Por The Saker.*
A situação na Ucrânia hoje é de combates caóticos na Novorússia e no Banderastão.
Novorússia:
O primeiro sinal de problemas tornou-se visível quando Strelkov teve de voltar às pressas para Donetsk, para impedir que prosseguissem negociações por trás dos panos que se acreditava estivessem em curso entre alguns oficiais da República Popular de Donetsk (RPD) e oligarcas Ukies, dentre os quais Akhmetov. Então, chegaram notícias da repentina remoção de Strelkov, seguida da quase simultânea remoção de quase toda a liderança novorussa. Apesar disso, a liderança novorussa (Zakharchenko & Co.) parecia ser sucessora muito bem qualificada para substituir Strelkov, e fez trabalho de primeiríssima implementando os planos de contraofensiva que, aparentemente, foram desenvolvidos por Strelkov. Então, vieram as negociações de Minsk e notícias muito fracamente divulgadas de uma tentativa de golpe comandada por Vladimir Antiufeev, o qual, antes disso, fora encarregado da segurança do estado sob comando de Strelkov. Aparentemente, o golpe foi dirigido contra Zakharchenko; e fracassou. Ainda não se sabe (eu, pelo menos, não sei com clareza) o que aconteceu na sequência, com Antiufeev. A última notícia que li dizia que estaria sendo interrogado.
Então, essa semana, aconteceu algo realmente bizarro: primeiro, uma figura muito controversa – Bezler – foi indicado por alguém (não se sabe exatamente quem o indicou) para o posto de Diretor do Serviço de Inteligência da Novorússia. Pouco depois, foi também anunciado que quatro altos comandantes militares – Bezler, Khodakovskii e duas **figuras desconhecidas** (?) – decidiram conjuntamente que as Forças Armadas Novorussas seriam postas sob o comando do General Korsun. Problema: ninguém jamais ouvira falar de nenhum “General Korsun”, e o presidente do Parlamento Novorusso, Oleg Tsarev, declarou que a liderança política da Novorússia não fora consultada sobre tais planos. Quanto a Strelkov, manifestou absoluto desconhecimento sobre “Korsun”. Esquisitíssimo, para dizer o mínimo. E quase definitivamente, nada-bom.
Parece que vários processos diversos, mas conectados, estão em andamento ao mesmo tempo:
1) uma força de milicianos constituída de voluntários está sendo convertida em exército regular sob comando militar único subordinado a autoridades políticas. Essa, pelo menos, é a teoria, mas, até aqui, ainda não é objetivo alcançado;
2) vários comandantes militares novorussos têm diferentes ideias sobre questões chaves (como o Acordo de Minsk) e ambições pessoais (Khodakovski?);
3) Moscou está pressionando líderes novorussos para conseguir que ajam de acordo com políticas do Kremlin;
4) oligarcas russos e ucranianos estão também pressionando para impor a própria influência na direção de resultado favorável aos seus respectivos interesses financeiros.
Esses são quatro processos distintos e não um único fator, e quem apresente modelos de “explicação única”, simplesmente não estão vendo a complexidade da situação (mas nada disso torna a situação menos ruim).
Consequência direta disso tudo é que a Novorússia ainda não tem um líder não contestado. Meu sentimento pessoal é que há uma aliança Strelkov-Zakharchenko que é, ao mesmo tempo, a mais legítima e a mais capaz; mas outros grandes atores (Bezler, Khodakovski) ainda estão tentando de tudo para promover sua própria agenda. Agora, os boatos dizem que Antiufeev e Bezler foram presos. Seja como for, a luta política e o caos na Novorússia são o problema mais sério, que alguém (Strelkov? Putin?) terá de resolver com urgência.
Rússia:
Tenho ouvido muita especulação de que a “eminência parda” por trás de muita coisa mal feita seria Vladislav Surkov, [1] um personagem misterioso da entourage de Putin, mas cujas posições parecem sempre andar na contramão das posições de Putin. Não vi qualquer comprovação, mas não tenho motivos para duvidar do que dizem pessoas muito mais bem informados (inclusive Strelkov).
Com Surkov ou sem Surkov, há sem dúvida um grupo de interesses por lá – frequentemente referido como “5ª Coluna” ou “partido da paz”, “partido da traição” ou, a fórmula que prefiro, os Integracionistas Atlanticistas, cuja agenda é simples: pôr fim à guerra na Ucrânia e restaurar as relações “de antes”, pressupostas “boas relações” entre Rússia e o Ocidente.
Os motivos desses Integracionistas Atlanticistas são um misto de motivos ideológicos (russofobia pró-ocidente, liberalismo capitalista), financeiros (têm mais a perder, não apenas por causa das sanções ocidentais, mas, também, por causa da deterioração do relacionamento entre Rússia e o Ocidente) e pessoais (luta pelo poder, com retomada do Kremlin, das mãos dos Soberanistas Eurasianos).
Nesse contexto tenho visto muita especulação também de que o recente movimento contra o multibilionário Vladimir Evtushenkov (seguidamente descrito como um novo Khodorkovski) é o contra-ataque de Putin, para nocautear os oligarcas. Pode ser; Peskov ter negado qualquer fator político por trás da prisão de Evtushenkov é tão previsível quanto pouco merecedor de crédito.
Valeria a pena ver se há alguma conexão Evtushenkov-Surkov, mas não tenho meios para investigar. Ainda assim, a julgar pela reação do presidente do Sindicato Russo de Empresários e Proprietários de Indústrias, Alexander Shokhin, é visível que a oligarquia russa está agitada, talvez, mesmo, assustada, com aquela prisão.
E basta isso, para descartar a teoria estúpida segundo a qual Putin representaria os interesses da oligarquia russa; ou, ainda mais estúpida, de que seria “o fantoche” daqueles oligarcas.
Banderastão:
A parte da Ucrânia controlada pela Junta (que chamo de Banderastão) está em total torvelinho. O Acordo de Minsk absolutamente enfureceu quase todos os líderes políticosUkies. Previsivelmente, Iarosh e Tiagnibok estão em pé de guerra, o primeiro até ameaçando derrubar Poroshenko. Pior ainda, a Timoshenko fez uma espécie de reestreia, denunciando o Acordo como rendição vil aos Moskals e liquidação dos interesses nacionais Ukies.
Ativistas do Setor Direita tentaram invadir o Parlamento e a Presidência, jogaram deputados em latas de lixo (literalmente) o que é engraçado e muito merecido, mas não altera o fato, assustador, de que Poroshenko não é o pior do que o Banderastão pode produzir. Poroshenko é ruim, claro; mas pelo menos não é louco varrido feito a Timoshenko ou Liashko.
Há agora risco real de que o Setor Direita possa literalmente derrubar o governo de Poroshenko (pensaram na Líbia?). Se o Setor Direita conseguir tal coisa, mas mesmo que morra tentando, as próximas eleições, essas, são de matar de medo. Com a massiva lavagem cerebral da população, promovida pelos jornais, televisões e jornalistas Ukies, há risco real de que se eleja um Parlamento totalmente doido-alucinado, com Liashko no comando da maioria, e neonazistas variados preenchendo os demais lugares.
Há confronto declarado entre oligarcas e nazistas (sinceros ou zumbificados), por um lado; e, por outro lado, há confronto também entre oligarcas (Poroshenko vs Kolomoiski vsAkmetov). Assim sendo, de modo paradoxal, nem a Novorússia nem o Banderastão tem atualmente qualquer poder central real, que funcione; nenhum lado, portanto, pode “cumprir” coisa alguma que prometa.
E se isso não basta para matar os leitores, de medo, lembrem-se que a economia ucraniano, mantida pelos anglo-sionistas, ainda não está em total colapso. Mas logo estará. Falta bem pouco. Então, sim, as coisas vão ficar muito, muito, muito feias, mesmo. Vêm à mente imediatamente os exemplos de Iraque e Líbia. De fato, Putin comentou recentemente, depois do Fórum Anual Seliger da Juventude 2014:
Vocês conhecem a piada: “Os russos, façam lá o que for, sempre terminam com uma Kalashnikov”. Pois é. Estou começando a achar que os norte-americanos, comecem por onde começarem, sempre terminam com uma Líbia ou um Iraque.
Aparentemente, está absolutamente certo, e o Banderastão está tomando agora precisamente o rumo de uma Líbia, de um Iraque. A verdade é a seguinte: os anglo-sionistas não conseguirão segurar eternamente, nem Poroshenko no poder, nem os restos da economia do Banderastão à tona. Mais cedo ou mais tarde – provavelmente sem demora – ambos desabarão; aí, sim, o inferno desabará por ali.
Entrementes, “Iats” anunciou o expurgo [ing. “lustration”, derivado do verbo latino lustrare, purificar cerimonialmente (NTs)] de um milhão de funcionários públicos não militares conectados com o regime anterior. Aparentemente, o expurgo não atingirá Poroshenko, Timoshenko, Turchinov nem o próprio “Iats” em pessoa (os quais, todos eles, trabalharam para governos anteriores, a um ou outro título). Que merda mais completamente maluca…
Para minha grande surpresa, não se materializou qualquer contraofensiva Ukie ou, se aconteceu, foi tão manca que nem se percebeu. Os Ukies concentraram grandes forças em várias locações, e as forças armadas da Junta (FAJ) executaram ataques em várias locações, mas foram repelidas muito rapidamente. Quanto àquelas poucas locações que foram tomadas pelas FAJ, são quase todas pontos que as Forças Armadas da Novorússia haviam abandonado. Minha fonte para essa análise é “Basketok” (excelentes relatos diários, para falantes de russo).
Surpreendentemente, as Forças Armadas Novorussas ainda não obtiveram controle total sobre o Aeroporto de Donetsk. Já cercaram o aeroporto e controlam quase toda a área, mas não toda. Os Ukies que lá estão recusam-se a render-se e bombardeiam Donetsk diariamente. A única explicação que encontro para essa aberração é que seja efeito da luta política que está em curso dentro da liderança da Novorússia.
Uma das explicações mais razoáveis para a atual situação nos vem do (excelente) Coronel Cassad:
Com respeito à concentração, as principais forças da Junta já estão usadas no Donbass. A Junta ainda não pode aumentar substancialmente o contingente. Considerando a alternância planejada dos destacamentos e unidades capazes para combate que foram deslocadas para o front, a Junta só pode reforçar seu grupo se lançar em ação batalhões táticos restaurados de destacamentos já retirados. Mas as qualidades de combates nesse caso parecem muito duvidosas, por causa de perdas massivas, de pessoal e de material.
Verdade é que, sem uma 4ª onda de mobilização/recrutamento, a Junta não tem meios para aumentar substancialmente o número de soldados – que continua, aproximadamente, no nível em que estava no início de julho de 2014.
Considerando-se o fracasso de 3 ondas anteriores de mobilização/ recrutamento, o resultado de uma 4ª onda também gerou algum ceticismo. A Junta, é claro, não está perto de esgotar os números limites de seu potencial de mobilização, mas está claramente passando por sérias dificuldades.
Tudo isso é agravado por questões materiais: segundo várias estimativas, a Junta perdeu cerca de 60-70% da presença material no Donbass (e o pior para a Junta é que mais de 220 veículos blindados de grau variável de prontidão para combate acabaram capturados pelas Forças Armadas da Novorússia (FAN), o que põe o número de veículos capturados entre ¼ e 1/3 do número total dos veículos em ação).
Claro que ainda há muitos tanques, IFVs, SPH e lançadores móveis de granadas nos arsenais e instalações de reparos, mas os reforços de agosto e setembro não compensaram as imensas perdas.
A tentativa para obter material dos países da OTAN e de recomprar de volta os veículos que foram embarcados em negócios internacionais da Defesa visa a suprir o vácuo de material que se gerou. A Ucrânia continua a colher os frutos amargos do loteamento horrível de todo o legado militar dos soviéticos.
Faz perfeito sentido. As FAJ realmente mobilizaram o seu melhor de homens e equipamento na tentativa para esmagar a Novorússia numas “poucas semanas”; perderam tudo, homens e equipamento. Ainda há recursos numericamente significativos acessíveis para eles, como se vê na grande quantidade de soldados que conseguiram reunir, mas falharam no uso efetivo daquela força, até aqui.
Quanto às Forças Armadas da Novorússia (FAN), obtiveram alguns pequenos progressos em vários pontos e fizeram pequenas retiradas em outros, mas nada crucial, nem numa direção nem na outra. Significará isso que as FAN e as FAJ conseguiram deter, uma a outra? Talvez sim. Não sei e não tenho como verificar. Nessas condições, minha primeira explanação para a aparente estagnação no front militar é que os dois lados estão muito profundamente envolvidos na luta política e no caos dela resultante.
Aqueles aos quais me refiro, com ironia, como “profetas e adivinhadores de pensamentos dos outros” provavelmente se porão a fazer as mais confiantes previsões, baseadas, como sempre, em modelos simplistas. Não quero saber disso. Sei o que Putin deseja e de que a Rússia precisa: mudança de regime em Kiev. Sei também o que Putin não deseja, ou risco ao qual a Rússia não se pode expor: um colapso da Novorússia. As duas coisas, claro, estão conectadas. Mas é muito cedo para dizer como a situação evoluirá.
Volta e meia me ocorre que o regime de Kerensky (liberal, maçon, pró-ocidente, democrático e oligárquico) chegou ao poder em fevereiro. Como a Junta Ukie. E Kerensky foi derrubado em outubro do mesmo ano. Coisas que passam pela cabeça da gente.
Cordiais saudações.
The Saker
Vineyard of the Saker
Ukraine SITREP September 18, 17:30 UTC/Zulu: infighting everywhere
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Nota dos tradutores
[1] Sobre Vladislav Surkov, ver 16/10/2011, redecastorphoto: “O Rasputin de Putin”, Peter Pomerantsev, London Review of Books, vol. 33, n. 20, p. 3-6, traduzido ; e 6/3/2012, redecastorphoto: “Agora, é encarar: o Czar voltou”, Pepe Escobar, Al-Jazeera, trad. em A indicação de leitura NÃO SIGNIFICA endosso a coisa alguma do aí se lê. Só significa que isso é o que o pessoal aki de casa sabe das figuras citadas. O pessoal aki de casa NÃO ACREDITA em “kumunicação” de jornal, televisão e internet.
Fonte: RedeCastorPhoto