Trotsky na Netflix: uma série infame que deturpa a história do dirigente da Revolução Russa

Por Raquel Barbieri Vida.*

(Contém spoilers) Infelizmente, para o público pouco experiente no assunto, ou em muitos casos, por completo desconhecimento do tema, uma série pode chegar a ser a referência absoluta sobre a vida de uma pessoa e os feitos que a rodearam.

Assim é como existe um perigo real quando se transmite uma série de conteúdo histórico, alterando os fatos de propósito para conseguir um resultado determinado, como neste caso tentar destruir por completo e sepultar a imagem de Leon Trotski, intoxicando sua imagem episódio atrás de episódio.

Quando terminei de vê-la, me dediquei a investigar um pouco sobre a vida do diretor da série em questão, Alexander Kott, e de Konstantín Ernst, o responsável pela veiculação da produtora Sreda, e vi que seus nomes estão ligados ao partido de Putin, ?????? ?????? ou Yedínaya Rossíya (Rússia Unida).

Penso que a série, logo após o título, deveria colocar embaixo deste, que se trata de uma versão livre, tendenciosa; provavelmente deveria incluir, ainda que em tamanho pequeno, um subtítulo dizendo algo como: “Uma versão capitalista sobre a vida de Trotsky”, ou talvez “Versão admitida por Putin para a televisão russa”, ou então “Versão para alegrar o Capitalismo”.

O que mais me indignou no conteúdo desta série excelente em termos de direção de atores, atuação, encenação, fotografia, ambientação, desenho de vestuário e trama, é o modo no qual se apresenta o assassinato de Trotsky.

Aqui se mostra que quando ele descobre que o jovem Jackson, na verdade é Ramón Mercader, o enviado de Stalin para assassiná-lo, o conta a Natasha (sua segunda esposa), enquanto o falso Jackson está no quarto conjunto ao quarto de dormir do casal.

Então, Trotsky – segundo a série – diz a Natasha que vai terminar com tudo de uma vez, que já é hora, que está cansado; assim, depois de professar seu mútuo amor, ele sai sem ser detido por ela, e enfrenta Mercader, provocando-o com insultos, agredindo-o fortemente com um bastão, gritando-lhe palavrões, levando o “jornalista” (um agente da KGB de Stalin) a não ter outra saída que pegar a picareta pendurada na parede na qual Trotsky o deixou encurralado, para que o jovem agredido por um velho, não tenha outra saída senão matar este Trotsky tão odiado que o provocou, e até o levou com o olhar até a picareta que lhe deu sua morte.

Esta não é apenas uma falha histórica, mas também de direção cênica. Existem várias: sucessos que se anunciam. Na realidade, existem poucos fatores de surpresa e ao menos para mim que sou diretora, tudo se torna previsível. Uma das coisas que pensei enquanto assistia, foi que o dinheiro faz com que se possa contar a história de alguém como se quer e fazê-la passar como verdade.

Porque esta mega produção é impressionante em alguns aspectos: o trem blindado aparece como saído de um mundo do Harry Potter, as mulheres são de uma beleza indiscutível, todas elas e Trotsky aparece como um sex symbol imparável que segundo diz a personagem que interpreta Frida Kahlo: “Transou com todo mundo. Ter sexo com ele é como ingerir uma droga que vai diretamente ao cérebro.”

Provavelmente assim foi. Por que alguém não poderia ser eróticamente irresistível? Mas aqui é usado como um recurso negativo. A questão é que esta produção coloca uma grande ênfase em aspectos que sabem que cairão mal para um certo tipo de público e abusa destes recursos de forma permanente.

Nesse ponto, entendi que o capital que dirige a televisão russa, expandirá as mentiras com a velocidade de um zéfiro, e que nós somos os responsáveis por limpar o nome de Leon Trotsky, que uma vez mais é sujo pela maldade dos inimigos do socialismo.

Não pretendo expressar que Trotsky fora um santo. Não o foi; e não acredito que exista alguém que o acredite, nem que o deseje. Um dirigente revolucionário é um ser com uma inteligência aguda e veloz, cujo centro vital é a própria revolução, Deve ser um possuidor de uma mente lúcida e um certo grau de frieza na hora de tomar decisões. Também deve ter a sensibilidade social que seja o motor que o conduza à ação. Após isso vem na ordem que estejam, segundo a pessoa que é, seus outros amores, seus ódios, seus gostos, seus pontos de desinteresse. O intelectual de esquerda que Trotsky foi não é o sanguinário e frio especulador que é mostrado na série, que mais parece uma fusão de Stalin e Napoleão que o próprio Trotsky. A história narrada está tão descalibrada, que Stalin parece um menino do maternal ao lado de Trotsky.

De fato, se não conhecesse a história, ficaria com Stalin depois de ver a série.

Infelizmente, não temos capital para produzir uma série que conte a verdade, mas existem documentários, os livros, as cartas; quem quiser saber a verdade, só tem que investigar mais profundamente, apesar de que sabemos que a série tem um alcance massivo de tal magnitude que somente contando com outra série poderíamos lutar e terminar balanceados.

Será que as pessoas estão preparadas para ver uma série do Trotsky com nosso olhar sobre a Revolução? Eu acredito que sim. O que falhou até o momento é a falta de recursos econômicos para ascender aos meios massivos e competir. A propaganda capitalista se recrudesce cada vez mais, apela para a desinformação, e calculo que esta série não surge do nada. Talvez seja uma advertência ao povo russo, uma mensagem nas entrelinhas do governo Putin e seus seguidores.

O poder do Capital usado para o mal; é isso que existe nesta série onde Trotsky é mostrado como a encarnação de Satanás. De fato, em uma das cenas, durante um encontro com seu pai, este o trata como se fora o diabo.

Como se tudo fosse pouco, no final, quando morre, o vemos na mesma imagem com a qual começa a série, caminhando com seu traje claro de acordo com o clima mexicano, óculos e bastão, em algum lugar da estepe russa nevada; então, o trem blindado do seu passado o atropela de frente, como bradando que foi sua ambição quem o matou, para terminar com o fator moralizante, um provérbio bíblico de Salomão, que diz “O caminho dos perversos é como a escuridão, não sabem contra o que tropeçam.” (Prov. IV, 14-19).

Concluo que é necessário expressar que ao ver que violaram até mesmo sua morte, no sentido de que assim se mostra que Trotsky desatou a ira do enviado de Stalin, transformando-o assim culpável de sua própria morte, não me resta outra alternativa que pensar que o objetivo é sepultar Trotsky para sempre com calúnias levadas às telas da Netflix, sabendo o alcance que este meio possui.

É revelado durante o enredo desta série, que o principal objetivo é demonizar em primeiro lugar Trotsky, colocando-lhe a culpa até mesmo pela morte dos seus próprios filhos. Logo, Lenin é mostrado como um especulador, insensível, em momentos até insignificante e dissimulado. De fato, nesta série, Lênin é uma personagem coprimária ou secundária, quase um detalhe na história. Seu protagonismo na história se reduz a cinzas.

Em cada um dos episódios, a oportunidade de mostrar que, para Trotsky, os fins justificavam os meios, não é perdida. E uma das cenas mais patéticas da série é quando está na casa Coyoacán, México, Lenin aparece (morto, obviamente), dizendo-lhe que sempre se arrependeu da morte do Tzar (quando não foi nenhum dos dois que deu a ordem), que nunca teve a oportunidade de entender o porquê de sua morte, de quem foi retirada a oportunidade de compreender e, talvez, continuar em vida para mudar seu modo de pensar. Isso me pareceu pueril, mas não é a única coisa. No primeiro atentado a Trotsky na sua casa no México, pode-se ver Aleksandra, sua primeira mulher e mãe de suas filhas, cobrindo seu corpo para que as balas não o atinjam. Assim, quando Natasha entra no quarto, ele está vivo graças a esta proteção divina que o esquivou das balas.

Por acaso existem provas da conexão de Trotsky com todos os mortos com os quais tem conversas? Não. No entanto, os recursos cênicos nos quais o espiritismo exerce um protagonismo constante causam um efeito em certo tipo de espectadores, sobretudo, nos por si só mal dispostos. A mostra de conversas que jamais aconteceram, presenças sobrenaturais que não aconteceram, a idealização de figuras nefastas e a deturpação de outras que, com erros humanos, lutaram pela igualdade, não fazem nada além de confundir o espectador que não conhece a temática.

No começo o falei sarcasticamente, mas agora o coloco seriamente: deveria exigir-se que fosse colocado abaixo do título da série, que esta é uma versão livre da vida de Leon Trotsky.

* Linguista e diretora.

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