A Agência Pública segue o rastro de um espião machista e temperamental enviado pela USAID para distribuir dinheiro à oposição venezuelana e dividir o chavismo.
Eduardo Fernández é um nome comum. Tão comum que é impossível encontrar informações sobre um determinado Eduardo dentre milhares deles em dezenas de países da América Latina. Mas o argentino-americano Eduardo Fernández não é um homem nada comum. Entre 2004 e 2009, era ele quem dirigia o Development Alternatives (DAI) em Caracas, que recebia milhões de dólares da Usaid para seguir o plano estabelecido pelo Departamento de Estado dos EUA para a Venezuela: fortalecer grupos de oposição, dividir o chavismo e isolar Hugo Chávez internacionalmente. (Leia mais sobre a estratégia da USAID)
O papel de Fernández talvez passasse despercebido como o nome comum, não fosse o seu temperamento explosivo, desbragadamente machista e indiscreto – o que o levou a ser investigado por comportamento impróprio na empresa em que trabalhava – e que desapareceu da noite para o dia da Venezuela.
Como relataram seus ex-funcionários, ele era do tipo que se referia às mulheres colocando as mãos sobre os próprios peitos, para sugerir seios fartos, e chegou a dizer que o escritório da DAI em El Rosal, Caracas, era “ineficiente como um bordel”. Diante do caso de uma funcionária grávida, reagiu: “Se vocês conseguissem segurar uma pílula entre os joelhos, eu não teria que gastar dinheiro pagando por licença-maternidade”. Outra funcionária ficou tão desconcertada com os olhares sedentos do chefe à sua saia, que resolveu fechar a fenda com um clipes de papel. Dias depois Fernández perguntou quando ela iria usar “aquela saia com o clipes” de novo.
Mas Fernández é assim mesmo e não pretende mudar, como afirmou durante a investigação interna da DAI. Foi ele quem deixou o rastro das atividades da DAI na Venezuela, três anos depois de sua equipe ter se retirado às pressas do país, em 2009. Graças e ele uma longa lista de documentos que revelam em detalhes o trabalho da DAI pode ser consultada na internet, no processo de US$ 600 mil que a ex-diretora Heather Rome move contra a empresa por não ter tomado nenhuma atitude contra Fernandez apesar de suas repetidas reclamações. Os documentos da justiça de Maryland, nos EUA, foram vazados pelo jornalista americano Tracey Eaton, do blog Along the Malecon.
São mais de 300 páginas de documentos sobre o diretor da empresa que atuou num dos principais QGs anti-Chávez plantados pelos EUA em Caracas. “As reclamações que eu recebia das funcionárias venezuelanas iam ao ponto de elas virem chorar em meu escritório, o que reduzia a produtividade”, conta Heather no seu depoimento. “Várias pessoas falavam que seu sentimento era: ‘temos orgulho de estar trabalhando neste projeto, nós preenchemos os cheques e sabemos quanto dinheiro está sendo gasto. O governo dos EUA está trabalhando muito duro, e a DAI está nos ajudando a mudar a situação do nosso país para torná-lo mais democrático do que Chávez quer. Mas não entendemos como eles podem fortalecer a sociedade civil quando temos nosso próprio mini-Chávez aqui no escritório, e eles não ligam’”.
Alan Gross: sua prisão em Cuba revelou a existência da DAI
Entre 2002 e 2009 a Usaid distribuiu cerca US$ 95,7 milhões de dólares a organizações de oposição venezuelana através do seu Escritório de Iniciativas de Transição (OTI, em inglês), aberto no país dois meses após o fracassado golpe de estado contra Hugo Chavéz.
Simultaneamente, instalou-se no país a empresa Development Alternatives, uma das maiores contratistas da Usaid para gerenciar fundos de assistência no exterior, o que desde o governo Bush vem sendo feito pela iniciativa privada. A empresa, que costuma atuar nos bastidores, passou a ser conhecida no cenário latinoamericano em dezembro de 2009, quando Alan Gross, um de seus funcionários, foi preso em Cuba ao distribuir celulares e equipamentos de comunicação via satélite à dissidência cubana. Gross foi condenado a 15 anos de prisão por atos “contra a segurança nacional” de Cuba.
Na Venezuela, a DAI, cujo slogan é “moldando um mundo mais habitável”, foi a principal responsável pela distribuição de pequenos financiamentos da Usaid a diversas organizações da sociedade civil, seguindo a estratégia traçada pelo Departamento de Estado e pela missão diplomática no país de dividir o chavismo, infiltrar-se na sua base política e isolar Chávez internacionalmente.
No escritório em Caracas, situado entre a rua Guaicaipuro e a Mohedano, trabalhavam 18 venezuelanos de tendência anti-chavista e dois diretores americanos – Eduardo Fernández era um deles e passou a dirigir o escritório em 2004. O currículo de Heather Rome, anexado ao processo, explica que a diretora assistente, também americana, chegou ao país em julho de 2005 para supervisionar a administração das doações a ONGs em um programa de US$ 18 milhões de dólares. Segundo seu currículo, Heather, que era subalterna a Fernandezn trabalhava “em colaboração com o embaixador americano William Brownfield”. Brownfield ocupou o cargo entre 2004 e 2007 e elaborou uma sucinta estratégia de 5 pontos para acabar com o governo Chávez em médio prazo.
Os programas mantidos pelas doações destinavam-se principalmente a “facilitar o diálogo entre segmentos da sociedade que dificilmente se sentariam juntos para discutir temas de interesse mútuo”, segundo um documento diplomático enviado ao Departamento de Estado em 13 de julho de 2004. Ou seja, unir a oposição. Um dos principais projetos era o “Venezuela Convive” que, segundo o documento diplomático, buscava “encorajar o conceito de convivência pacífica entre indivíduos e organizações com fortes opiniões contrastantes – um valor que a maioria dos venezuelanos respeita e que é considerado sob ataque no atual clima de intolerância política” – promovida pelo governo Chávez, segundo a embaixada.
Em 24 de fevereiro de 2006, em outro despacho diplomático, o ex-embaixador Brownfield explica que os financiamentos da DAI “apoiam instituições democráticas, incentivam o debate público, e demonstram o engajamento dos EUA na luta contra a pobreza na Venezuela”. Para Bromsfield, fortalecer a sociedade civil era essencial para isolar Chávez internacionalmente, levando para a arena internacional “os sérios problemas de direitos humanos no país”. Dois exemplos neste sentido, que receberam financiamento através da DAI, são o Centro de Direitos Humanos da Universidade Central da Venezuela e os projetos do IPYS, Instituto Prensa y Sociedad de jornalismo investigativo e de uma Lei de Acesso à Informação venezuelana.
Grosso e machista, o chefão da DAI tinha apoio da Usaid
O temperamental Eduardo Fernandez era uma peça fundamental nessa engrenagem, e contava com o apoio incondicional da Usaid. Tanto é que, mesmo depois de uma investigação interna da DAI em 2008 ter comprovado que Fernandez, no mínimo, assediava moralmente seus funcionários, gritando com eles, e que “destrataria um homem tão rapidamente quando uma mulher”, a DAI resolveu mantê-lo no cargo. E demitir Heather Rome. “A última coisa que eu preciso é ter de novo caos e desobediência no escritório”, escreveu Fernandez em um email à gerência da empresa.
No final de abril de 2008, o supervisor da Usaid para o programa da Venezuela, Russel Porter, ligou pessoalmente para o diretor da DAI, Mike Godfrey, para congratulá-lo pelo trabalho na Venezuela. Godfrey descreve, em um email constante no processo, que Porter voltara de uma visita ao país bastante satisfeito. “Russel queria especificamente relatar sua satisfação com o time sênior em Caracas – Erin Upton-Cosulich e Eduardo Fernandez. Fez questão de destacar que eles trabalham bem juntos, que o ambiente está mais harmonioso e que os dois conseguiram engajar toda a equipe de modo mais eficiente. Ele tem esperanças que isso continue”.
Eduardo Fernández, portanto, seguiu sendo o chefe.
Um ano depois, porém, as coisas não estavam tão “harmoniosas” no escritório. O governo venezuelano acabava da abrir uma investigação contra empresa e contra seu diretor. No dia 27 de agosto de 2009, um consternado Eduardo Fernández se reuniu com o pessoal da embaixada americana para pedir socorro.
A polícia bate à porta da empresa de Fernández
No dia anterior, uma quarta-feira, policiais venezuelanos bateram à porta da DAI com intimações para que Eduardo Fernandez e Heather Rome prestassem depoimento na semana seguinte perante a divisão de Crimes Contra a Riqueza Nacional do Corpo de Investigações Científicas, Penais e Criminalísticas (CICPC).
Os policiais – que foram “profissionais” e “educados” segundo Fernández – disseram que a investigação fora iniciada pela Superintêndencia de Bancos após a detecção de “transferências incomumente grandes” de dinheiro em 2007 e 2008, conforme o despacho diplomático do embaixador dos EUA na Venezuela durante o governo Bush, Patrick Duddy, que já havia sido embaixador antes de Brownfield, mas fora expulso do país por Hugo Chávez antes de voltar como enviado de Obama.
“Isso [as grandes transferências de dinheiro] coincidiu com o referendo constitucional de 2007 e com as eleições nacionais, estaduais e locais em 2008”, escreveu Duddy.
O foco da investigação venezuelana era a origem dos fundos, os objetivos da DAI no país, seu status fiscal e o destino do dinheiro. Segundo os policiais, a investigação seria “longa e profunda” e envolveria também as autoridades fiscal e imigratória do governo venezuelano.
Fernandez estava em Caracas com um visto oficial cedido a pedido da diplomacia americana, porém vencido desde março de 2009. A embaixada pedira sua renovação, mas o passaporte foi retido sem explicações pelo Ministério de Relações Exteriores até o final de agosto. “Fernández não tem outra forma de identidade venezuelana. Ele continua com seus passaportes americano e argentino”, escreveu o embaixador, pedindo orientações sobre o caso ao Departamento de Estado americano, então comandado por Hillary Clinton.
E explicava: “Como parte dos seus acordos de financiamento, a DAI se compromete a proteger a identidade de todos os beneficiários. Os arquivos da DAI são estruturados de maneira que a informação financeira pode ser liberada sem comprometer as identidades”, detalhava Duddy. “Dito isso, a DAI tem 50 caixas de arquivos no seu escritório que contêm informações sensíveis e que podem ser apreendidas”, alertava.
“As ruas estão quentes”, dizia Fernandez sobre protestos de financiados da DAI
Fernández acreditava que o objetivo da investigação era coletar informações sobre as organizações financiadas pela DAI e, ao mesmo tempo, interromper o fluxo de recursos para elas. “As ruas estão quentes”, disse ele ao pessoal da embaixada, sobre crescentes protestos anti-Chávez. “Todas essas pessoas (organizando os protestos) são nossos financiados”. E afirmava que não queria abandonar o time, deixando o país, avisando que iriam pedir uma extensão de prazo para se apresentar à polícia.
No seu despacho, o embaixador pede orientações bem específicas a Washington, perguntando se Fernández tinha “alguma imunidade baseada em seu passaporte oficial e em seu visto, ou se ele deveria comparecer ao CICP ou diante de outras autoridades venezuelanas”; e “se o Sr. Fernández deveria revelar alguma informação, e se sim, qual”.
Duddy também queria saber “o que a DAI deveria fazer com suas 50 caixas de documentos, alguns dos quais contém nomes das pessoas que dirigem as organizações financiadas pela DAI”. E, por fim, pergunta se a embaixada deveria ajudar Fernández a fugir: “Se o Sr. Fernández é considerado alguém que trabalha em nome dos EUA, ele deve permanecer no país ou tentar sair da Venezuela antes da entrevista com a polícia em 1 de setembro?”.
Aonde anda Eduardo?
Não há registro da resposta de Hillary Clinton nos documentos do WikiLeaks nem no site da DAI. Mas, no processo movido por Rome, a advogada da empresa não poderia ter sido mais clara a respeito da final da missão de Fernandez na Venezuela. No final de agosto do ano passado, em uma audiência em Maryland, nos Estados Unidos, onde o caso se desenrola, Kathleen M. Williams alegou que por se tratar “de um cliente novo” seria muito difícil levantar documentos relativos a seu período de trabalho na Venezuela: “A DAI abandonou o local muito apressadamente em 2009. Muitos arquivos não estão mais lá.” E volta a insistir no assunto, na conversa com o advogado de acusação: “Não sei se esses documentos existem. Não sei se eles foram abandonados da Venezuela. Eu sei que eles abandonaram um montão de informação na Venezuela”.
No mesmo diálogo, transcrito no processo, o advogado da acusação diz que o maior problema é que “Fernández desapareceu”. Kathleen interrompe: “Não é verdade. Ele está neste país. Ele vive em Maryland”. A advogada, no entanto, nega estar em contato com ele e recusa uma intimação em seu nome.
É a ultima menção oficial da DAI a Eduardo Fernández, o homem incomum de nome comum que tinha papel tão relevante nas tentativas dos EUA de desestabilizar o governo venezuelano. Outro Eduardo Fernández foi contratado pela DAI, em março de 2012, para seu escritório no México. O homônimo, ex-ministro de finanças da Colômbia, herdou o email oficial do argentino-americano Fernández que atuou na Venezuela até o escritório fechar: deste não há nenhuma notícia no site da DAI que, contatada pela Pública, não se pronunciou até a publicação desta reportagem.
Também não há menção a ele nos sites da USAID ou da OTI. O mesmo nome, Eduardo Fernández, porém, figurou no site de outra empresa que faz trabalho semelhante à DAI – a Casals & Associates -, principal contratista da Usaid no Paraguai, encarregada deadministrar mais de US$ 30 milhões em doações antes da destituição de Fernando Lugo. Fundada por uma dissidente cubana, a Casals já havia distribuído mais de US$ 13 milhões para projetos que fortaleciam a oposição a Evo Morales na Bolívia.
No site da Casals o nome Eduardo Fernández aparece em janeiro de 2012 e some em junho de 2012 – mês em que foi decretado o impeachment de Lugo no Paraguai. Um mês depois foi a vez da própria Casals desaparecer do bonito casarão que ocupava na rua Bernardino Caballero 168, em Assunção, aparentemente com a mesma pressa que a DAI desocupou suas instalações na Venezuela.