Um ano da crise que opôs universidades e Polícia Federal

A Operação Ouvidos Moucos, que culminou com o suicídio do reitor da Federal de Santa Catarina, acirrou a tensão entre a PF e as instituições de ensino.

Luiz Carlos Cancellier. Foto: Divulgação UFSC

Quando policiais federais entraram na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis, há um ano, para investigar desvios de recursos durante a Operação Ouvidos Moucos, ninguém poderia imaginar que a ação teria consequências tão dramáticas.

O reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo, preso provisoriamente, cometeu suicídio dias depois. A tensão entre Polícia Federal (PF) e as universidades federais, alvos de outras operações, se acirrou. E desde então a UFSC se tornou o epicentro de um conflito que envolve acusações de corrupção, abuso de autoridade, crime contra a honra e censura.

A Ouvidos Moucos prendeu sete pessoas naquele dia, entre elas Cancellier, 59 anos, suspeito de obstruir as investigações. Solto no dia seguinte, o reitor tentou reagir. Concedeu entrevistas e, num artigo, lembrou da humilhação de ter sido despido para revista íntima, quando teve pés e mãos algemados. Proibido de entrar na universidade, cometeu suicídio no dia 2 de outubro e deixou um bilhete: “A minha morte foi decretada quando fui banido da universidade!!!”.

O relatório final da investigação da PF, concluído em abril, indiciou 23 pessoas – das quais oito professores da universidade  –, mas excluiu Cancellier por conta de sua morte. Mesmo assim, o ex-reitor foi acusado de respaldar e sustentar uma quadrilha que desviava recursos de um programa de ensino a distância. Entre as supostas práticas ilícitas apontadas estão o desvio de recursos de bolsas de estudo, a contratação de serviços de forma irregular e o superfaturamento na locação de veículos.

A PF não aponta de forma clara quanto teria sido desviado. O relatório, no entanto, cita uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) que acusa o uso indevido de R$ 3,3 milhões. Quando a Ouvidos Moucos foi deflagrada, a primeira informação divulgada no Facebook da corporação era de que R$ 80 milhões teriam sido desviados. Horas depois, houve uma correção. O valor se referia ao total de repasses para os programas de ensino à distância da UFSC entre 2008 e 2016.

O Ministério Público Federal (MPF) está analisando o relatório. Quatro professores permanecem proibidos de entrar na universidade.

Crítica à espetacularização das prisões

Universidade Federal de Santa Catarina (Sansara Buriti)Supostas práticas ilícitas na UFSC incluem desvio de recursos, contratações irregulares e superfaturamento

A morte de Cancellier causou comoção dentro e fora da universidade. Em diversos momentos, a operação foi criticada. Questionou-se, sobretudo, uma espetacularização das prisões e o fato de o reitor não ter sido ouvido antes de ser detido.

Até mesmo o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, abordou o assunto. “O falecimento de Cancellier, reitor da UFSC, serve de alerta sobre as consequências de eventual abuso de poder por parte das autoridades”, escreveu no Twitter. O senador Roberto Requião batizou de Lei Cancellier um projeto que tramita no Congresso para regular o abuso de autoridade.

Não foi a primeira ação da PF em universidades federais. Em dezembro de 2016, por exemplo, a Operação PhD apurou supostos desvios de recursos na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Em fevereiro de 2017, a Operação Research investigou a Universidade Federal do Paraná. E, logo após a Ouvidos Moucos, ocorreu a Operação Equilibrista na Universidade Federal de Minas Gerais. Nesta última, o reitor Jaime Arturo Ramirez e a vice-reitora Sandra Regina Goulart foram conduzidos coercitivamente. Nenhuma dessas investigações resultou em decisão judicial.

A Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) tem apontado excessos nas operações. Considera que elas repetem a prática de um “Estado policial”, como na ditadura militar. Argumenta ainda que apenas “o desprezo pela lei e a intenção política de calar as universidades” pode justificar as ações.

Os defensores das ações argumentam que uma operação precisa contar com o aval da PF e do MPF e com autorização da Justiça Federal. Após o suicídio de Cancellier, as associações profissionais nacionais dessas três instituições lançaram nota conjunta para apresentar suas visões. Lamentaram a morte do reitor, mas reafirmaram as medidas tomadas: “Ao contrário do que vem sendo afirmado por quem quer se aproveitar de uma tragédia para fins políticos, no Brasil os critérios usados para uma prisão processual, ou sua revogação, são controlados, restritos e rígidos.”

Uma questão de honra

Reações às operações ocorreram em diversas universidades. Na de Minas Gerais, enquanto os investigados prestavam depoimentos, um grupo de professores e alunos protestava em frente à superintendência da PF. Uma série de organizações, como a Comissão da Verdade em Minas Gerais, criticou a operação: “Há um evidente ataque de setores conservadores e autoritários contra a universidade brasileira e tudo o que essas instituições representam para o Brasil.”

Mas as manifestações na UFSC resultaram em consequências mais dramáticas. Em dezembro de 2017, a universidade fez aniversário, e Cancellier foi homenageado. Um grupo levou à solenidade faixas e cartazes críticos à operação, um deles com a seguinte frase: “Agentes Públicos que praticaram Abuso de Poder e que levou ao suicídio do Reitor. Pela apuração e punição dos envolvidos e reparação dos malfeitos!” Numa das faixas estava estampada a fotografia de três servidores, entre eles a da delegada Erika Mialik Marena, que deu início à Ouvidos Moucos. Conhecida nacionalmente pelo trabalho no começo da Lava Jato, Marena é hoje superintendente da PF em Sergipe.

A delegada se sentiu ofendida, a PF iniciou uma investigação, e o MPF apresentou uma denúncia à Justiça. O atual reitor Ubaldo Cesar Balthazar e o chefe de gabinete Áureo Mafra Moraes, segundo o procurador Marco Aurélio Dutra Aydos, teriam cometido crime contra a “honra funcional” de Marena. A pena pode chegar a oito meses de prisão. Nenhum dos dois fez críticas à operação na solenidade – eles foram acusados por não terem evitado a manifestação ou por terem se deixado fotografar e filmar em frente às faixas.

Acusação de censura

Assim que veio à tona a investigação por causa das manifestações, houve repercussão. A Andifes afirmou que a universidade é “vítima do arbítrio e da censura”. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Santa Catarina fez críticas semelhantes. O presidente da OAB-SC, Paulo Marcondes Brincas, afirmou que o episódio é uma grave ofensa à democracia.

“Essa é uma manifestação de arbítrio, de autoritarismo, de alguém que entende que está acima da crítica. Estamos aqui para dizer publicamente que nós temos confiança no regime democrático, na liberdade de opinião e que não aceitamos restrição à liberdade de opinião. Não aceitamos esse tipo de processo, de tentativa de calar a voz do cidadão brasileiro. Esse direito é inalienável”, declarou Brincas.

Diante das reações, o ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, chegou a solicitar à PF, no início de agosto, esclarecimentos sobre o inquérito contra Moraes.

A juíza Simone Barbisan Fortes rejeitou a denúncia contra o atual reitor e o seu chefe de gabinete citando a liberdade de pensamento e de expressão. “O uso da faixa em ocasião em que se homenagearia justamente o falecido reitor – e mesmo junto ao campus universitário que ele administrava até o momento em que fora determinada judicialmente sua retirada – parece-me manifestação atinente à liberdade de pensamento e de expressão que se espera possível dentro de um centro acadêmico”, escreveu.

O procurador disse que não daria entrevistas sobre o assunto por motivo de segurança institucional. A PF de Santa Catarina informou, por e-mail, que não comenta investigações em andamento. Ao jornal O Estado de S. Paulo o diretor-geral da PF, Rogério Galloro negou perseguição aos professores. “Depois que o reitor se suicidou, uma situação terrível, começou um movimento de muita crítica às autoridades que participaram da investigação, a delegada, a juíza, o corregedor da universidade. Foram colocadas fotos deles dizendo: ‘autoridades que cometeram abuso de poder e mataram o reitor’ [sic]. E essa faixa é exposta toda vez que fazem uma manifestação. E essas autoridades se sentiram ofendidas”, declarou em 12 de agosto.

A rejeição da denúncia contra o atual reitor e o chefe de gabinete chegou a ser tratada como a primeira vitória das universidades federais desde que o clima entre as instituições se acirrou. Mas durou pouco. Dias depois, o MPF recorreu da decisão. O processo aguarda julgamento do recurso.

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