Por Marcelle Souza.
“Existe uma ampla gama de estados emocionais alterados associados com jornadas longas de trabalho”
Acordar com dor de cabeça, no corpo e todo aquele mal-estar relacionado à gripe não costuma ser motivo para faltar ao trabalho. Isso porque ficar em casa por conta de doenças sem gravidade pode ser encarado por colegas e empregadores como fraqueza. A relação entre a alta produtividade exigida pelo mercado de trabalho e o direito de adoecer é o objeto de pesquisa do professor da USP (Universidade de São Paulo) Frederico Azevedo da Costa Pinto, pesquisador do Instituto de Estudos Avançados.
Formado em medicina veterinária, Pinto decidiu estudar o assunto ao perceber as semelhanças e diferenças como humanos e outros animais adoecem.
“Sabemos que expressar doença, além de um comportamento natural de qualquer espécie, favorece a recuperação do paciente por várias razões”, diz. Mas ele percebeu que as pessoas expressavam menos comportamentos associados a doenças comuns do que em outros animais.
“Comecei a achar curioso que em sociedades competitivas isso parecia ser ainda mais marcante. Decidi tentar então abordar o mesmo assunto que tanto havia me interessado em animais de experimentação, dessa vez usando dados sobre saúde pública”, conta. Pinto fala sobre como a pressão do mercado de trabalho, a desigualdade social e a indústria farmacêutica atuam na percepção sobre em que situações é permitido ficar doente.
Na nossa sociedade, o que significa estar saudável?
Frederico Azevedo – Saúde pode ser simplesmente ausência de doença óbvia e diagnosticável. No entanto, sinto que modernamente o termo “saudável” assumiu muitas variações. Se, do ponto de vista da avaliação de qualidade de vida, saúde pode ser visto como um conjunto de condições que permitam uma vida feliz, satisfatória, sem estresse demasiado, com realizações; por outro lado, há uma associação de saúde com sucesso e realizações profissionais. Parece-me que ser saudável é uma responsabilidade do homem produtivo.
Em um momento em que se percebe a dedicação de uma carga horária absurda ao trabalho como a única forma de resolver problemas e que trabalhar é basicamente a grande obrigação e motivo de existência do ser humano, adoecer, e, portanto, ficar mais vulnerável, improdutivo e socialmente inútil, é algo repreensível e vergonhoso até.”
E qual é a imagem transmitida por quem fica doente?
No que diz respeito às doenças comuns, cotidianas, como gripes e resfriados, ausência no trabalho parece ser algo injustificado. Nesses casos, em sociedades baseadas na grande pressão de trabalho intenso e nas longas jornadas, deixar de trabalhar por razões sem gravidade pode ser encarada como fraqueza do indivíduo.
Claro que se considerarmos doenças com gravidade reconhecida, como câncer, o paciente é visto de forma diametralmente oposta. Como se trata de um grupo de condições que transmitem altíssimo risco de morte, normalmente o doente desperta pena e piedade. Passa de “preguiçoso e fraco” para “coitado e lutador”.
Uma outra categoria é a das pessoas portadoras de doenças potencialmente evitáveis. Por exemplo, pessoas obesas com distúrbios metabólicos associados a isso, fumantes com doença respiratória crônica ou portadores de doenças sexualmente transmissíveis despertam uma mistura de indignação, pena e raiva.
Há pessoas com mais direito de adoecer do que outras?
Acho que esse é um ponto bem interessante. Teoricamente, sem dúvida que deveria existir uma relação positiva entre renda e direito maior de adoecer. Pessoas com menor renda e maior instabilidade funcional teriam maior receio de perder um dia de trabalho. No entanto, nem sempre parece ser o caso.
De forma similar ao que ocorre com outros animais dominantes em grupos sociais, há uma pressão e uma cobrança por ser e mostrar-se muito forte e resistente. Em gorilas, sabe-se há tempos que há um “custo” biológico em ser o dominante. Em CEOs de grandes empresas, isso ocorre de forma semelhante. Se, por um lado, essas pessoas com ótima renda e estabilidade de emprego poderiam faltar o quanto quisessem caso não se sentissem bem, por outro, devem passar uma imagem de invencibilidade e força acima dos indivíduos subordinados.
Assim, muito provavelmente tais indivíduos evitam faltar por doenças simples, como gripe, e permanecem trabalhando para não passarem uma imagem frágil. Isso deve variar de acordo com o país e com a forma como encaram o que é sucesso e respeito ao indivíduo.
Você acha que há pesos diferentes também para homens e mulheres, já que elas podem ter filhos e, em geral, são as responsáveis por cuidar de doentes na família?
Sem sombra de dúvida, a situação pode receber um corte por gênero e é mais crítica para as mulheres, já que em vários países a licença-maternidade remunerada não existe ou é curtíssima. Além disso, a herança cultural das mulheres como cuidadoras tradicionais dos doentes vem se complicando com sua entrada marcante no mercado de trabalho.
Na classe socioeconômica superior, o papel de cuidadora já deve ter sido terceirizado para algum funcionário, como a babá ou a empregada. Nas classes muito baixas, as mulheres muitas vezes têm ocupações regionais e continuam cuidando da família durante o dia ou pagam algum conhecido da comunidade para fazê-lo. Nesses casos, será uma extensão natural do seu cotidiano continuar cuidando de familiares doentes.
No meio dessas duas classes está a mulher de classe média, com emprego e renda formal razoável, mas que não pode deixar de trabalhar quando ela ou outro familiar fica doente. Esse talvez seja o caso mais complicado, visto que assumirá o papel triplo de trabalhar fora, cuidar da casa e ter que se desdobrar cuidando de doentes. Esse talvez seja um bom exemplo para o que já se conhece bem hoje em dia: o cuidador de um doente crônico pode virar o próximo doente.
É possível identificar os impactos dessa negação do direito de adoecer para o SUS?
Impossível responder nesse momento. De forma intuitiva e por ter levantado dados preliminares de outros países, é possível inferir que existem grandes decorrências duradouras desse impedimento do comportamento de adoecer.
Existe uma ampla gama de estados emocionais alterados aparentemente associados com jornadas longas de trabalho, instabilidade, pressão para produtividade continuada e outros tantos parâmetros de demanda alta de comprometimento com o emprego moderno. Obviamente, em estudos como esses não é simples isolar o peso de um dos fatores do resto. Coletivamente, todos esses fatores podem estar associados a altos níveis de estresse continuado, que podem culminar em distúrbios ainda mais graves.
Episódios de ansiedade, depressão e síndrome do pânico são frequentemente associados com o ambiente de trabalho e muitas vezes levam ao afastamento dele por muito mais tempo que doenças simples. Meu interesse em conseguir extrair tais dados de estatísticas de saúde pública de diferentes países e de diferentes regiões do nosso país buscará exatamente tentar localizar e evidenciar tais relações de forma científica.
Caso ficasse evidente que o impacto de manter alguém trabalhando é mais prejudicial do que deixar essa pessoa repousar e faltar, seria mais fácil argumentar em favor de legislação que defendesse o direito das pessoas de expressar a doença na sociedade moderna.
Sob o seu ponto de vista, quais seriam os resultados da atual proposta de mudança nas leis trabalhistas e da Lei de Terceirização para a saúde dos trabalhadores?
Infelizmente, a desestabilização das relações trabalhistas que pode ocorrer como decorrência da reforma proposta atualmente – que, indiscutivelmente, é necessária em certos aspectos – não parece contribuir para melhorar essa situação.
Estatísticas provenientes de alguns países mostram que o número de dias faltados por ano por doenças simples e ocupacionais é maior em funcionários que têm estabilidade de emprego e menor nos que são autônomos. Isso mostra que os trabalhadores procuram atendimento médico na mesma proporção, porém, apenas aqueles que não vão perder seus empregos deixam de trabalhar e tentam se recuperar em casa.
Fonte: Controvérsia.