Foi uma parte desse tráfico que o Greenpeace revelou, na quinta-feira (15/05), em um relatório extremamente detalhado dedicado ao Pará. Essa madeira abatida ilegalmente é exportada em grande quantidade.
Por Nicolas Bourcier.
“A França é a principal importadora da madeira proveniente da Amazônia brasileira, sobretudo de ipê, às vezes descrito como o “novo mogno”. Segundo a organização ambiental internacional, “as cadeias de abastecimento são contaminadas por madeira oriunda de serrarias que obtiveram madeira ilegal.'”
No Brasil, o procurador da República Bruno Valente lançará uma investigação sobre um sistema que permite o “esquentamento” de uma grande quantia de madeira ilegal. São transferências de créditos florestais, abates ilegais, documentos falsificados para a madeira, com uma ampla rede de criminosos contornando a regulamentação.
Foi uma parte desse tráfico que o Greenpeace revelou, na quinta-feira (15), em um relatório extremamente detalhado dedicado ao Pará. Essa madeira abatida ilegalmente é exportada em grande quantidade.
A França é a principal importadora da madeira proveniente da Amazônia brasileira, sobretudo de ipê, às vezes descrito como o “novo mogno”. Segundo a organização ambiental internacional, “as cadeias de abastecimento são contaminadas por madeira oriunda de serrarias que obtiveram madeira ilegal.”
O desmatamento cresceu quase um terço no Brasil
No Brasil, o índice de desmatamento da Amazônia – o maior maciço de florestas tropicais intactas – aumentou 28% em 2013, após quatro anos de quedas consecutivas. A partir do mês de novembro, um sistema de cartografia florestal desenvolvido pelas equipes da Universidade de Maryland e do Google passou a estabelecer uma nova base de referência para a avaliação do desmatamento em todo o mundo. Os resultados são preocupantes. A cada minuto, o planeta perde em florestas o equivalente a 50 campos de futebol.
Segundo os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), os Estados de Roraima (norte), do Maranhão (nordeste) e, sobretudo, do Pará (norte) e do Mato Grosso (centro-oeste), essas terras de grandes produtores de soja e pecuaristas, tiveram seus maiores picos de desmatamento com altas que oscilam entre 37% e 52%. O Pará é o recordista em matéria de superfície desmatada, com 2.379 quilômetros quadrados.
Novo código florestal criticado pelos ecologistas
Esse aumento coincidiu com a entrada em vigor do novo código florestal, promulgado em maio de 2012 pela presidente Dilma Rousseff. O poderoso lobby dos representantes do setor agrícola havia usado toda sua influência para flexibilizar esse texto de 1965 que é considerado um dos mais rigorosos do mundo. A reforma, muito criticada pelos ambientalistas, reduz as zonas protegidas e dispensa as pequenas fazendas de reflorestarem as áreas destruídas antes de 2008. São medidas que enfraqueceram as agências federais de controle ambiental e geraram uma sensação de impunidade entre os contrabandistas.
Essa legislação se viu ainda mais fragilizada pelo fato de que outra reforma, aprovada em 2006 e que deveria tornar o sistema de venda de madeira mais eficiente, já havia levado a um grande número de falhas jurídicas nas operações de fiscalização. Baseada em um sistema de “créditos florestais”, a nova regulamentação, excessivamente sofisticada até mesmo segundo especialistas, se revelou impraticável e logo foi deturpada pelos traficantes.
Na prática, os Estados que vêm passando pelas maiores ondas de desmatamento também registraram os níveis mais elevados de extração clandestina. O Pará, justamente, é o maior produtor e exportador de madeira da Amazônia brasileira. Mas entre 2011 e 2012, 78% de sua área de produção se situava em zona onde a extração eram proibida. No Mato Grosso, segundo maior produtor e exportador, as estimativas chegariam a 54% do abate total. Essas práticas se aproveitam da baixa capacidade de fiscalização das autoridades locais.
151% de desmatamento ilegal no Pará
Acima de tudo, a demanda contínua do mercado, inclusive de espécies de árvores altamente valorizadas (ipê, maçaranduba, jatobá e cumaru), somada à expansão das unidades agrícolas que muitas vezes vem acompanhada de uma prática de abatimento de árvores como fonte de renda extra, leva a um aumento de pressão sobre as terras públicas, protegidas e indígenas. Em 2010, o instituto britânico Chatham House estimava que entre 34% e 72% da extração registrada na Amazônia era ilegal.
Desde então, esses números aumentaram. No Pará, as equipes do Instituto Imazon estimaram que o desmatamento ilegal havia chegado a 151% em 2012. É muito para um Estado que exporta para a União Europeia mais de 50% de sua produção de madeira, sendo que a França é o segundo maior mercado de exportação para essa madeira, logo atrás dos Estados Unidos.
As importações de madeira tropical vinda da Amazônia brasileira chegaram a mais de 40 milhões de euros em 2013. “Entre as empresas que importam madeira do Estado do Pará para a França, estão a Tradelink Wood Products Ltd, Ets Pierre Robert &Cie, Guillemette&Cie, Rougier Sylvaco, Ets Peltier, Décoplus e a J. Pinto Leitão S.A.”, detalha o Greenpeace, em seu relatório.
Verdadeiras redes criminosas
Alguns estudos e órgãos de mídia notaram a grande discrepância existente entre os volumes de árvores cortadas e as quantidades autorizadas. De fato, um grande número de madeira ilegal chega ao mercado brasileiro ou internacional depois de ter sido “esquentada” com a ajuda de documentos obtidos ilegalmente.
Segundo o Ibama (Instituto do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), só nos Estados do Maranhão e do Pará, em 2013, cerca de 500 mil metros cúbicos de madeira serrada foram certificados por documentos falsos, ou seja, o equivalente a 14 mil caminhões.
Foi parte desse tráfico que o Greenpeace revelou em seu relatório. Entre os inúmeros casos registrados, cinco dos que trazem à luz os diferentes modos de funcionamento desse sistema ilegal e que recorrem a verdadeiras redes criminosas foram publicados esta semana. Eles corroboram as investigações do procurador federal Bruno Valente, que se prepara para abrir uma grande ação nos próximos dias.
Tráfico de “créditos florestais”
Juntos, eles apontam as inúmeras lacunas desse chamado sistema de “créditos florestais” explorado por esse mercado ilícito. A quantidade comercializada se traduz em número de créditos, que passam do vendedor ao comprador com a autorização do Plano de Manejo Florestal Sustentável (PMFS). As operadoras garantem que o número de créditos corresponde de fato à quantidade de madeira comercializada. Mas as transações podem ser feitas entre diferentes Estados sem necessariamente utilizar os mesmos sistemas de controle.
Essas investigações apontam para uma “duplicação” de créditos provocada por um atraso na transferência de dados de um sistema para outro. Essas falhas no sistema levam a devoluções de créditos à empresa que vende, ainda que tenham sido transferidos para a empresa que compra.
Essa última, ao contatar a agência ambiental, explicando que os créditos não foram transferidos, repete a mesma ação e duplica os créditos com uma nova transferência. Assim se opera um excedente de créditos que inicialmente parece legal uma vez que foi autorizado pela agência ambiental.
Um sistema de controle brasileiro inoperante
Consequentemente, ocorrem abates além do limite, novos créditos são colocados em circulação e o desmatamento cresce de maneira quase invisível. O exemplo da empresa Tecniflora, estabelecida no município de Anajás e acusada pelo Greenpeace, resume a extensão do fenômeno. Em 2012, a empresa recebeu a autorização do PFMS para retirar cerca de 120 mil metros cúbicos de madeira, sendo 5.800 metros cúbicos do precioso ipê. Mas, segundo o Instituto Geográfico Brasileiro, essa espécie não existe nessa região úmida porque ela cresce em ambientes secos.
Além disso, segundo uma inspeção feita no final de 2013, agentes da Sema (Secretaria de Estado do Meio Ambiente) constataram que somente 5% da zona havia sido explorada, ao passo que nos registros 99,9% dos créditos da Tecniflora haviam sido comercializados. Ou seja, o mesmo tanto de metros cúbicos de ipê e de madeiras mais tradicionais foram introduzidos no sistema de esquentamento.
“Essas fraudes sistemáticas mostram que o atual sistema de controle no Brasil é inoperante estruturalmente. Se a administração brasileira e os importadores continuarem a fechar os olhos cinicamente para essas fraudes, as investigações pontuais da justiça brasileira serão impotentes para reformar o sistema”, lamenta Jérôme Frignet, especialista do Greenpeace em desmatamento e Brasil.
Em janeiro de 2014, Antonio Carlos Hummel, ex-presidente do Serviço Florestal Brasileiro, havia salientado que o índice de cortes ilegais na Amazônia nunca havia atingido menos de 60% no passado. As leis e as práticas vão mudando, mas os índices quase não variam.
Publicado pelo jornal Le Monde e reproduzido pelo portal Uol, 20-05-2014.
Fonte: Instituto Humanitas Unisinos