Em virtude do 1º Encontro de Mulheres na Energia Solar, realizado no dia 4 de junho de 2019 e promovido pelo Laboratório Fotovoltaica, dois professores da UFSC enviaram pelo grupo de Discussão do Centro Tecnológico (CTC), na mesma data, comentários carregados de conteúdo machista e misógino. As mensagens causaram indignação da comunidade universitária e mais de 30 professores, alunos, técnicos-administrativos e representantes de entidades ligadas à instituição, após reunião no dia 10 de junho de 2019, elaboraram documento a fim de tomar medidas de prevenção e denúncia, bem como de punição pelas instâncias competentes daqueles que ferem o código de ética, as leis e os regulamentos acadêmicos.
Em tempos que, a cada dois segundos, uma mulher sofre violência física ou psicológica no Brasil – segundo dados do Relógios da Violência, do Instituto Maria da Penha – é inadmissível que o serviço público seja maculado por atitudes que ofendem uma coletividade e que reforçam a cultura de violência contra as mulheres.
Além do questionamento sobre a importância da iniciativa científica promovida por mulheres pesquisadoras, também houve o comentário sobre “se esperar que em tal evento haja uma exposição de mulheres bonitas, com os clássicos biquínis a absorver energia solar para nosso deleite”, que há cientistas sem “cotas para mulheres” e sobre uma esperança de “que nosso laboratório seja visitado pelas participantes, preferivelmente bonitas e/ou simpáticas”.
Seguem algumas reflexões para a compreensão contextual e discursiva em que tais comentários estão inseridos, que constam no documento elaborado e assinado pelas categorias.
É de conhecimento que pesquisas indicam, atualmente, a presença considerável ou majoritária das mulheres na universidade (Brasil, 2016, p. 1). Apesar disso, os símbolos de discriminação e desigualdade entre homens e mulheres mantêm-se dentro das instituições de ensino. Isso porque as mulheres têm acesso a quaisquer lugares que pretenderem, mas os discursos que incidirão sobre seus corpos e que tensionarão o seu pertencimento e a sua permanência são ultrajantes, como se lê propriamente dos comentários aqui repudiados. As mulheres possuem o acesso, mas não pertencem ao ambiente se não apresentarem determinados comportamentos, que seja de submissão, seja de comparação ou competição aos homens. E isso revela uma ideia androcêntrica, o que reforça o pensamento estigmatizado sobre as mulheres (Amâncio, 2005), como se as mulheres precisassem ter os homens como modelo de conduta e orientação para sua referência de pertencimento.
Esse grupo social qualificado por mulheres é constituído por pessoas que, em um contexto brasileiro, é subjetivado e socializado, desde “a descoberta do sexo da criança”, por uma série de discursos do que deve ser uma mulher. Historicamente, no Brasil, as mulheres tiveram direito à instrução escolar de forma tardia, se comparada à ocupação do espaço pelos homens – e, isso, ainda, se referindo a mulheres brancas, visto que havia proibição por lei do acesso à educação às pessoas negras (1). Além de tardia, “desde o período colonial, a educação feminina era restrita ao lar e para o lar, ou seja, aprendiam atividades que possibilitassem o bom governo da casa e dos filhos” (Aragão e Kreutz, 2010, p. 109), tendo em vista que a “[…] tradição ibérica, transposta de Portugal para a colônia brasileira, considerava a mulher um ser inferior, que não tinha necessidade de aprender a ler e escrever” (Ribeiro, 2000, p. 79).
Em uma perspectiva de leste mundial e ocidente, “entrada das mulheres na universidade aconteceu primeiramente nos Estados Unidos no ano de 1837, com a criação de universidades exclusivas para as mulheres. É no estado de Ohio que surge a primeira universidade feminina o women’s college” (Bezerra (2010, p. 3). No Brasil, o acesso ao ensino superior deu-se no final do século XIX, por meio de um decreto que facultou à mulher a matrícula em curso superior data de 1881 (Beltrão e Alves (2009, p. 128), mas o incentivo era voltado à área do magistério, que era vista como uma extensão da atividade privada de maternidade e de educação, sem a possibilidade de concorrer para vestibular (Louro, 2017). Somente a partir da década de 60 do séc. XX que, pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1961, Lei nº 4.024/61, “foi garantida equivalência de todos os cursos de grau médio, abrindo a possibilidade para as mulheres que faziam magistério de disputar os vestibulares” (Beltrão; Alves, 2009, p. 130), período em que as mulheres passaram a ingressar, de fato, no ensino superior (Souza; Sardenberg, 2013, p. 4).
Mesmo sem o acesso institucional à formação científica e sem a permissão social para tanto, muitas mulheres conseguiram, contrapondo-se a diversos impedimentos além desses, fazer ciência. A diferença é que tiveram que usar nomes masculinos, ou tiveram suas pesquisas nominadas por homens (geralmente companheiros) ou, ainda, não são reconhecidas por seu trabalho (Esteve, 2017, p. 5).
É de se ressaltar, ainda, que, desde o acesso das mulheres nas universidades no século passado, as inflexibilidades na estrutura hierárquica e poderes existentes nas instituições científicas são mantidas, com o reforço dos discursos discriminatórios de gênero (Amâncio, 2005). Nisso, nos movimentos de resistência das universidades, politizaram-se as questões das mulheres na academia e a reação a isto foi a criação de uma polaridade artificial com a ideia de “ciência despolarizada em geral”, o que visou à proteção de paradigmas conservadores (Amâncio, 2005, p. 74) de manutenção da vida da mulher em um local reduzido, qual seja em função do homem.
Assim, no imaginário social e, infelizmente, no acadêmico, em virtude de tal contexto e desses discursos, as mulheres ocupam o local, mas ainda não são lidas em sua potencialidade como trabalhadoras e pesquisadoras: ainda são observadas, tratadas e consideradas de modo condicionado e reduzido – como pessoas para mero deleite e para o senso de adequação pronunciado pelos homens (“que sejam simpáticas”). Assim, as mulheres ocupam os espaços, mas, pelos tensionamentos discursos, não pertencem a eles.
Diante disso, pensar em mulheres nos espaços públicos e, especialmente, fazendo ciência é pensar em uma renovação dos discursos que incidem sobre corpos femininos e que os constrange a permanecer ou em um local privado, ou em um local de submissão, ou em um local que reduz o corpo da mulher ao deleite masculino. É pensar na saúde das mulheres, considerando que o reducionismo de sua existência e de seu trabalho constitui uma negação de seu ser e, por isso, caracteriza-se como violência.
Um evento científico realizado por mulheres, por isso, não se refere à categoria de cotas institucionalizadas, mas propostas científicas produzidas, de modo voluntário, que tem ido ao encontro de iniciativas nacionais e internacionais de falar da temática de ser mulher e cientista nas mais diversas áreas da ciência e suas consequências frente à produtividade, maternidade, assédio, por pessoas pertencentes a um determinado grupo social que é e fora caracterizado, de modo castrador de sua condição humana, à mera estética e ao espaço privado (2).
Frente ao exposto, os docentes se manifestam “com profundo repúdio aos comentários referidos, que reduzem as mulheres a uma condição estética e sexualizada, incitando a discriminação e violência no ambiente acadêmico. Reconhecemos, assim, o nosso compromisso com a educação brasileira e com o nosso corpo discente, especialmente com as nossas alunas, de nos posicionarmos contra quaisquer atos violentos”.
A indignação contra tais comentários ainda se amplia ao localizá-los sendo proferidos por servidores públicos, os quais possuem o dever funcional estabelecido nas normativas que prescrevem a sua conduta, como o é o inciso I, do Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal (3), e os incisos I, II e IX do art. 116, da Lei n. 8.112, 1990 (4), bem como de seguir, como qualquer pessoa, os dispositivos constitucionais de igualdade de gênero (5) e de direito à educação e ao trabalho (6).
Referências
(1) RODRIGUES, João Jorge Santos. Direito e ação afirmativa: as políticas de ação afirmativa para afro–brasileiros: acesso ao ensino superior. 2005. 254 f. Dissertação (Mestrado em Direito)-Universidade de Brasília, Brasília, 2005. Ainda, imprescindível considerar os contextos e trajetórias de pessoas e suas referências sociais se aderem ao ambiente acadêmico, como é o caso das pessoas trans e das comunidades indígenas, as quais, também subjugadas por um discurso nefasto sobre inadequação de corpos e de conhecimento, ingressam no espaço universitário de forma mais tardia ainda.
(2) Considera-se surpreendente que se compare o contexto mencionado a cotas, o que revela um desconhecimento sobre este termo. Cotas são ações relacionadas a políticas públicas e, portanto, vinculadas à estratégia governamental multifatorial, que pretende o incentivo e o acesso de determinados grupos sociais, que histórica e culturalmente, receberam tratamento de submissão e/ou exclusão a determinados direitos mínimos existenciais. Assim, as cotas objetivam o estabelecimento da igualdade material, em determinados contextos, acerca de direitos básicos, individuais e coletivos, e modos de valorização simbólica de culturas, raças e etnias.
(3) I – O servidor público não poderá jamais desprezar o elemento ético de sua conduta. Assim, não terá que decidir somente entre o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, o oportuno e o inoportuno, mas principalmente entre o honesto e o desonesto, consoante as regras contidas no art 37, caput, e parágrafo 4º, da Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.
(4) Art. 116. São deveres do servidor: I – exercer com zelo e dedicação as atribuições do cargo; II – ser leal às instituições a que servir; […] IX – manter conduta compatível com a moralidade administrativa.
(5) Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição – Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.
(6) Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição – Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.
AMÂNCIO, Lígia. Reflections on science as a gendered endeavour: Reflections on science as a gendered endeavour: changes and continuities. Social Science Information; Gender identity and power inequality, v. 44, n. 1, pp. 65-83, 2005.
BRASIL. Portal. Mulheres são maioria em universidades e cursos de qualificação, 2016. Disponível em: < http://www.brasil.gov.br/economia-e-emprego/2016/03/mulheres-saomaioria-em-universidades-e-cursos-de-qualificacao>.
ARAGÃO, Milena; KREUTZ, Lúcio. Do ambiente doméstico às salas de aula: novos espaços, velhas representações. Conjectura, Caxias do Sul, v.15, n.3, p. 106-120, dez. 2010.
RIBEIRO, A. I. M. Mulheres educadas na Colônia. In: LOPES, E. M. T.; FARIA FILHO, L. M.; VEIGA, C. G. (Org.). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p.79-94.
LOURO, Guacira Lopes. Mulheres na sala de aula. In PRIORE, Mary Del. História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2017.
ESTEVE, A. La ciencia oculta. Fundación Dr. Antonio Esteve, 2017.
BELTRÃO, Kaizô Iwakami; ALVES, José Eustáquio Diniz. A reversão do Hiato de Gênero na educação brasileira no século XX. Cadernos de Pesquisa, v. 39, n. 136, p. 125-156, jan./abr. 2009.
CELESTINO, Victor R.R.; BUCHER-MALUSCHKE, Julia S. Um novo olhar para a abordagem sistêmica na psicologia. FACEF Pesquisa: Desenvolvimento e Gestão, v.18, n.3 – p.318-329 – set/out/nov/dez 2015
Com informações da nota elaborada coletivamente por professores, alunos, técnicos e entidades
Edição: Rosiani Bion de Almeida/Agecom/UFSC