Por Allan Kenji Seki, para Desacato.info
As últimas eleições presidenciais demonstraram muitas coisas que nos serão úteis em nossas lutas daqui por diante. Em primeiro lugar, mesmo para os mais românticos e afeitos ao modo americano de governar, a confirmação de que não existe bipartidarismo no Brasil. Saber isso, contudo, não basta, pois, como sempre, há modos muito diferentes de chegar aos fatos simples. O menos óbvio é que no Brasil não existem governos de partidos, mas partidos do governo. Essa valiosa afirmação sobre a política nacional nos presta, entre outros, o favor de deixar claro que não existe essa coisa de formar coalisões partidárias e chegar ao governo, no fim das contas é o próprio Estado capitalista-dependente brasileiro quem cria a dinâmica na qual certas coalisões – e colisões – são orquestradas magistralmente num arranjo de forças em que tudo parece caos e indeterminações, menos o resultado esperado: a classe dominante brasileira sempre permanece no poder da nação e sempre rentabiliza esses períodos de incerteza, seja por meio da compra e venda dos meios de governar, seja pelo rentismo que se exaspera no ano eleitoral.
Em segundo lugar, essas eleições deixam claro que a relação tão particular que conjuga o Estado chegou a um certo grau de desenvolvimento e de estranhamento no qual é possível haver uma exasperação da disputa eleitoral sem que exista disputa real por projetos políticos. Afinal, ambos os partidos (PT e PSDB) demonstraram enorme proximidade de projetos políticos para o Brasil e seu lugar no mundo, especialmente no que diz respeito ao campo da política monetária e dos ajustes ferrenhos contra os trabalhadores – contra os quais nos veremos obrigados a lutar ainda mais nos próximos anos.
Em terceiro lugar – e talvez a lição mais valiosa – é que as eleições demonstraram minuciosamente a miséria de uma parcela significativa do que poderíamos chamar de uma ‘velha guarda’ da esquerda em razão de seu progressivo afastamento das lutas sociais reais. Isto é, sem que em nenhum momento o Partido dos Trabalhadores anunciasse qualquer aproximação dos movimentos sociais ou mesmo um prenúncio de autocrítica, por mero voluntarismo, amplos setores considerados progressistas partiram em defesa da reeleição de Dilma Rousseff sob o emblemático “Muda Mais”. É preciso ter claro que a coordenação de campanha de Dilma sequer precisou escrever uma carta, um pedido ou mesmo fazer qualquer autocrítica, bastou reduzir a disputa eleitoral à oposição a um mito do PSDB para lograr esse efeito, para dizer o mínimo, curioso.
O que há de verdadeiramente perverso nisso tudo não é o engodo de parcela progressista que identifica a si mesma como ‘esquerda’, mas a instauração de uma lógica subjacente em que os programas e compromissos dos partidos já não importam, bem como não importa mais a luta de classes como elemento preponderante para a análise dos acontecimentos e a interpretação dos fatos. A forma de ser desse Estado engendrou as próprias condições de pensamento a um circuito fechado e silogista cuja eficácia reside precisamente em procurar apagar a classe trabalhadora da equação. Com isso, essa parcela fractal da ‘esquerda’ não fez nada menos que abandonar o materialismo histórico e o materialismo dialético.
Quer dizer, enquanto os arautos bradavam com adesivos de “Muda Mais” em seus peitos esquerdos, que no primeiro dia de governo de Aécio Neves o mundo como o conhecíamos já não existiria mais: privatizações, arroxo salarial, extermínio de direitos; o que ninguém parecia perceber é que eles falavam de um lugar que desconfia profundamente das condições das gentes brasileiras de se revoltarem contra seus governos. Diziam que Aécio venderia o Brasil e transferiria a sede do Governo Federal para Miami, como se não houvesse nenhum movimento social neste país lutando aridamente para organizar suas lutas às duras penas. Enfim, falavam como se as condições de organização da classe trabalhadora nada tivesse a ver com suas próprias posições políticas vacilantes e com uma estrutura política de dominação exasperada gravemente nos últimos 12 anos de PT.
A pergunta que estamos por responder para transformar a tragédia em um enredo próprio aos nossos dias, persiste: em que medida a permanência do PT nos ajudou a criar o novo?
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