Por Francisco Fernandes Ladeira.
Há um ano, no dia 7 de outubro de 2023, militantes de grupos palestinos, liderados pelo Hamas, romperam o bloqueio imposto por Israel à Faixa de Gaza há quase duas décadas e adentraram a porção sul do território israelense, realizando um ataque sem precedentes, que deixou 1200 pessoas mortas e 240 reféns, de acordo com o governo de Telavive.
Segundo membros do Hamas, a referida ação tinha três objetivos. Primeiro, reafirmar o direito do povo palestino a uma pátria; o que poderia ser eclipsado pelos “Acordos de Abraão” (cujo objetivo é normalizar as relações entre países árabes e Israel). Em segundo lugar, libertar os mais de 10.000 palestinos mantidos prisioneiros pelo regime israelense (a maioria sem acusação de qualquer crime). Já o terceiro objetivo era recuperar a santidade da Mesquita Al Aqsa, em Jerusalém – terceiro lugar mais sagrado do Islã, repetidamente profanado pelas forças de segurança sionistas.
Posteriormente, soube-se que parcela considerável das 1.200 mortes foram causadas pelas próprias forças militares de Israel, seguindo o “Protocolo Hannibal”, procedimento que visa evitar a captura de soldados, o que inclui abrir fogo contra os sequestrados, sejam civis ou não.
Logo após a contraofensiva liderada pelo Hamas (uma resposta aos anos de humilhações impostas pelo sionismo), houve uma investida militar israelense à Faixa de Gaza, recrudescendo o genocídio do povo palestino, em escala só comparável ao contexto da Nakba, quando pelo menos 700 mil pessoas fugiram ou foram forçadas a deixar suas casas no que hoje é Israel. Até aqui, o balanço dessa investida sionista pós-7 de outubro são pelo menos 41.870 pessoas foram mortas e 97.166.
Diferentemente do acontecimento histórico, brevemente descrito acima, há outra versão do ocorrido naquela região do Oriente Médio, a qual podemos nos referir como “evento mediático”.
Ao contrário do acontecimento histórico – que envolve todo um processo que tem início com o surgimento do Movimento Sionista, passa pela migração em massa de judeus para a Palestina e a posterior criação do Estado de Israel, culminando na ofensiva liderada pelo Hamas –, o evento mediático não tem causas, somente consequências. Ou seja, é feita uma espécie de tábula rasa ou marco zero, com os antagonismos entre israelenses e palestinos começando a partir do 7 de outubro de 2023.
O evento mediático não é norteado pela lógica da análise geopolítica, mas do espetáculo. A forma substitui o conteúdo. A complexidade do contexto cede lugar para a ideologia nos noticiários internacionais.
A construção do evento mediático tem início na escolha das fontes, as principais agências internacionais de notícias (ligadas, sem exceção, às agendas externas das potências imperialistas e sua ponta de lança no Médio Oriente, o Estado de Israel).
Logo, não é difícil inferir que tais noticiários serão amplamente favoráveis a Israel em detrimento do povo palestino. O direito ao contraditório, a análise dos fatos por variados ângulos, só existem no plano retórico, nos manuais de redação. Não há matérias e reportagens sobre o que realmente ocorre em Gaza, mas propaganda de guerra sionista.
Também há de se destacar os limites temporais dos noticiários internacionais. Como é impossível enfatizar todo o histórico das conturbadas relações entre israelenses e palestinos em poucos minutos de telejornais (ou melhor, dizendo, do genocídio do povo palestino), os discursos geopolíticos dos média recorrem ao que podemos designar como “atalhos cognitivos”, recursos linguísticos para tornar inteligível para o cidadão comum uma determinada realidade geopolítica, a exemplo dos maniqueísmos, estereótipos, personalizações, tipificações, jornalismo de adjetivação, metonímia e as metáforas.
Apesar de gerar em muitos indivíduos a sensação de estar compreendendo a geopolítica global, os atalhos cognitivos mais banalizam do que propriamente explicam as relações internacionais.
Assim, o 7 de outubro é transformado em um épico, com os israelenses se transformando em “vítimas” e os palestinos em “algozes”, numa linha editorial maniqueísta, que inverte e oculta as décadas de ocupação colonial de Israel.
Por meio de recursos metonímicos, quando se noticia que “a comunidade internacional condena as ações do Hamas”, os posicionamentos das potências imperialistas (notadamente dos Estados Unidos) são apresentados como se fossem os posicionamentos de todo o planeta. China e Rússia, por exemplo, também membros da “comunidade internacional”, não condenam a resistência palestina à ocupação israelense.
Já o “jornalismo de adjetivação”, como a nomenclatura indica, consiste em rotular determinados atores geopolíticos. O Hamas é “grupo terrorista” e Israel, por outro lado, é a “única democracia do Oriente Médio”. Desse modo, juízos de valores são transmitidos como se fossem informações.
Outra capciosa estratégia semântica presente na construção do evento mediático é a personalização. Nessa lógica, o massacre do povo palestino não é um projeto sionista, uma “política de Estado”; mas obra exclusiva da personalidade extremista do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, isto é, uma “política de governo”.
Como toda narrativa ideológica, o evento mediático não tem compromisso com os fatos. Basta lembrarmos das fake news incessantemente repetidas nos média ocidentais sobre os líderes do Hamas serem bilionários que levam vidas de luxo no Catar ou o grupo ser responsável pela decapitação de bebês, crianças e mulheres e, posteriormente, colocá-los em fornos.
Mas, além das fake news, o evento mediático, para convencer o público a adotar uma certa linha ideológica, precisa de credibilidade, aparentar seriedade e, o que é mais importante, ter respaldo e legitimidade científica. Aí entram em cena os “especialistas em legitimação”.
Um especialista em legitimação não necessita ter precisamente o reconhecimento de seus pares, dominar uma temática qualquer ou possuir uma obra contundente e profícua. Além de algum título universitário, basta concordar fidedignamente com os conteúdos ideológicos difundidos pelos noticiários da mídia ocidental.
E assim é produzido um evento mediático. Desde as fontes pró-imperialistas, passando pelas simplificações grotescas (com direito a notícias falsas) e chegando ao verniz pseudo-intelectual dos acadêmicos que se prestam a aparecer nos média para legitimar discursivamente o genocídio palestino.
Por outro lado, ao contrário de outras épocas, quando os poderosos grupos de comunicação globais possuíam o monopólio de noticiar a geopolítica mundial, felizmente, no presente contexto, graças a imprensa alternativa, podemos disputar a narrativa sobre a geopolítica palestina. Não por acaso, cada vez mais pessoas, em todo o planeta, têm se levantado contra os (históricos) crimes do Estado de Israel.
Portanto, mais do que nunca, temos o desafio de impedir que as representações dos meios de comunicação de massa sobre os fenômenos geopolíticos se sobreponham às suas implicações econômicas, culturais e espaciais. Ou seja, o evento mediático não pode substituir o acontecimento histórico.
Francisco Fernandes Ladeira é Doutor em Geografia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Licenciado em Geografia pela Universidade Presidente Antônio Carlos (Unipac). Especialista em Ciências Humanas: Brasil, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Mestre em Geografia pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ).
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