Por Clarissa Peixoto.
Therese me parece familiar. Enquanto trama, é um drama poético, com luz e cor que dançam na linha do tempo. Claro, escuro, claro. Em medida da dor, do desesperado e do silencioso. Em medida dos anos que se passam entre a menina e a mulher. É essa mulher que tem em si uma lembrança daquilo que não conheço, como se houvesse a impressão de que algo nos é familiar, embora esteja distante. É como perceber que na normalidade da vida, uma estranheza muda se estabelece, mesmo não se materializando em dimensões ou consciência.
Pelos idos de 30 do século passado, imagino que ser aquilo que denominamos vanguarda tivesse um tom bem menos poético desse que a ele atribuímos hoje, neste novo século – hightech e dissimulado. Dissimulação que nos separa apenas por décadas de Therese e que carrega consigo a insígnia dos tempos passados, em que eram as mulheres aquilo que estabelecera a família, o estado e o espírito da propriedade privada. Embora rompendo marcos da opressão, ainda esperneiam as mulheres que ensejam livrar-se dos simulacros de liberdade.
O tempo e o espaço de Therese – a trama – são motivados pela propriedade e pela família, constituída sob a violência tácita, embora sobreviva nisso um sopro de amor, de candura. O afeto sobrevive ao embrutecimento. No olhar para a propriedade da terra, Therese – a mulher – entrega, indiferente, o corpo e a ideia. E não questiona, por princípio e em princípio. No entanto, a mulher que tem uma crença racional no comum e no secular é a mesma que oscila àquilo que desconhece e a inquieta. E quando rompe, o faz de forma irreversível.
Therese traz consigo a disputa entre tradição e rompimento. Absolutamente dona de si, atira-se à instituição matrimonial, milenar e patriarcal. Vê, senão, a ordem das coisas como elas são, esperando que isso lhe traga algo de novo. Cumpre os ritos: cópula, procriação, conduta. Embora não veja razão nesse seu papel social. É quando olha para a paixão, que necessariamente não está encarnada em estereótipos com os quais nos acostumamos, e desperta para sensações profundas, para coisas que não se nominam. Esvai-se.
A tarde clara, à beira da água, elucida. Da menina à moça altiva. Da mulher indiferente à histérica incompreendida. Demove-se da letargia moral, essa que à luz da história é sedimentada, mas que é causa de soluços inaudíveis de tantas de nós, espalhadas por aí. Therese não se preocupa em compreender, segue o desejo, defende-o de si mesma e dos outros.Lança-se a histeria, que bem caracteriza a última alternativa que dispõe um corpo que sente não encaixar-se no espaço. Therese não é filósofa ou poeta. É uma mulher comum, o bastante para transgredir. Uma mulher que ignora a culpa e que abre mão da imagem social, rompendo com um mundo estabelecido entre as dualidades, entre pares e entre comportamentos impostos culturalmente à natureza feminina. Vai às raias do linchamento moral, dos preceitos da lei e ao leito da morte para encontrar-se com algo que vibra, com a inquietude no olhar do outro.
Exilada e imersa na loucura, persistindo sem muitos porquês, encontra o fio da própria história. Sem muita clareza, sem muita consciência, mas com uma certa ciência que algo acontecerá e ela irá tateá-lo, experimentá-lo. Therese é aquela moça que caminha na rua, que toma o ônibus, que sai para trabalhar. Therese é a coragem a frente de seu tempo, sem comprometimento com as escrituras e com os legados ao tempo que há de vir. Therese é aquela louca desconhecida, que não fica gravada na memória coletiva, nos livros e alfarrábios, mas, embora não saiba, nos leva para além.