Por João Filho, em The Intercept.
NAS ÚLTIMAS SEMANAS, escolas no Brasil país foram invadidas por alunos armados dispostos a matar professores e outros alunos. O primeiro ataque mais recente aconteceu em São Paulo, quando um adolescente matou uma professora a facadas e feriu outras cinco pessoas. A partir daí, uma série de outros eventos semelhantes pipocaram pelo país, criando uma onda de pânico entre alunos, pais e professores.
O vale-tudo das redes sociais fez com que elas virassem incubadoras de novos ataques. Textos, fotos e vídeos celebrando os acontecimentos e glorificando seus autores circulam livremente. O adolescente responsável pelo primeiro ataque deste ano, por exemplo, adotou em seu perfil no Twitter o mesmo sobrenome do autor do massacre de Suzano para homenageá-lo. Ataques inspiram novos e o efeito bola de neve se torna inevitável, como vimos nas últimas semanas.
Para tentar conter essa crise, o ministro da Justiça, Flávio Dino, se reuniu com as redes sociais para pedir a remoção de conteúdos violentos que inspiram novos massacres. O Twitter foi a única empresa a se recusar a retirar as postagens do ar. A justificativa não poderia ser mais estapafúrdia: esse tipo de conteúdo não fere os termos de uso da empresa.
Essa afronta ao pedido do governo está escorada na estúpida defesa da liberdade de expressão ilimitada. Ao defender que essas práticas criminosas não violam seus termos de uso, o Twitter admite, ainda que indiretamente, que está acima das leis. A liberdade de expressão é um valor sagrado para as democracias, mas de uns anos pra cá alguns imbecis passaram a confundi-la com liberdade para cometer crimes. A recusa do Twitter em apagar conteúdos que propagam massacres levou a tara pela liberdade de expressão absoluta ao fundo do poço moral. Não dá pra descer mais que isso.
O ministro saiu da reunião disposto a pedir a derrubada do Twitter. A empresa, então, decidiu recuar e removeu os 511 perfis indicados pelo governo que fazem apologia dos ataques nas escolas. Na quarta, o Ministério da Justiça editou uma portaria para regulamentar a ação das redes sociais em relação à publicação de conteúdos violentos. A medida prevê sanções contra as empresas que se omitirem, incluindo até mesmo a suspensão de suas atividades no país.
A recusa do Twitter em apagar conteúdos que propagam massacres levou a tara pela liberdade de expressão absoluta ao fundo do poço moral.
Os guerreirinhos da liberdade de expressão de sempre passaram a gritar contra a medida. No dia seguinte à criação da portaria, deputados federais do partido Novo apresentaram um projeto para suspendê-la. O partido tem defendido as Big Techs em todas as oportunidades. Junto do PL, partido de Bolsonaro, o Novo está na linha de frente do combate ao PL das Fake News, que visa responsabilizar civilmente as plataformas que se omitirem diante de mentiras que propaguem incitação a crimes. Os partidos de extrema direita defendem o vale-tudo nas redes usando a defesa da liberdade de expressão como escudo.
Não foi à toa que o governo de Bolsonaro comemorou a compra do Twitter por Elon Musk. O bilionário é um agente da extrema direita internacional que defende abertamente golpes de estado. “Vamos golpear quem quisermos. Lide com isso!”, disse ele em resposta a um tweet que apontava uma possível participação dos EUA no último golpe na Bolívia. Assim como bolsonaristas, Musk defende a liberdade de expressão irrestrita, mas ataca a imprensa quando é questionado e remove conteúdos que lhe desagradam. Nesta semana, após a recusa do Twitter em ajudar o governo, a hashtag “Twitter apoia massacres” chegou a ficar entre os assuntos mais comentados, mas foi retirada do ar rapidamente. Ou seja, a empresa faz corpo mole para retirar conteúdos que propagam violência nas escolas, mas age com eficiência para retirar conteúdos críticos à ela. A liberdade de expressão da extrema direita é irrestrita, pero no mucho.
A gritaria em torno da portaria do governo não faz sentido. Ela é fruto de uma emergência e está delimitada a combater conteúdos que anunciam os ataques às escolas, glorificam os autores desses massacres e espalham boatos sobre novos ataques. O intuito do governo é conter a epidemia de ataques e o pânico nas escolas. A medida é bem específica e não há nada nela que interfira na liberdade de expressão do cidadão comum.
Os partidos de extrema direita defendem o vale-tudo nas redes usando a defesa da liberdade de expressão como escudo.
Na Alemanha, o Twitter está sendo processado pelo governo por se omitir em relação aos crimes da extrema direita. A empresa se recusou a remover conteúdos que promovem discursos racistas, antissemitas, apologia ao nazismo e ameaças de ataques. Segundo o ministro da Justiça alemão, conteúdos ilegais publicados no Twitter não foram excluídos dentro dos prazos estipulados pela lei. “A internet não é um vácuo legal”, afirmou o ministro ao justificar a multa que pode chegar a R$ 273 milhões.
Esse enfrentamento dos países às empresas irresponsáveis é um bom sinal. Já passou da hora dos governos comprometidos com a democracia começarem a enfrentar as Big Techs.