Turquia: Praça Taksim – ao fundo o arvoredo do Parque Gezi
Por Dimitriy Sedov.
Os eventos na praça Taksim em Istambul estão sendo apresentado pela imprensa-empresa ocidental como consequência de uma decisão “ecologicamente incorreta” do governo turco, para construir num parque na cidade. Nada mais distante da realidade, e a versão jornalística levanta questões sobre os reais interesses do Ocidente na disseminação do conflito.
A verdade é que a praça em questão tem papel praticamente nenhum no conflito. O xis da questão é que, nessa operação, Recep Erdogan planeja demolir o Centro Cultural Mustafá Kemal Atatürk, ali localizado, e remover o monumento do fundador da República Turca secular. Em lugar do Centro Cultural, Erdogan decidiu construir uma mesquita, embora já haja uma mesquita na mesma praça, Taksim Mescid Camii.
Essa intenção, sim, uniu toda a parte secular da sociedade, nos protestos contra o primeiro-ministro. Ampla variedade de grupos comunitários, inclusive grupos antes inconciliáveis, uniram-se na oposição à política de Erdogan de ativamente destruir o legado político de Atatürk.
Claro que a islamização consistente do país ao longo dos últimos 10 anos já causava um descontentamento latente em várias forças da sociedade, antes dos atuais conflitos. O potencial de protesto foi-se acumulando gradualmente.
E quando a sociedade soube da tentativa de demolir o Centro Atatürk – símbolo da ordem secular – sobreveio a explosão.
Entre os turcos, nenhum culto é mais profundo que o que cerca o fundador da república. Poucos políticos no mundo gozam de respeito tão incondicional quanto o fundador do moderno estado turco. Só um político que se veja como “igual” a Atatürk desafiaria publicamente seu prestígio.
Centro Cultural Mustafá Kemal Atatürk
Tudo sugere que Recep Erdogan imagine-se, ele mesmo, como uma espécie de “anti-Atatürk”. Planeja feito histórico na mesma escala grandiosa, mas com o sinal trocado: quer fazer da Turquia, em vez de estado secular moderno, um estado islamista.
Por isso é indispensável remover os símbolos conectados a Mustafá Atatürk e por isso Erdogan agarra-se tão ferozmente e tão obcecadamente à ideia de demolir o centro cultural e o monumento. Para ele, seria uma vitória ideológica, no plano simbólico, em momento crucial da história. Mas os que resistem também veem a luta pelo monumento como luta pelo rumo que a Turquia tomará.
Erdogan já fez muitas coisas, para erradicar o legado de Atatürk.
Atatürk, com o apoio do exército, despiu a Turquia de todos os atributos de “estado islamista” e converteu o coração do antigo Império feudal otomano em país secular europeizado. Para Atatürk, o exército existia para proteger a autoridade secular e impedir o avanço da islamização.
Erdogan dedicou todos os dez anos de seu governo a afastar o exército dessa função de defender a coesão (secular) da sociedade, substituindo os oficiais seculares por imãs, nos corpos de comando. Nos anos recentes, houve uma “epidemia” crescente de demissões, escândalos e “denúncias” contra oficiais e generais do Exército Turco, acusados de tentar golpes, de atos de corrupção e muito mais.
Desde 2007, o próprio Erdogan fala frequentemente da “inevitável islamização” da Turquia. Tem apoiado islamistas no exterior, especialmente em países vizinhos. Rebeldes chechenos, inguches e do Daguestão recebem até hoje apoio e suprimentos de Ankara. Nas Guerras da Chechenia, houve “amirs turcos” [orig. êem bilal). Dentre os rebeldes dizimados por forças federais havia tantos turcos quanto sauditas.
Na Turquia, Erdogan comanda uma política de neo-otomanismo, uma mistura de nacional-socialismo e sunismo.
Erdogan obteve apoio, simultaneamente, das classes mais pobres na Turquia e na Europa. Dentre os países europeus, Espanha e Alemanha são os mais empenhados apoiadores de Erdo?an; e a Alemanha mantém laços muito estreitos com a Turquia. Mas, mais importante que isso, Erdo?an é a menina dos olhos dos socialistas que estão no poder na Europa: para eles, é a encarnação do ideal que tanto acalentam, de um “Islã racional”.
Erdogan começou a combater contra o Kemalismo, quando estava na crista de sua influência no país e no exterior. A Turquia desenvolvia-se economicamente a taxas invejáveis e fortalecia sua posição na região. A guerra na Síria foi ocasião pela qual Erdo?an muito esperava, para mostrar-se ainda mais firmemente. Ironia, porém, nesse quadro, é que Erdo?an tenha denunciado os métodos “não democráticos” de al-Assad, no trato com a oposição.
Hoje, os métodos para dispersar os manifestantes turcos, as prisões, a violência generalizada, também nas cidades turcas, mostram o tipo de “verdadeiro democrata” que é o próprio Erdo?an.
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A cobertura que a mídia comercial ocidental está dando aos eventos na Turquia merece ser examinada à parte. Nada mais difícil de acreditar, do que a versão segundo a qual a mídia comercial ocidental manteria alguma isenção na informação que distribui sobre a Turquia. E já ninguém sabe o que fazer para não expor o real confronto: a “força islamista irresistível” de Erdo?an, contra o “objeto inafastável” da oposição kemalista.
A realidade já não cabe no conceito de “islamização civilizada” que, supostamente, faria de Recep Erdo?an o representante autorizado pelo ocidente na Região. Há apenas um mês, a Europa ainda garantia todo o seu apoio à islamização da Turquia – e a imprensa-empresa noticiava “de acordo”. E então, de repente, apareceu na rua, onde todos veem, um movimento popular anti-islamista, por trás do qual está, firme, o Exército, além de vastas fatias da sociedade (e, provavelmente, também grupos da elite turca).
A solidariedade nacional clara, com declarações de vontade por vias pacíficas, e a consolidação do movimento via Facebook e Twitter prosseguem – seguindo todos os cânones do neoliberalismo.
Mas, estranhamente, para a mídia comercial… contra os interesses do Ocidente! Uma “revolução colorida ao contrário” está em construção na Turquia. E nenhuma capital europeia pode prever o que sairá disso. Assim, a imprensa empresa não sabe o que “noticiar”…
Afinal, é possível que forças que pregam política externa comandada pelos preceitos internacionalistas de Atatürk, “o Pai dos Turcos”, podem, sim, chegar ao poder na Turquia. Essa política já existiu e foi hegemônica, ainda bem recentemente: pregava “nenhum problema com os vizinhos” – e falar de “vizinho”, na Turquia, é falar de Síria. Esse movimento pegaria os estrategistas da OTAN, completamente, “no contrapé”.
Por essa razão, a imprensa-empresa ocidental vacila sobre a posição a adotar no noticiário sobre a Turquia. Praticamente não se veem notícias, no ocidente, sobre a retórica anti-islamista dos que se manifestam nas ruas. E o noticário capenga: tampouco se divulga uma linha sobre a retórica pró- Atatürk, que também está nas ruas turcas.
Enquanto isso, o conflito se alastra, contra a intransigência fundamentalista de Erdo?an, o “querido” do Ocidente.
Passeata realizada domingo( (16/6/2013) em apoio a Erdogan
No domingo, 300 mil apoiadores de Recep Erdogan, organizados pelo Estado, saíram às ruas. Tudo foi planejado como demonstração das forças que apoiam o primeiro-ministro. E é claro que essas forças existem. Contudo, para conseguir virar a situação a seu favor, Erdogan teria de ter a autoridade de fato, simbólica, que Atatürk (ainda) tem.
Parece, contudo, que Erdogan se superestimou, porque, em resposta, os manifestantes voltaram às ruas e enfrentaram a Polícia. O primeiro-ministro pôs nas ruas de Istambul mais de mil agentes das Forças Especiais. Então, e, de fato, sem que ninguém esperasse, vários poderosos sindicatos de trabalhadores turcos – ameaçados de extinção, se se implantarem normas islamistas – uniram-se aos manifestantes.
A Reuters noticiou que um dos maiores sindicatos da Turquia, a “Confederação dos Funcionários Públicos” (tu. KESK), convocou greve geral para a 2ª-feira, 17/6. A liderança de outro sindicato turco, a “Confederação dos Sindicatos de Trabalhadores Revolucionários” (tu. DISK), convocou assembleia de emergência e decidiu unir-se na mesma ação.
Especialistas observam atentamente os sentimentos do Exército. Também ali podem acontecer surpresas.
Tudo sugere que o preço que Recep Erdo?an terá de pagar por sua tentativa de varrer Kemal Atatürk da história da Turquia vai-se tornando alto demais. Os próximos desenvolvimentos mostrarão se conseguirá pagar…
Dmitriy SEDOV, Strategic Culture
Fonte: http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2013/06/turquia-jornalismo-comercial-tambem.html