No dia 2 de março, o Rio Grande do Sul bateu seu recorde de óbitos por covid-19 desde o início da pandemia: 184 pessoas morreram em 24 horas. Um dia depois, foram mais 179 vítimas, o segundo pior dia desde março do ano passado.
Em Santa Catarina, 86 pessoas morreram de covid-19 no dia 2. No dia seguinte, foram mais 94 mortes — as piores 24 horas desde outubro.
O 2 de março também marcou o segundo pior dia da pandemia em todo o Sul, incluindo o Paraná. Foram 504 óbitos.
A região vive um cenário catastrófico nas últimas semanas: além da explosão das transmissões por coronavírus e das mortes em decorrência da doença, as populações do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina enfrentam falta de vagas em unidades de terapia intensiva (UTI) em várias cidades.
A ocupação de leitos em Porto Alegre, por exemplo, já ultrapassa os 100%. Segundo um levantamento feito pela campanha “Unidos pela Saúde Contra o Colapso”, até a última quinta-feira (04/03), os hospitais operavam com 103,7% de sua capacidade. Em alguns deles, como o Hospital São Lucas e o Hospital Moinhos de Vento, a taxa está acima dos 130%.
De acordo com os números compilados até 5 de fevereiro pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), o Rio Grande do Sul tem 676 mil casos confirmados e 13.188 mortes causadas pela covid-19.
No Paraná, 12.196 pessoas morreram de covid-19, e 672 mil infecções foram registradas.
O que explica esse cenário?
Para pesquisadores que estudam a disseminação da covid-19 pelo país, desde o fim do ano passado já havia indícios de que os três Estados enfrentariam um aumento exponencial da covid-19.
“Essa é uma tragédia anunciada. Desde novembro, os cientistas já avisaram que o Sul passaria por uma onda devastadora de covid. Mas nada foi feito, houve um total desprezo pelos alertas que vínhamos dando”, diz Domingos Alves, professor de Medicina Social da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto.
Menos isolamento, mais casos
Segundo ele, no começo de dezembro, os três Estados já apresentavam uma alta taxa de transmissão do coronavírus, além de uma média móvel de casos superior ao registrado desde o início da pandemia.
Por outro lado, em dezembro, por exemplo, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), flexibilizou medidas de restrição de circulação de pessoas, reabrindo as praias, e aumentando o período em que o comércio poderia funcionar, com vistas às vendas do Natal.
Também em dezembro, entre outras medidas, o governador de Santa Catarina, Carlos Moisés (PSL), autorizou a lotação máxima de pousadas e hotéis, mesmo que, à época, as UTIs da rede pública de saúde já estivessem com 88% das vagas preenchidas. A ocupação de praias, lagoas e rios também foi liberada pelo governador.
“Em janeiro, esses Estados também começaram a registrar mais mortes diárias do que na primeira onda de covid. O que estamos vendo agora, com todo esse colapso, já era esperado. Foi avisado”, diz Alves.
Para o cientista de dados Isaac Schrarstzhaupt, coordenador da Rede de Análise da Covid-19, o aumento da circulação de pessoas, em desrespeito às orientações de distanciamento social para frear a disseminação do vírus, é o principal fator para explicar a explosão de infecções.
O índice de isolamento social no Rio Grande do Sul, por exemplo, atualmente gira em torno de 34% da população. Para Schrarstzhaupt, o número ideal para frear a proliferação do vírus seria de 60%, ao menos.
“No final de setembro, os casos de covid no Rio Grande do Sul estavam em queda, mas a mobilidade das pessoas começou a aumentar, revertendo a curva. No fim do ano, boa parte da população de Porto Alegre viajou para a praia, no período que chamamos de veraneio: a gente viu praias e bares lotados”, explica.
Novas variante também contribuiu
Para ele, além do aumento da circulação de pessoas, há a influência da nova variante do coronavírus, surgida no Brasil e que algumas pesquisas científicas têm mostrado ser mais transmissível.
“Estudos têm mostrado que essa nova cepa tem mais carga viral. Com as pessoas circulando mais, essa nova variante caiu como um foguete e se espalhou muito rapidamente”, diz.
Para Domingos Alves, da USP, a nova variante do vírus só se proliferou porque não houve ação do poder público para detê-la.
“Estão criando uma narrativa de que a culpa é apenas da nova cepa do vírus. Isso não é verdade. A nova cepa só se espalhou e se tornou predominante porque não foram criadas barreiras sanitárias para impedir que isso acontecesse. Pelo contrário, houve um relaxamento das medidas de contenção”, diz.
Já Leonardo Bastos, estatístico e pesquisador em saúde pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), acrescenta que o negacionismo de parte do poder público e da população sobre os efeitos da pandemia também explicam o aumento acelerado de casos no Sul.
“O negacionismo favorece muito a pandemia. Isso está cada vez mais claro. Se medidas necessárias não forem tomadas para ontem, veremos um cenário ainda pior nas próximas semanas”, diz.
Especialistas defendem medidas mais duras para conter vírus
Os especialistas são unânimes ao recomendar um reforço de medidas de isolamento social na região Sul e no restante do país para tentar diminuir a incidência do coronavírus enquanto a vacinação avança no país, mesmo que a passos lentos, como vem ocorrendo.
As medidas, no entanto, deveriam ser mais restritivas do que as adotadas recentemente pelos três Estados da região.
“Precisamos seguir as recomendações da Organização Mundial de Saúde sobre o que é um lockdown. Precisamos fazer um lockdown severo de 15 a 21 dias. Se não fizermos isso, veremos cada vez mais casos e mais mortes, a situação vai piorar não só no Sul. Teremos colapso do sistema de saúde em vários Estados, inclusive em São Paulo e no Rio de Janeiro”, diz Alves.
“Hoje, no Sul e em outros Estados, não há vagas nas UTI. As pessoas estão morrendo esperando na fila por um leito. Mas, daqui a poucas semanas, não teremos mais vagas em cemitérios. Se nada for feito, os governadores terão que lidar com vagas em cemitérios, é disso que estamos falando.”
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