Florianópolis é um símbolo no país na luta por um transporte coletivo de qualidade. Este ano, outra vez, os estudantes estão nas ruas. Mas o debate precisa avançar.
Luiz Henrique, militante do Movimento Passe Livre, está de joelhos e braços levantados no meio da Beira-Mar Norte, a mais movimentada avenida de Florianópolis. O policial se aproxima, imobiliza o estudante no chão e acerta três socos em seu rosto. Outros policiais lançam bombas de gás lacrimogêneo, balas de borracha e bombas de efeito moral contra os dez mil manifestantes que correm para todos os lados, em meio aos carros.Luiz Henrique desmaia e fica inconsciente por vários minutos. Isso aconteceu nodia 31 de maio de 2005 e a cena está no documentário Amanhã Vai ser Maior.
Exatamente cinco anos depois, em 31 de maio de 2010, a Polícia Militar invadiu a UDESC, Universidadedo Estado de Santa Catarina, e prendeu estudantes que protestavam contra o aumento da tarifa do transporte coletivo. Os policiais utilizaram gás de pimenta e armas de choque de maneira indiscriminada, atingindo universitários, fotógrafos e quem mais estivesse pela frente. Dias depois, entrevistei o então secretário de SegurançaPública que justificou a invasão e a violência policial com o seguinte argumento:“Nós entramos na UDESC para pegar pessoas que praticaram crimes” e comparou os estudantes a assassinos. Questionado sobre o uso das armas de choque, disse: “é melhor levar um choque do que ser atingido por um cassetete na cabeça, que pode causar uma fratura, portanto, o uso de armas de choque em movimentos sociais, em algumas ocasiões, é justificável”. As cenas da invasão, a entrevista e outros flagrantes de ignorância estão no documentário Impasse.
Os socos do policial e a invasão da UDESC são fatos de um mesmo enredo que toma conta da cidade há mais de uma década. Florianópolis tornou-se um símbolo no país na luta por um transporte coletivo de qualidade. Este ano, outra vez em abril e maio, os estudantes voltaram às ruas. O embrião dessa história é aCampanha pelo Passe Livre estudantile desemboca nas grandes revoltas populares de 2004 e 2005. Revoltas históricas que pararam a cidade e impediram o aumento da tarifa.Neste ínterim, a lei do Passe Livre foi aprovada pela Câmara de Vereadores e vetada pelo Executivo, foi criado o Movimento Passe Livre (MPL) no Fórum Social Mundial e os estudantes passaram a ter visibilidade e força política.Aluta do MPL se espalhou pelo Brasil e hoje está presente em Joinville, Curitiba, São Paulo e Brasília. Vem se rearticulando em Vitória, Fortaleza, Manaus, entre outras cidades.
Mas alguma coisa desandou em Florianópolis. Outros aumentos ocorreram desde entãoe nunca mais os ativistas foram capazes de grandes mobilizações, com exceção dos protestos de 2010, porém, sem conseguir o objetivo mais imediato, a redução da tarifa. Tudo inútil? Não, porque quem participou daqueles atos ficou sabendo, por meio de uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que38 milhões de brasileiros não têm acesso aos transportes por causa do preço das tarifas – é quase o mesmo número de automóveis que existem no país, 35 milhões. Em 10 anos, o número de carros aumentou 66%. O curioso – e isso boa parte dos militantes também sabe – é que os carros particulares, segundo a Confederação Nacional do Transporte, ocupam 58% do espaço viário das cidades brasileiras, para levar 20% das pessoas. Já os ônibus transportam mais de 68% das pessoas, ocupando, apenas, 24% do espaço.
Quem participou dos protestos em Florianópolis ficou sabendo que em oito anos, período de inflação controlada, o valor da tarifa na cidade subiu 238%. Ficou sabendo que o segundo maior gasto da família brasileira é com o transporte, de acordo com dados do IBGE. E, claro, nas ruas,correndo da polícia, os estudantes tiveram extraordinárias aulas práticas de Ciência Política e perceberam, na pele, as deficiências da nossa democracia. Não é pouco, mas é insuficiente para que se crie um movimento político capaz de lutar, efetivamente, por um transporte coletivo de qualidade.
Além das ruas
Nestes dez anos de luta, a bandeira do Passe Livre foi substituída pela proposta da Tarifa Zero, política pública idealizada pelo engenheiro Lúcio Gregori, ex-secretário de Transportes da cidade de São Paulo, na administração de Luiza Erundina. Nesta proposta, o transporte coletivo não seria pago imediatamente através da tarifa, mas bancado por outras formas de arrecadação.
O transporte coletivo brasileiro funciona da seguinte maneira: os municípios outorgam contratos de concessãotendo como base o equilíbrio econômico-financeiro dos concessionários. Ou seja, neste modelo, tudo gira em torno do lucro das empresas e quem paga a contaé o usuário. E, sendo assim, o usuário vai pagar mais e mais, sempre. O transporte não funciona como a educação ou a saúde, por exemplo, que tem uma porcentagem do orçamento municipal garantido por lei. Isso acontece, entre outras coisas, porque a educação e a saúde figuram como um direito social na Constituição. O transporte não. Portanto, explica Daniel Guimarães, militante do MPL e criador dosite tarifazero.org, “estamos amadurecendo um debate para ampliar a luta em duas perspectivas: a adição do transporte como direito social na Constituição, através de uma PEC (Proposta de Emenda Constitucional), para que se possa implementarleis de tarifa zero nos municípios, sem esbarrar em formalidades jurídicas conservadoras em torno das formas de financiamento.”
Para que isto aconteça, e se tenha uma forte pressão popular, a luta destes militantes precisa atingir também os milhares de usuários insatisfeitos. Estudo do Ipea, divulgado no último dia 4, revela que aproximadamente 65% da população das capitais usa transporte público para se deslocar e 55% destes usuários estão insatisfeitos com o serviço. A maioria, porém, sofre sem reclamar, não participa das mobilizações e não entende que a luta travada pelos estudantes lhe diz respeito.
Por isso, paralelamente à luta institucional, e utilizando as mídias sociais para se comunicar com o maior número de pessoas possível, os estudantes retomam a velha técnica política do boca-a-boca e planejamnovas formas de luta nas ruas. Em Florianópolis, semanas atrás, o Terminal do Centro (Ticen) foi ocupado durante 24 horas. Foramrealizadas oficinas sobre mobilidade urbana,oficinas de grafite e de malabares, exibidos filmes sobre o transporte eapresentadas peças teatro. Além de muita panfletagem e conversa com os usuários. Agora, para o próximo dia 31 de maio, um ano da invasão da UDESC e seis anos daquele episódio de brutalidade policial na Beira-Mar Norte, os estudantes organizam uma mobilização no centro da Capital.
Qual será a postura da Polícia Militar neste dia? Se uma vez mais agir com violência e impedir a manifestação, será uma derrota para quase todo mundo.Será uma derrota para os empresários e para a prefeitura, porque ficará explícitoo respaldodado a este tipo de atitudeantidemocrática, ilegal e violenta. Será uma derrota para a própria PM, que finge não perceber que arepressão é a forma mais eficaz de persuadir os estudantes a participarem de outros protestos. Será também uma derrota para os estudantes porque a mobilização de ruaprecisa trazer à memória estes fatos, para que ninguém esqueça e, principalmente, para que não se repitam. Os únicos que podem ganhar, se o evento for reprimido, somos nós, jornalistas, nós que adoramos confusão, violência e sangue.
Fernando Evangelista é jornalista. Co-dirigiu os documentários Amanhã Vai ser Maior e Impasse, ambos sobre o transporte coletivo em Florianópolis. Nova versão do Impasse será disponibilizada de graça, a partir de 31 de maio, no site www.filmesquevoam.com.br. Este texto foi publicado originalmente no Nota de Rodapé www.notaderodape.com.br
Foto: Juliana Kroeger.