprio domingo, a desembargadora Diva Malerbi, do Tribunal Regional Federal 3, concordou com os argumentos e acatou um novo recurso, desta vez da Advocacia Geral da União (AGU), afirmando que os riscos do desembarque seriam maiores do que a continuidade da viagem. O navio partiu poucas horas depois da decisão.
“Sou advogado há 15 anos e não sei como acessar um desembargador federal às 21 horas de um domingo. Isso só mostra o poder econômico que está envolvido nisso”, afirma Carlos Ademir Bedin Cipro, da Associação Brasileira de Advogadas e Advogados Animalistas (Abraa), envolvida no processo. “As alegações para liberar são muito equivocadas, sem nenhum embasamento técnico e usadas para convencer uma pessoa leiga, que pressionada pelo Governo tomou a decisão”, destaca Vânia Plaza Nunes, diretora técnica do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal. “Se o desembarque demoraria 30 dias, como eles fariam caso houvesse um problema técnico?”, diz.
Acidente no Pará
O transporte de gado vivo pela Minerva já havia sido destaque na imprensa em outubro de 2015, quando um navio com 5.000 bois naufragou no Pará. Muitos animais morreram afogados. A embarcação partiria para a Venezuela, que já foi um dos maiores destinos deste tipo de exportação, segundo dados levantados pelo presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), José Augusto de Castro. A crise no país vizinho mudou o cenário e diminuiu consideravelmente a quantidade de gado enviada para fora do país.
Enquanto em 2013, auge do mercado, 688.000 bois saíram vivos do território brasileiro, trazendo um aporte de 724 milhões de dólares (2,3 bilhões de reais), em 2017 este número caiu para 407.000 unidades, num valor total de 276 milhões de dólares, destaca Castro. A Venezuela no ano passado não comprou um único gado brasileiro, sendo substituída na liderança pela Turquia, que obteve 227.000 cabeças no ano passado. Este tipo de importação não é a mais lucrativa, afirma o presidente da AEB, já que a tonelada da carne congelada exportada vale o dobro da do boi vivo. Mas ela atende um mercado que quer ampliar sua reserva de bois e uma demanda de ordem religiosa, que prevê regras mais rígidas para o abate animal. Na Turquia, os bois exportados do Brasil serão criados para a engorda e depois abatidos segundo preceitos muçulmanos.
Na noite desta segunda-feira, o TRF3 também derrubou a liminar que proibia o embarque de animais vivos em todos os portos brasileiros. Os ativistas agora recorrem da decisão. Querem que ela seja revertida o mais rapidamente possível, já que uma nova embarcação com 5.488 animais está programada para sair do país nesta quarta-feira, no porto de São Sebastião (São Paulo).