Por Leonardo Leite.
No blog da Boitempo, Giovanni Alves fez uma competente análise da atual longa depressão do século 21(1). Apoiado na tese do marxista inglês Michael Roberts, ele mostra que a raiz da crise é a redução da lucratividade do capital ao longo dos últimos anos. Com base nessa constatação, deixa uma pergunta intrigante que inspirou a reflexão que desenvolverei neste texto: “o que irá contribuir para a saída da longa depressão do século 21?”.
O protecionismo de Trump: ignorância ou sintoma da crise?
Os primeiros movimentos de Donald Trump na Casa Branca parecem dar o tom de sua política através de uma mistura de nacionalismo, racismo e xenofobia. Os grandes meios de comunicação e os intelectuais que os subsidiam parecem perplexos com os rumos tomados pelo capitalismo estadunidense. Dentre os vários exemplos dessa perplexidade, me chamou a atenção um artigo do economista Paul Krugman, vencedor do Nobel de Economia em 2008, publicado no último 30 de janeiro, no qual ele sugere que a imposição unilateral de tarifas de importação pelo governo Trump poderia “desmantelar” “todo o sistema de comércio internacional” graças, em última instância, à suposta “ignorância” do presidente eleito (2). Mais recentemente, em 13 de fevereiro, ele generalizou sua crença e disse que “Trump é assessorado por ignorantes” (3).
Seria ingenuidade de nossa parte crer na tese de Krugman, especialmente por dois motivos. Em primeiro lugar, os passos de Trump, incluindo decretos e ordens executivas, tweets e conversas telefônicas, tem estreita conexão entre si, possuem um fundamento racional que pode e deve ser explicado para além da tese da “ignorância” ou da irracionalidade. Em segundo lugar, o “desmantelamento” do comércio internacional já está em vigor desde antes da posse de Trump, precisamente desde a explosão da grande depressão na qual o capitalismo mundial está atolado. Na realidade, como desenvolverei adiante, a ofensividade de Trump nas relações internacionais é muito mais sintoma do que causa da decadência capitalista.
Como sabemos, a eleição de Trump resulta de um amplo apoio da classe trabalhadora empobrecida, especialmente nas comunidades do chamado Cinturão da Ferrugem. De acordo com um analista francês, a desigualdade social “criou grandes comunidades de pessoas sem futuro, para as quais a aspiração predominante pode apenas ser voltar o relógio para trás” (4). O pano de fundo de sua vitória é o mesmo que alimentou o Brexit de agosto do ano passado e põe Marine Le Pen em condições de vencer as eleições francesas. Na medida em que esse giro à direita vai se efetivando, os governos deslocam suas estratégias políticas para mais protecionismo, xenofobia etc., pois a população (o eleitorado) parece que “perdeu a fé no progresso”, ou seja, “eles olham para trás porque tem medo de olhar para frente” (5).
Essa generalizada descrença no “progresso” tem efetivamente uma base real e concreta. Nos Estados Unidos, as pessoas estão ganhando cada vez menos do que seus pais, geração após geração: 90% das pessoas nascidas nos anos 1940 ganhavam salários maiores que seus pais, enquanto apenas 50% da geração dos anos 1980 pode dizer o mesmo (6). Trata-se de uma deterioração quase contínua das condições de vida que se acentua principalmente dos anos 1970 em diante, quando os salários dos trabalhadores em empresas privadas ficam praticamente estagnados em termos reais, isto é, quando comparados à inflação(7).
Embora a retórica isolacionista de Trump tenha conseguido capturar esse eleitor, o fato é que não é o comércio com a China ou com o México o principal responsável por essa situação. Um estudo recente, citado por Michael Roberts e Paul Krugman, mostra que a “concorrência com a China levou à perda de 985 mil empregos industriais entre 1999 e 2011. Isto é menos do que um quinto da perda absoluta de empregos industriais ao longo desse período e uma fração ainda menor do declínio industrial de longo prazo”.
Assim, como diz Roberts, houve ganhos de “eficiência” pelas empresas estadunidenses, reforçando a incapacidade dos sindicatos em pressionar os salários para cima: “80% dos postos de trabalho perdidos (nos Estados Unidos) não foram substituídos por trabalhadores na China, mas por máquinas e automação” (8), o que também ajuda a entender a queda da taxa média de lucro exposta por Giovanni Alves. Resumindo: não é o comércio o responsável pela deterioração das condições de vida (e das esperanças) dos de baixo, mas a própria produção capitalista.
Desse modo, podemos assegurar que as políticas protecionistas de Trump, tomadas isoladamente, não serão suficientes para reverter a decadência da economia estadunidense. Se isso é verdade, devemos nos perguntar, então, por que sua ênfase no protecionismo. Não podemos tratar isso como “ignorância”, há algo mais profundo em jogo. Tomo as palavras do ex-ministro da Fazenda da Colômbia, José Ocampo: “o volume de comércio mundial tem crescido menos que 2% desde 2007. Este é o mais tépido crescimento desde a Segunda Guerra Mundial, com o volume de comércio crescendo a uma taxa menor do que a produção global pela primeira vez na era do pós-guerra” (9). Inclusive nos setores de mais alta tecnologia as tendências protecionistas estão a todo vapor, desde antes de Trump. De acordo com relatório do maior think tank relacionado à tecnologia e inovação, vários países, dentre os quais China, Alemanha e Rússia, estão impondo “políticas protecionistas para expandir a produção doméstica e a exportação de bens e serviços de alta tecnologia” (10).
Ou seja: Trump não está “desmantelando” o “sistema de comércio internacional”, como sugere Krugman, mas está agindo em um mundo já desmantelado. A longa depressão do século 21 também é uma crise profunda do imperialismo na medida em que o comércio exterior, uma das formas de manifestação mais importantes do imperialismo em sua fase contemporânea, não foi suficiente para amenizar ou atenuar a queda da taxa média de lucro.
Desde 1980, se instalou uma magnífica apropriação de recursos da periferia pelo centro do capitalismo mundial: dados da organização Global Financial Integrity mostram que essa transferência líquida de dinheiro entre 1980 e 2012 foi da ordem de 16,3 trilhões de dólares – o equivalente aproximado ao PIB dos Estados Unidos – resultante de pagamento de juros da dívida externa, remessa de lucros pelas companhias transnacionais e operações comerciais não registradas (11).
Se o que se convencionou chamar de globalização é, portanto, um processo intensamente assimétrico de concorrência no mercado mundial, no qual o dinheiro flui continuamente da periferia para o centro, trata-se de uma globalização propriamente imperialista. Nesse sentido, a desidratação do comércio exterior pelas grandes corporações e a consequente guinada protecionista dos governos revelam que está em curso uma desintegração da última fase do imperialismo, associada com a emergência da fase seguinte. Sendo assim, é nesta esquina da história que os movimentos de Trump devem ser entendidos.
O imperialismo sempre se recicla
O protecionismo emergente de hoje é muito parecido com a resposta imperialista à longa depressão da década de 1870. De 1879, quando Otto Von Bismark ergue fortes barreiras comerciais na Alemanha, até 1913, o protecionismo se fortalece e se generaliza praticamente no mundo inteiro, com exceção da Grã-Bretanha. Até a década de 1890 não há dúvida que o berço da revolução industrial era a principal economia do planeta. Entretanto, o desenvolvimento industrial em outros lugares do mundo, especialmente França, Alemanha e Estados Unidos, tornou as empresas destes países tão ou mais competitivas no mercado mundial, diminuindo a participação das exportações britânicas no total comercializado (12). Assistia-se, portanto, um período histórico de crise de liderança na hierarquia imperialista.
Com mercados cada vez mais fechados em função das tarifas e outras barreiras à importação, a saída encontrada para penetrar em mercados estrangeiros foi investir e começar a produzir dentro dessas economias. O marxista austríaco Rudolf Hilferding rapidamente percebeu isso no clássico O capital financeiro, dando o subsídio para Lenin sustentar que na era do imperialismo clássico “a exportação de capitais, diferentemente da exportação de mercadorias, adquire uma importância particularmente grande” (13). Formaram-se grandes corporações financeiras e produtivas com operações em vários territórios nacionais. Com os condutos para a transferência internacional de valor via comércio exterior parcialmente desmantelados, os Estados (e o sistema de múltiplos Estados) garantiram a rigidez de outros condutos, necessários para a fluída circulação de lucros e juros produzidos no exterior.
A essência do imperialismo (a transferência internacional de valor) permaneceu intacta, embora se manifestasse por uma combinação diferente de formas (14). O militarismo e a corrida armamentista, típicas desse período, integram, evidentemente, a intervenção estatal para garantir o pleno funcionamento de condutos para a apropriação de valor pelos centros imperialistas. Embora o imperialismo nunca prescinda da força extraeconômica, especialmente das forças armadas, o grau com o qual ela é utilizada depende das circunstâncias típicas de cada fase histórica.
Quando uma fase imperialista se desenvolve a partir dos investimentos no exterior, da “exportação de capital” nos termos de Lenin, a força extraeconômica é mais necessária do que quando o comércio exterior é o carro-chefe. Para um investimento dar frutos, isto é, lucros ou juros, ele precisa ser imobilizado durante algum intervalo de tempo. Por exemplo, quando uma corporação multinacional monta uma filial em outro país, é preciso algum tempo até que este braço da empresa produza, venda e gere lucros. O mesmo é válido para um empréstimo internacional: o banco credor precisa esperar o intervalo negociado no contrato para que o dinheiro retorne acrescido de juros. Em resumo, o dinheiro investido (produtiva ou financeiramente) no exterior precisa ficar imobilizado, tempo no qual o investidor está sujeito a riscos de natureza diversas.
Ocorre algo diverso quando se trata do comércio exterior, pois, neste caso, a transação se conclui no próprio ato: a compra ou a venda de algo é imediata e, portanto, sujeita a uma quantidade menor de riscos.
O argumento que desenvolvo aqui tenta mostrar que, sob o capitalismo, a intensidade das rivalidades bélicas entre as grandes potências não decorre meramente de aspirações individuais (subjetivas) à liderança da hierarquia imperialista. É preciso que exista um determinado conjunto de fatores materiais a impulsionar a defesa dos interesses nacionais, certamente corporativos, para um nível tal que exija sua conversão em uma defesa propriamente armada.
A história do imperialismo mostra que a ênfase ideológica no protecionismo em substituição à defesa do livre-comércio é uma resposta à crise de uma forma de imperialismo centrada no comércio exterior, a qual não é mais suficiente para impulsionar a acumulação de capital nos centros imperialistas e, ao mesmo tempo, revela a emergência de uma nova fase do imperialismo, marcada pela importância crescente dos investimentos no exterior. A defesa da nação exige, nesta nova fase, maior suporte militar para mitigar os riscos e garantir que as fontes de dinheiro no exterior permaneçam a fluir para os centros imperialistas.
Longa depressão do século 21 e nova fase imperialista
No discurso de posse de Trump, a ênfase à categoria nação (“America First”, uma versão remodelada do slogan de campanha “Make America Great Again”) antecipava o que estamos assistindo. A única menção a questões externas foi a disposição em “erradicar” o “terrorismo islâmico” da “face da Terra”, como pode ser visto no seguinte trecho do documento oficial sobre política externa da Casa Branca: “derrotar o Estado Islâmico (ISIS) e outros grupos terroristas islâmicos radicais será nossa maior prioridade” (15). Sua disposição beligerante se fez valer pela primeira vez em uma operação militar no Iêmen, autorizada em 25 de janeiro, na qual vilarejos iemenitas sofreram três ataques por drones desde então, matando dezenas de civis, incluindo uma menina de 8 anos (16).
Essa movimentação parece confirmar a disposição à guerra do novo governo dos Estados Unidos. Ainda antes de ser eleito, Trump afirmou que a culpa para o avanço do ISIS foi a retirada imprudente das tropas estadunidenses do Iraque, especialmente do controle dos poços de petróleo (17), o que supostamente teria facilitado o financiamento desta organização. Recentemente, no dia 2 de fevereiro, a Casa Branca advertiu o Irã pelo teste com míssil balístico, o que foi visto por Teerã como uma atitude “sem fundamento e provocadora” (18). Em suma, todos os movimentos de Trump sugerem que o Oriente Médio continua a ser o alvo prioritário dos Estados Unidos, cujos interesses na região certamente são mais profundos do que “combater o terrorismo”.
O fundamento material para esse interesse – que não é novo, diga-se de passagem – é a expropriação de fontes de energia vinculada com a necessidade de aumentar a lucratividade dos capitais imperialistas. A propósito, as escolhas de Donald Trump para os principais cargos no governo não deixam dúvidas sobre a incestuosa relação entre grandes corporações e as políticas de Estado, o que fica evidente com a nomeação de Rex Tillerson, ex-presidente da petroleira Exxon Mobil, para Secretário de Estado (cuja função será lidar com assuntos externos, diplomacia etc.). Inclusive a controversa relação entre a equipe de Trump e o governo da Rússia, escancarada com a renúncia do general Flynn, fica menos nebulosa quando a questão energética aparece em primeiro plano.
É sobre esse contexto (da retomada da lucratividade) que se deve entender a alegada urgência em retomar a construção dos polêmicos oleodutos Keystone XL e Dakota Access. Um deles serve para levar petróleo do Canadá para as refinarias no Texas, de forma que “ajudaria a reduzir em 40% a dependência energética americana da Venezuela e do Oriente Médio”. O outro tem a função de ligar a produção de gás e petróleo de xisto até centros de distribuição (19).
A chamada “revolução do xisto” – através da qual se extrai petróleo e gás natural com o fraturamento hidráulico de rochas de xisto – se arrefeceu com as regulamentações ambientais, objeto de ácidas críticas do presidente Donald Trump, que pretende removê-las rapidamente. O resultado esperado será produção de energia com menor custo, aumento da lucratividade para as corporações industriais estadunidenses e transformação dos Estados Unidos em exportador líquido de gás em futuro bem próximo (20).
A batalha por fontes mais baratas de energia, nos fronts externo ou interno, independentemente de considerações ambientais ou humanitárias, parece ser, portanto, o fundamento racional que explica parcialmente os movimentos de Donald Trump na presidência.
Na esfera das relações comerciais, o America First se traduz, nos termos oficiais, em “rejeitar e reformular acordos comerciais fracassados”, o que foi feito prontamente com o abandono das negociações do acordo de livre comércio do Pacífico (TPP, na sigla em inglês), o “Amexit do sistema de comércio global” (21).
Ademais, os Estados Unidos se preparam para “tomar medidas enérgicas contra as nações que (supostamente) violam tratados comerciais e prejudicam os trabalhadores americanos” (22). Embora não saibamos ainda qual a intensidade das “medidas enérgicas”, a disposição em provocar a política de “Uma China” ou desafiar os mexicanos com a construção do muro, por mais hipócrita que seja, significa uma intenção em se movimentar em direção à guerra comercial.
Em termos geopolíticos, a região que concentra atualmente o maior volume de tensões entre os grandes poderes imperialistas é o Mar da China meridional, local de passagem de “mais da metade da carga mercantil anual do mundo” e fundamental para as exportações chinesas (23).
Como lembra Alex Callinicos, “as rotas marítimas das quais depende a posição da China como a maior economia industrial e exportadora do mundo são protegidas pela marinha estadunidense, que tem dominado o Pacífico desde a derrota do Japão em 1945. Tal situação não é aceitável para os governantes da China, como indicado pela expansão marinha do Exército de Libertação Popular e pelos pesados investimento em sistema bélicos (por exemplo, uma frota de submarinos que, em 2020, equiparar-se-á à dos EUA e o míssil DF-21, que pode atingir alvos móveis no mar tal como porta-aviões), que podem negar aos navios de guerra americanos acesso aos mares ao longo da costa chinesa” (24). Quando Rex Tillerson disse, antes de ser nomeado Secretário de Estado, que iria bloquear o acesso chinês às ilhas localizadas no sul do Mar da China, a resposta não oficial de Pequim, através de jornal controlado pelo Partido Comunista, foi dura: os Estados Unidos assumiriam o risco de uma “guerra de grande escala” (25).
Depois da conversa telefônica entre Trump e o presidente chinês Xi Jinping em 10 de fevereiro, na qual a provocação do americano em relação à política de “Uma China” foi desfeita, parece ter ficado claro que as ameaças vindas da Casa Branca soam mais como instrumentos de barganha. É como se os Estados Unidos entrassem “com o pé na porta”, como diz o ditado popular, para, na sequência, na iminência de uma guerra comercial, firmar acordos vantajosos para as corporações estadunidenses.
O economista Stephen Roach, ex-dirigente do Morgan Stanley, alerta que “guerras comerciais são raras. Mas, como conflitos militares, elas geralmente começam com discussões ou desentendimentos acidentais. Mais de 85 anos atrás, o senador Reed Smoot e o deputado Willis Hawley deram o primeiro tiro patrocinando a Lei de Tarifas de 1930. Esta levou a uma catastrófica guerra comercial global” (26). Embora não tenha sido a Lei Smoot-Hawley a causa da grande depressão dos anos 1930, como parece acreditar Roach e boa parte dos analistas liberais, a escalada protecionista alimentou e foi alimentada por tensões internacionais. Na realidade, a crise estrutural de então exigia respostas, uma das quais foi uma nova metamorfose do imperialismo.
Em resumo, as crises dos anos 1930 e 1870 nos ajudam a visualizar o momento atual como uma transição entre fases do imperialismo, na qual os movimentos de Trump são necessários para acelerar a emergência do que está por vir. Os serviços de inteligência da Casa Branca já avisaram, em relatórios públicos, que o mundo mudou. O relatório Global Trends: Paradox of Progress, do Conselho de Inteligência Nacional dos Estados Unidos, publicado em 9 de janeiro de 2017, é explícito: “os próximos cinco anos assistirão o acirramento das tensões dentro e entre países. O crescimento global irá diminuir, assim como irão crescer os complexos desafios globais. (…) Para melhor e pior, o cenário global emergente está desenhado para encerrar uma era de domínio americano que se seguiu à Guerra Fria. Assim, também, talvez esteja a ordem internacional que emergiu após a Segunda Guerra Mundial. Será muito difícil cooperar internacionalmente e governar da maneira que o público espera” (27).
Com isso em mãos, apenas a ingenuidade poderia atribuir os movimentos de Trump à “ignorância”. O mundo capitalista está desmantelado e em processo de reconstrução por suas próprias lógicas internas.
Fonte: Controvérsia.