Três ocasiões constrangedoras para a Rede Globo na transmissão do carnaval carioca. Por Francisco Fernandes Ladeira.

Por Francisco Fernandes Ladeira.

Uma das mais difundidas propagandas da Rede Globo – maior emissora de televisão do país – é o discurso de que “o Brasil se vê na tela da Globo”. Assim, todos os nossos principais acontecimentos políticos, manifestações culturais e eventos esportivos, nos últimos sessenta anos, foram registrados pela Vênus Platinada. Não seria diferente com o carnaval e, sobretudo, com o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro.

No entanto, nem sempre tudo ocorre conforme o script. Por isso, neste artigo, lembro três momentos constrangedores da Globo em transmissões carnavalescas. O primeiro caso se refere à própria construção do Sambódromo da Marquês de Sapucaí (oficialmente denominado Passarela Professor Darcy Ribeiro), localizado na avenida do mesmo nome, na zona central da capital fluminense.

O ano era 1983. O então governo do Rio de Janeiro, comandado por Leonel Brizola, histórico desafeto da família Marinho, deu início à construção do sambódromo, objetivando que fosse utilizado já para o carnaval seguinte.

Como sempre age contra os interesses nacionais e populares, seguindo a tradição, os órgãos de imprensa do Grupo Globo, notadamente a emissora de televisão, boicotaram a iniciativa do governo do Rio de Janeiro. Noticiaram que a obra não ficaria pronta para o carnaval ou teria problemas em sua estrutura. Frequentemente, um “especialista em legitimação” era chamado para criticar o projeto da passarela do samba, reproduzindo ipsis litteris os discursos presentes nos noticiários dos veículos de mídia da família Marinho.

Mas o velho Brizola, que já havia sobrevivido à então quase moribunda ditadura militar, deu o troco. Com o sambódromo pronto, faltando poucos dias para o início dos desfiles (pela primeira vez em duas noites), o governador cancelou os direitos de transmissão da Rede Globo, cedendo-os, com exclusividade, para a (hoje extinta) TV Manchete. Resultado, nas duas noites em questão, a toda poderosa da televisão brasileira registrou pífios 8% de audiência, enquanto o canal de Adolpho Bloch, em uma grande cobertura, envolvendo cerca de mil profissionais, registrou impressionantes 70%.

Além de boicotar os interesses nacionais, o Grupo Globo tem no golpismo contra governos populares uma das principais características de sua linha editorial. Foi assim em 1964 e 2016. Mas a Globo não contava que este último golpe seria representado na Marquês de Sapucaí, transmitido ao vivo para todo o país.

Em 2018, a Paraíso do Tuiuti apresentou uma crítica contundente sobre os retrocessos vividos pelo Brasil pós-golpe. No enredo, a escola fez uma certeira ligação entre o período escravocrata e o desmonte da CLT promovido pelo então governo de Michel Temer. Personagens como “Guerreiros da CLT”, “Vampiro Neoliberalista” (alusão a Temer) e “Manifestoches”, que ironizava os manifestantes/fantoches que bateram panela pedindo o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, após serem manipulados pelas “mãos invisíveis” da elite e da mídia, proporcionou o momento que mais causou incômodo para a Rede Globo.

Comentários extremamente comedidos e constrangidos foram tecidos pelos apresentadores da emissora. Ao ver passar os “patos amarelos”, guiados pela Fiesp, Fátima Bernardes disse apenas “Manifestoches”. “Manipulados”, completou Milton Cunha, sem, no entanto, se referir a quem esteve por trás de tal manipulação.

O mesmo constrangimento foi visto diante da crítica ao presidente Temer, caracterizado como um “vampiro” que suga o sangue do trabalhador. “O vampirão”, enfatizou Milton Cunha. O apresentador Alex Escobar apenas riu timidamente. Por sua vez, Fátima Bernardes teceu um comentário evasivo: “É o regime de exploração nos mais diversos níveis”, ao se referir ao carro-alegórico “Neo-tumbeiro”. Limitando-se a constatar o óbvio, Escobar disse o que todos viam: “Tá com a faixa de presidente esse vampiro”. “Vampiro neoliberalista”, completou Fátima. Porém, a ex-apresentadora do Jornal Nacional não explicou o que seriam “regime de exploração nos mais diversos níveis” e “vampiro neoliberalista”.

Por fim, o mais recente constrangimento da emissora da família ocorreu quando não tivemos carnaval. Quatro anos atrás, devido à pandemia da Covid-19, não houve o tradicional desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro. Assim, a Globo, detentora exclusiva dos direitos de transmissão desse evento, exibiu uma programação especial com desfiles históricos das agremiações pertencentes à elite do carnaval carioca. Duas escolas do Grupo Especial foram excluídas: a anteriormente mencionada Paraíso do Tuiuti e a São Clemente. “Coincidentemente”, os desfiles históricos de ambas apresentaram temáticas incômodas à Rede Globo.

Sobre o desfile histórico da Tuiuti falei nos parágrafos anteriores. Já a São Clemente, em 1990, com seu provocativo enredo “E o samba sambou”, denunciou a crescente mercantilização e espetacularização do carnaval, uma festa popular capturada pelo capital. Moradores de comunidades cariocas saíam de cena para dar lugar às chamadas celebridades. “É fantástico/Virou Hollywood isso aqui/Isso aqui/Luzes, câmeras e som/Mil artistas na Sapucaí” […] E sambou nosso povão/Ficou fora da jogada/Nem lugar na arquibancada ele tem mais pra ficar”, apontam alguns dos versos do samba da São Clemente.

O incômodo da Globo com essa letra é compreensível, pois esses “mil artistas na Sapucaí”, em sua esmagadora maioria, pertencem ao quadro da emissora.

Em outros tempos, a ocultação de desfiles carnavalescos indesejados poderia passar como mais uma prática de manipulação bem-sucedida do veículo de comunicação da família Marinho. Porém, na internet, houve forte reação adversa às exclusões de Paraíso do Tuiuti e São Clemente da programação especial de carnaval. Diante da enxurrada de críticas, a Rede Globo não teve escolha: incluiu em sua programação os desfiles icônicos de Tuiuti e São Clemente (não o original, mas a reedição, feita em 2019).

Durante a exibição dos desfiles carnavalescos, a máquina de manipular da família Marinho novamente foi colocada em ação. As apresentações históricas das escolas de samba não foram reproduzidas na íntegra, mas em compactos. Isso significa que determinadas alas, passistas e carros alegóricos, considerados de alguma forma “inconvenientes”, poderiam ser mostrados rapidamente, não receber o devido destaque ou, simplesmente, ser ocultados. Foi justamente o que aconteceu!

No compacto do desfile da São Clemente, a temática central do enredo foi citada apenas uma única e breve vez. “Uma crítica à profissionalização do carnaval”, afirmou o apresentador Milton Cunha, sem entrar em maiores detalhes. Questões mais espinhosas foram evitadas. Cunha e seu colega de narração — o ator Aílton Graça — descreveram a escola como “irreverente” e “criativa”. Uma das alas mais polêmicas (denominada “Toda poderosa”), que apresentava seus componentes fantasiados de televisão, em uma clara referência à Rede Globo, até foi exibida, porém não comentada.

Diferentemente das coberturas de outras escolas, em que os enredos foram explicados e contextualizados para o telespectador, em relação à apresentação da Paraíso do Tuiuti, prevaleceu uma narrativa evasiva por parte de Aílton Graça e Milton Cunha, que ressaltaram mais a beleza do desfile, do que propriamente seu conteúdo crítico. “Eu estava lá. Foi uma catarse coletiva”, comentou Aílton Graça.

O compacto se concentrou na primeira parte do desfile (sobre a escravidão). A outra metade, que trazia o desmonte da CLT, foi ocultada. Os famosos “Manifestoches” e o carro alegórico com a “mão” manipuladora da mídia, como era de se esperar, foram ignorados. Somente o “Vampiro Neoliberalista” apareceu na tela da Globo. É mais fácil rifar Temer do que assumir a participação da emissora no golpe de 2016.

Em suma, a maior festa popular de nosso país não é apenas folia e reinado de Momo (que, aliás, em sua origem, na mitologia grega, era uma deusa). É fato: mesmo com as investidas da Globo, que tenta engessá-lo, o carnaval não perde seu caráter subversivo.

Francisco Fernandes Ladeira é Doutor em Geografia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Licenciado em Geografia pela Universidade Presidente Antônio Carlos (Unipac). Especialista em Ciências Humanas: Brasil, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Mestre em Geografia pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ).

A opinião do/a/s autor/a/s não representa necessariamente a opinião de Desacato.info.

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