Por Reinaldo Melo.
Jean Baudrillard defendeu a tese de que, na sociedade contemporânea, aos símbolos é dado muito mais destaque do que à própria realidade. As discussões feitas com base no ENEM 2015 dão mostras de que o filósofo francês estava correto.
O ENEM foi criado em 1998, no governo FHC, pelo ministro da Educação Paulo Renato. Seu intuito, na teoria, era avaliar as instituições escolares para a construção de Planos Curriculares que auxiliassem na melhoria da qualidade do ensino. Na prática, o que se viu foi o exame servir de ranqueamento de escolas e claro que, por meio disso, criou-se uma guerra publicitária entre as particulares tendo como base o desempenho dos seus alunos no exame nacional. Ou seja, dentro da linha neoliberal, era uma medida educacional que auxiliaria as escolas privadas a praticarem o discurso de excelência enquanto que as escolas públicas seriam destruídas.
Em 2009, no governo Lula, o ministro da educação Fernando Haddad reformulou o Enem a fim de universalizar o acesso às faculdades federais. Foi a partir daí que o exame ganhou apelo popular e se transformou numa das vitrines do governo petista. Atrelado à política de cotas para alunos negros, indígenas e oriundos das escolas públicas, o ENEM se transformou numa esperança do pobre fazer uma faculdade gratuita.
No entanto, o ENEM ainda continuou a ser um exame para a elite. As cotas e a “democratização” do acesso pouco mudaram a realidade dos cursos mais cobiçados deste país. Por exemplo, num país em que 53% da população é negra, apenas 2,7% dos formandos do curso de medicina são desta etnia. Ao mesmo tempo, são pouco mais de 200 mil vagas oferecidas pelas instituições que selecionam por meio do exame, isto é, pouco menos de 4% dos candidatos terão uma vaga num curso técnico ou superior numa universidade pública. Somando este número com as bolsas oferecidas pelo PROUNI, não se chegam a 8% dos contemplados pela oportunidade de estudar gratuitamente. E, tendo como base o descalabro das escolas públicas deste país, sabemos que os alunos da classe média e da elite estão bem à frente nesta concorrência. Concomitantemente ao ENEM, o acesso à faculdade para a população menos abastada se deu pelo FIES, programa de financiamento de ensino nas universidades privadas, cujos favorecidos possuem um prazo extenso com juros baixos para quitar sua dívida, o que vai criar uma bolha financeira, assunto para outra coluna.
Numa época de ajuste fiscal, é claro que a política de acesso às universidades não ficaria imune às medidas neoliberais que o governo Dilma vem adotando em seu segundo mandato. O ENEM de 2015 foi elaborado no intuito de dificultar o desempenho dos alunos das camadas populares, pois, neste ano, para o candidato ter direito ao financiamento do FIES, seu desempenho no exame deve ser de 450 pontos e não ter zerado a redação. Ora, coincidentemente este foi o ENEM mais difícil de sua história, em que as questões exigiam um esforço intelectual de graduandos e não de jovens acabando de sair do Ensino Médio.
Houve uma questão sobre um poema de Olavo Bilac em que foi pedido ao aluno reconhecer através do poema a ideologia ufanista da Primeira República. Imagino o aluno de uma escola estadual de SP, onde as cartilhas porcamente abordam o tema literário, como ele deve ter quebrado a cabeça até decidir chutar tal questão. Outra questão, abordava o pensamento do esloveno Slavoj Zizek, um filósofo contemporâneo ainda descobrindo o fundamento e a proposta de sua filosofia que se delineia mais concretamente em seus últimos livros. Assim, duvido que Zizek esteja em alguma página de algum livro usado por alguma instituição de Ensino Médio deste país. O leitor mais atento pode assinalar que a questão era interpretativa. Sim, há de se concordar, mas o leitor que saia pelas escolas do país a entrevistar os alunos e lhes pergunte o significado da palavra alteridade. Certamente se decepcionará com o desconhecimento da linguagem culta dominada apenas pela elite econômica e por uma elite intelectual. Simone de Beauvoir, Weber, Sevcenko, Paulo Freire (este me surpreendeu, já que pedagogia não é disciplina do Ensino Médio) são autores pouco ou nunca abordados em escolas.
E eis que por conta de tais nomes, direita e esquerda se digladiam em torno de meros símbolos, simulando uma luta de classe no espaço de papel de uma prova. A direita patética ao ver em poucas questões uma doutrinação marxista em nomes que nem marxistas se diziam. E a esquerda sendo escrota a comemorar tais nomes nas questões, enquanto que o alunado pobre, que sabe que o acesso ao ensino superior é uma engrenagem de ascensão social na forma como nossa sociedade se estrutura, e, alheio a esses símbolos, se depara com uma prova totalmente excludente. Ou seja, a esquerda, ou grande parte dela, se isentou de fazer a crítica correta, pautada na realidade e não em simulações, à uma prova feita para a direita, já que só alunos das escolas de elite tinham condições de fazer um exame daqueles, no intuito de agradar a esquerda, pois certamente a presença dos nome ligados à bandeiras progressistas foi utilizada como cortina de fumaça para que indivíduos de tal setor elogiem a prova em seu conteúdo, mas esquecendo, ou desprezando, que sua forma se pauta na ideologia meritocrática concretizando como instrumento de exclusão, dada a falência das escolas dos pobres deste país.
Tirando o fator positivo do tema da redação, não há o que comemorar. A luta por uma sociedade melhor está longe de focarmos na importância de questões com autores de esquerda numa prova. Os que almejam pela emancipação humana devem fazer obrigatoriamente uma distinção entre as propriedades de um objeto real e os anseios de significados sobre o objeto. O ENEM continua sendo uma prova para as elites porque só as escolas destas preparam seus alunos para tal exame. De nada adianta ganhar o espaço ideológico dentro da prova enquanto que nas escolas deste país os alunos das camadas pobres sequer têm acesso a uma boa alfabetização, a livros e a materiais que os façam entender a dominação sob a qual estão. Urge a discussão do porquê as universidades públicas deste país serem das elites enquanto que uma merreca é oferecida às demais camadas como propagação da ideologia meritocrática. Urge a discussão do que é realmente o ENEM dentro dessa engrenagem excludente. Mas, enquanto tal discussão é calada por aplausos vindos daqueles que a deveriam fazer, o ENEM se caracteriza como uma prova da direita para agradar à esquerda.
Fonte: Trincheiras.