Um feriado para todos nós. Carta de um amigo impressionado


Por Victor Caglioni.

Hoje fez um dia de céu sem nuvens e bastante vento em Buenos Aires, mas ao que cabe a mim considero que hoje tenho uma tarefa distinta do que falar do clima. Escrever para meus amigos o que vivi e o que senti, neste feriado argentino. Sim por que não posso deixar de compartir isso com vocês a quem considero.

Em cada 24 de Março, é comemorado na Argentina o “Dia Nacional de la Memoria por la Verdad y la Justicia”. Nessa mesma data em 1976, aplicou-se o golpe militar, e o povo daqui recorda os mais de 30 mil desaparecidos desse período sombrio.

Apesar da dor dessa ferida que carregam, eles não há escondem, como é comum a nós fazermos, não é verdade? O país está a sua maneira e tempo, julgando e punindo os responsáveis por crimes na ditadura.

Bom eu fui convidado a participar da tradicional Marcha que acontece nesse dia pelo Luís, um “amigo argentino” (vamos dizer amigo, para que ninguém pense que estou escrevendo uma coluna para revista Caras – risos!) da estimada amiga Urda A. Kluger, hermano a quem conheci através dela, ainda em Blumenau.

Decidimos nos encontrar na escadaria da Catedral de Buenos Aires, no coração da Plaza de Mayo. Resolve sair de casa bem antes do combinado com ele, para poder passar pelo Congresso (meu caminho diário para universidade, que fica a duas quadras do mesmo). Muito antes de chegar ao maravilhoso prédio congressista, ainda na Avenida Entre Rios, que estava parcialmente fechada, percebi que a movimentação não seria pequena, afinal estávamos bem longe da Plaza de Mayo e já havia muitos ônibus com bandeiras, pessoas nas ruas, com foguetes, tambores e gritos ensaiados como aqueles comuns em partidas de futebol. (Essa movimentação é comum, durante as protestas ou greves, que acontecem por aqui, mas dessa vez era diferente e havia muito mais gente por ai).

Segui o caminho e observei que ao mesmo tempo em que os restaurantes estavam cheios de pessoas que “curtiam” uma conversa enquanto tomavam e comiam algo, a rua ficava cada vez mais cheia de pessoas e sons diversos.

Ao chegar á Plaza de Mayo, caminhei por quase toda a quadra e comecei a sentir que havia algo diferente acontecendo ali. A primeira vez que havia sentido algo assim, foi no ano passado, só que na ocasião estavam sepultando a Néstor Kichner, que devolveu a dignidade aos argentinos segundo escreveu uma mulher simples em um dos cartazes que mais me encantaram na ocasião.

Percebia que a praça ia enchendo, e esse encher se fazia com uma diversidade de gente impressionante. Sabe aquilo que nossa sociedade costuma intitular de comum e de diferente, estavam todos lá.

Enquanto esperava Luis, na escadaria da Igreja, ao meu lado estava uma turma de várias idades com bandeiras coloridas pertencentes ao movimento GLS, do outro, três crianças suas mães, pais e avós. Enquanto as mulheres conversavam, os pais brincavam e olhavam com seus filhos os jogadores de um jogo simples, mas interessantíssimo, que uma organização havia montado na praça. Que consistia em acertar com uma bola bonecos dos militares caracterizados e seus representantes. Cada um que acertava, ganhava um brinde com caricaturas historiográficas dos “personagens” que haviam acertado. Era uma festa.(segue uma foto em anexo).

Logo depois Luis me liga e nos encontramos, ele muito simpático (para aqueles que insistem em dizer que os nossos hermanos não são amáveis) e seguimos caminhando até a Avenida 9 de Julio, de onde partiriam seus amigos. No caminho conversávamos sobre muitos assuntos e Luis foi me ensinando histórias de Argentina que eu não conhecia, quem eram as pessoas que estavam aí, as siglas e os representantes daqueles muitos partidos e bandeiras que eram hasteadas.

Em alguns instantes estava eu, ali no centro da capital argentina, no meio da passeata, seguindo com amigos de Luis, todos muitos amáveis, um deles conversou comigo sobre política (a verdadeira, não politicagem, em sério) e ele me abraçou quando disse que eu defendia a Social Democracia (a praticada, não aquela que serve só para dar nome a partido).

Uma outra mulher que estava conosco, me dizia que conheceu Blumenau em 1988, pensem nas diferenças atuais, queria saber se ainda existia o Castelo de Moellmann, (com certeza seu cartão postal em definitivo) e ai a conversa desandou loucamente, passamos pelo litoral catarinense e claro, ela me falava como se estive se remetendo ao um paraíso natural, me apertava às mãos, abraçava, era um carinho diferente, de uma pessoa que nunca tinha visto na vida. Confesso que estava maravilhado com tudo aquilo.

Os tambores soavam sempre mais altos, e as palavras que defendiam direitos, justiça, ou que faziam valer posição contrária ao governo da Cidade de Buenos Aires (conservador e que atualmente promove segregação social e limpeza étnica).

Sabem aquela máxima de todos iguais, não importa cor de pele, classe social (não creio que havia ricos, mas isso se deve ponderar, por que aqui, diferente do Brasil, muitos ricos não se vangloriam, exibindo seus bens como status, portanto é mais difícil identificá-los) crenças religiosas, desejo sexual, intelectuais ou trabalhadores – obreros, povos originários (como chamam os indígenas) partidos políticos (por que ali também havia partidos de ultra esquerda que criticavam o governo atual) tudo isso, digo essa mistura toda, sem a hipocrisia que nos é tão comum (imposta ou não), por que era perfeitamente possível identificar todos aqueles rostos por suas bandeiras que eram hasteadas com orgulho de pertencimento ao que representavam suas liberdades.

De fato ali, eu senti de novo, aquilo que na mesma praça no ano passado, tinha sentido uma coisa muito difícil de escrever, um sentimento de HUMANIDADE, talvez essa seja uma boa palavra, mas mesmo assim não creio que contempla a tudo. Um pertencimento a um coletivo, pois todos estavam ali com o mesmo objetivo, cada um em sua diferença, que ali pouco importava, pois as mãos que se levantaram, durante o maravilho discurso das Mães-Avós da Plaza de Mayo, eram de uma imensidão, de cores e tipos de fazer inveja ao conto da Torre de Babel.

O recado dessas mulheres incríveis fazia jus a sua prática diária, sua luta de verdade, que se pode presenciar ao longo de todo o ano, podia-se sentir a  cada palavra de Hebe de Bonafini e suas eternas parceiras, os ecos de aplausos, os V nas mãos (símbolo daquilo que eles chamam de peronismo, que assim como o que eu senti, por mais que eu entenda jamais saberei explicar para vocês o que é).

Ali naquela praça, que já foi bombardeada em 1955 por causa das lutas de seu povo (quando lutavam por si e por Perón, que teve que fugir), emergia uma energia, que provavelmente é uma espécie de Amor cúmplice, por que só pode ser afinal, é isso não é? Quando não se consegue explicar mas basta olhar nos olhos das pessoas para que todos entendam do que se trata.

Nessa complexidade toda do mundo moderno, até mesmo nessa capital que às vezes como me disse uma irmã de alma, “É difícil sorrir, sem ser mal interpretado”. Estava eu, sempre tão na minha, ali sorrindo, nascido tão longe, aparentemente sem conexão nenhuma com toda essa gente que também sorria, soltando foguetes e cantando com seus tambores, em meios aos fotógrafos e câmeras de televisão.

E nesse momento martela o pensamento de que inegavelmente não somos ilhas isoladas, e que é possível encontrar com e nos Outros o caminho para que possamos nos criar e recriar. ¡Arte de la vida!

Algo de igual havia em cada um daqueles que ali estavam. E o importante é que ali estavam se reconhecendo e dando voz a si mesmos; numa celebração maravilhosa, linda de ser vivida por todos aqueles que ainda acreditam na possibilidade de sermos e fazermos mais e melhor por nossas famílias, por aqueles que amamos, por nosso mundo.

Eu vivi isso e não tem preço! Que um dia cada um de nós possa sentir, ou reviver, o mesmo, seja onde estiveremos.

 

Victor Caglioni.

24 de Março de 2011.

Foto do autor.

2 COMENTÁRIOS

  1. Obrigado pelo espaço, fico honrado. E na minha timides só posso achar tudo isso um grande passo.
    Abraço a todos.

    • Victor, publicamos seu belo artigo porque achamos valioso para nossos leitores partilhar tão interessante e latinoamericana vivência. Disponha. Um abraço.

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