Por Leonardo Sakamoto.
No mesmo dia em que a grife de roupas femininas Gregory lançava a sua coleção Outono-Inverno 2012, uma equipe de fiscalização flagrou cerceamento de liberdade, servidão por dívida, jornada exaustiva, ambiente degradante de trabalho e indícios de tráfico de pessoas em uma oficina que produzia peças para a marca, na Zona Norte da cidade da capital paulista. O conjunto de inspeções resultou na libertação de 23 pessoas, todas elas estrangeiras de nacionalidade boliviana, que estavam sendo submetidas à condições análogas à escravidão.
No campo, a maior incidência de trabalho escravo contemporâneo está na criação de bovinos, produção de carvão vegetal para siderurgia, produção de pinus, cana-de-açúcar, erva-mate, café, frutas, algodão, grãos, cebola, batata, na extração de recursos minerais e na extração de madeira nativa e látex. Nas cidades, a incidência é maior em oficinas de costura, no comércio, hotéis, bordéis e em serviços domésticos. No campo e na cidade, pipocam casos na construção civil.
A jornalista Bianca Pyl, da Repórter Brasil, acompanhou as fiscalizações e trouxe um relato do que foi encontrado:
Foram constatadas graves violações de dignidade de trabalhadoras e trabalhadores e de desrespeito a direitos fundamentais em quatro oficinas diferentes visitadas pelo Grupo de Combate ao Trabalho Escravo Urbano da Superintendência Regional de Trabalho e Emprego de São Paulo (SRTE/SP).
“De todo o material a que a auditoria teve acesso, não resta dúvidas de que a empresa Gregory é a responsável pela produção encontrada nas oficinas de costura inspecionadas”, concluiu a SRTE/SP, braço estadual do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Segundo os representantes do órgão que atuaram no caso, a Gregory desenvolve a peça, escolhe e compra o tecido, corta e entrega os cortes prontos para os fornecedores. São dadas ainda instruções de como a peça final de roupa deve ser feita, sob pena de não pagamento, caso algo esteja diferente do exigido pela grife.
Ao todo foram lavrados 25 autos de infração contra a Gregory. Um dos autos refere-se à discriminação étnica de indígenas Quechua e Aymara. De acordo com análise feita pelos auditores fiscais do trabalho, restou claro que o tratamento dispensado aos indígenas era bem pior que ao dirigido aos não-indígenas que trabalham na sede da companhia, no bairro de Pinheiros. A Gregory recebeu os autos de infração na última terça-feira (15).
A empresa se recusou a assinar o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), proposto pela procuradora do trabalho Andréa Tertuliano de Oliveira, que compôs a equipe de fiscalização em um dos flagrantes. A Gregory poderá ser incluída na chamada “lista suja” do trabalho escravo, cadastro mantido pelo governo federal que reúne empregadores flagrados utilizando trabalho escravo contemporâneo. Os responsáveis também poderão responder em âmbito criminal pelo crime previsto no artigo 149 do Código Penal.
Primeira oficina
O primeiro ponto de produção de peças da marca foi averiguado em 28 de fevereiro, justamente no dia da apresentação pública e comercial da nova coleção da Gregory. No local, a comitiva de fiscalização – formada pela SRTE/SP, pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), pela Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania (SEJDC) do Estado de São Paulo, Defensoria Pública da União (DPU) e Centro de Apoio ao Migrante (Cami), e acompanhada pela Repórter Brasil – encontrou um cenário de condições desumanas. Três constatações simbolizam a gravidade da situação: uma jovem trabalhadora mantinha o filho recém-nascido no colo amamentando, enquanto costurava um vestido de renda; armários estavam trancados com cadeado para que as pessoas não pudessem comer sem autorização; e os empregados confirmaram que precisavam da autorização do dono da oficina para deixar o imóvel situado no Jardim Peri, que servia ao mesmo tempo de moradia precária e de unidade de produção têxtil improvisada.
O carrinho de bebê colocado ao lado da máquina de costura era uma forma de “facilitar” a continuidade do trabalho de uma mãe que não parava de trabalhar sequer para embalar ou amamentar a criança, assim como fizera durante toda a gravidez. Os abusos foram confirmados por Inês**, de 26 anos, uma das colegas da jovem mãe. Ambas foram libertadas com mais nove pessoas da oficina que, conforme a fiscalização, produzia roupas para a Gregory
Os armários da casa eram trancados com correntes e cadeados para que os trabalhadores e as crianças não comessem “fora de hora”. Para sair da oficina, era preciso pedir autorização ao dono, que nem sempre permitia. ”A gente tem que avisar bem antes. E se tiver muito trabalho ele não deixa não”, relatou Inês àRepórter Brasil. Para a fiscalização está claro cerceamento de liberdade dessas pessoas.
Marido de Inês, Pedro, de 30 anos, contou que trabalhava das 7h às 23h, de segunda a sexta. A jornada era cumprida, segundo ele, “mesmo com os olhos fechando”, o que demonstra a acumuluação do cansaço. Aos sábados, o turno seguia até às 13h. O casal chegou a trabalhar por três meses, de forma intensiva e sem nenhuma remuneração, para quitar a dívida de suas passagens, indício de conexão da escravidão conemporânea com o tráfico de pessoas.
Há um ano na oficina, os dois moravam com mais duas filhas, que estudavam em períodos diferentes e, assim como as outras crianças, ficavam brincando no local enquanto os pais e mães trabalham.
O casal recebia, em média, R$ 3 por peça costurada. O dono, porém, não garantia os salários conforme combinado. “Ele disse que ia pagar a cada dois meses, mas ele nunca acerta direito. Recebemos R$ 50 aos sábados”, disse Pedro. O dinheiro era usado para a compra de comida. Nas noites de sábado e domingo, todos costureiros e costureiras precisavam preparar a própria comida para consumo durante a semana. Durante os domingos, o casal se dedicava a lavar roupas e limpar o quarto em que dormiam.
A jovem costureira chorou ao contar que pediu aumento de R$ 0,20 ao dono da oficina. O pedido foi recusado. A situação demonstra a dependência e a impossibilidade de abandonar o local, já que não tinham sequer recursos suficientes para isso. Eles não saíam da casa, pois não tinham dinheiro para a passagem do ônibus e “para comprar o que as crianças pedem”.
Responsabilização
No momento da fiscalização, os trabalhadores estavam produzindo vestidos para a marca Belart, da intermediária da Gregory, WS Modas Ltda. Por conta disso, a intermediária também foi chamada a responder pelo caso.
Contudo, os auditores fiscais ratificaram a relação entre a oficina flagrada e a marca Gregory. “Nós ouvimos relatos de trabalhadores confirmando que costuravam para a Gregory, apreendemos cadernos com anotações de encomendas e as notas fiscais da intermediária WS, que confirmam que peças da Gregory foram produzidas por esses trabalhadores, nessas condições”, explicou Luís Alexandre Faria, que coordena o Grupo de Combate ao Trabalho Escravo Urbano.
Os cadernos apreendidos apontam que exatos 4.634 vestidos da Gregory foram produzidos na oficina do Jardim Peri durante o período de agosto de 2011 até a data da fiscalização, em 28 de fevereiro de 2012. Entre setembro de 2011 a fevereiro de 2012, o faturamento da WS consistia em 60% para a Gregory, sendo os restantes 40% correspondentes à comercialização de sua marca própria Belart. A oficina em questão costurava somente peças da Belart e da Gregory. “Nesta altura, já restava demonstrado pela auditoria que a Gregory vinha sendo abastecida por peças de vestuário confeccionadas naquela oficina de costura, por trabalhadores submetidos a condições degradantes”, apontou a fiscalização, que interditou a oficina.
Ao ser informada da situação, representantes da WS providenciaram cestas básicas e prestaram assistências às famílias. A empresa ofereceu emprego para todos os trabalhadores resgatados na fiscalização, contudo o grupo recusou a oferta. “Oferecemos o salário mínimo da categoria, compramos máquinas, reformamos parte do imóvel da empresa para acolher esses tralhadores, disponibilizamos uniformes, refeitório e equipamentos de proteção. Mas, para nossa surpresa, fato que imediatamente comunicamos ao Ministério do Trabalho, dois dias antes do início dos trabalhos, recebemos dois representantes desse grupo que disse que preferiam não ser empregados. A nós coube apenas aceitar a decisão”, disse a empresa em nota, enviada por email à Repórter Brasil.
Após o flagrante a WS iniciou um processo de auditoria interna, revisão de contratos e assinatura de compromisso com fornecedores para evitar que situações como essas se repitam. “Vamos visitar todas as oficinas e checar as efetivas condições de trabalho e coibir qualquer prática que possa atentar contra os direitos dos trabalhadores”. O MTE lavrou dez autos de infração contra a dona da marca Belart.
Segunda oficina
Outros dois trabalhadores bolivianos foram libertados na segunda oficina inspecionada em 20 de março pela equipe interinstitucional, localizada na periferia de Itaquaquecetuba (SP), município da grande São Paulo. Os dois irmãos trabalhavam para outra intermediária da Gregory, a Patrícia Su Hyun Ha Confecções Ltda., que tem o nome fantasia “Yepe”.
Características verificadas na primeira oficina – de violação de direitos básicos dos trabalhadores, em condições degradantes e jornadas exaustivas, e a ligação da produção com a Gregory – também foram encontradas na segunda oficina. Os irmãos recebiam os tecidos já cortados em lotes de cerca de 30 peças para serem produzidas em quatro ou cinco dias, conforme a dificuldade. Um deles tem experiência de 15 anos com costura. No momento da fiscalização, os dois costuravam vestidos de renda da marca Gregory. O local onde funcionava a oficina era sujo e totalmente precário. As instalações elétricas eram improvisadas e estavam expostas. As máquinas de costura não tinham as correias protegidas. As cadeiras também eram improvisadas. Apesar da despreparação completa, a Prefeitura de Itaquaquecetuba (SP) concedera liminar de funcionamento para a oficina.
Terceira oficina
Mais duas pessoas (outro casal de bolivianos) foram libertadas na terceira oficina visitada na Zona Leste de São Paulo (SP), também mantida pela intermediária Patrícia Su Hyun Ha Confecções Ltda.
Há dez anos no Brasil, Joana trabalhava com o marido para criar os seis filhos – o mais novo, de quatro anos, tem Síndrome de Down. Com uma jornada das 7h às 22h, ela diz que sua distração é “vender bolo na feira da Coimbra”. “Fora isso, não temos nada. Só trabalho”, contou. O dinheiro da costura pagava o aluguel de R$ 300; enquanto a verba da venda de bolos ia para a alimentação. Joana e o marido já passaram fome com os filhos no Brasil. “A gente só tinha mingau para comer, no almoço e na janta”, contou.
A oficina também não seguia nenhuma norma de saúde e segurança do trabalho e funcionava em um cômodo improvisado. A reportagem mostrou o último catálogo da Gregory para o marido de Joana, que possui mais de 20 anos de experiência em costura. O trabalhador resgatado reconheceu algumas peças. “Essa eu já fiz. Eu fiz um blazer neste tecido, nesta cor também”, declarou, mostrando as peças fotografadas pela marca.
Quarta oficina
O último local inspecionado foi na Vila Dionísia, na Zona Norte da capital paulista. O grupo de libertados, que era formado por oito bolivianos, trabalhava das 7h30 às 22h, conforme anotado em um dos cadernos apreendidos.
Outras anotações revelaram que as encomendas feitas pela Gregory desde 2009. O responsável pela oficina afirmou, porém, que vinha trabalhando com exclusividade para a Gregory desde julho de 2011. “Eu trabalhava para duas empresas, mas um deles deixou de me passar encomenda porque achou ruim eu costurar para mais de um, pois as entregas atrasavam um pouco”, disse Paulo, que passou a costurar exclusivamente peças da grife.
Os trabalhadores recebiam, em média, R$ 3 por peça. O lote de vestido de renda – o mesmo encontrado em Itaquaquecetuba (SP) – que estavam na oficina também foi apreendido. A fiscalização localizou, na sede da Gregory no bairro de Pinheiros, o pedido de encomenda do vestido no valor de R$ 73 (pagos à intermediária) e indicava preço de R$ 318 para venda.
Paulo vive no Brasil há sete anos, com toda família. “Eu vim depois de meus dois irmãos”. Em La Paz, ele era motorista de empilhadeira, cargo que chegou a ocupar aqui no Brasil por dois anos. Após o falecimento de uma irmã, que tinha uma oficina de costura, assumiu o local. “Nunca me imaginei na costura”, disse.
Dependência econômica
As investigações preliminares realizadas pelo Grupo de Combate ao Trabalho Escravo Urbano apontavam que a intermediária Patrícia Su Hyun Ha não tinha capacidade produtiva para produzir peças encomendadas pela Gregory. A intermediária mantinha apenas dois costureiros contratados, cuja função era a montagem das peças-piloto da Gregory que seriam reproduzidas pelas oficinas. Os auditores fiscais também constataram a dependência econômica da intermediária Patrícia Su Hyun Ha para com a Gregory por meio do movimento fiscal da empresa: mais de 80% do faturamento provinha da Gregory, no período entre janeiro e março de 2012.
Após a fiscalização, os 12 trabalhadores receberam as verbas rescisórias, no valor de R$ 55 mil, e as guias para sacar o Seguro Desemprego do Trabalhador Resgatado. Eles tiveram as Carteiras de Trabalho e da Previdência Social (CTPS) provisórias emitidas pelo MTE e aqueles que não possuem Registro Nacional do Estrangeiro (RNE) receberam auxílio da DPU para documentação.
A investigação da cadeia produtiva da Gregory se iniciou em maio do ano passado, quando a Gerência Regional do Trabalho e Emprego (GRTE) de Campinas (SP) e a Procuradoria Regional do Trabalho da 15ª Região (PRT-15) encontraram fichas técnicas de pedidos da Gregory na oficina onde 52 pessoas foram libertadas de trabalho análogo ao de escravo. Parte desse grupo costurava calças jeans para a grife espanhola Zara. Além disso, a Procuradoria Regional do Trabalho da 2ª Região (PRT-2) recebeu uma denúncia de um boliviano relatando que estaria costurando para a Gregory em condições degradantes e cumprindo jornada exaustiva.
Andrea Duca, diretora de marketing da Gregory, afirma que a empresa só tem a agradecer a fiscalização do MTE e seus respectivos auditores fiscais por “ter alertado a empresa sobre as irregularidades”. Segundo ela, os problemas “aconteciam sem nosso conhecimento”.
“O fornecedor envolvido nesse assunto já está regularizado”, sustentou em mensagem enviada à Repórter Brasil por e-mail.
Apesar da fiscalização não ter dúvida quanto à responsabilidade da empresa em relação à situação de degradação encontrada, a diretora Andrea argumenta que a grife Gregory não usou trabalho escravo “porque não produz nenhuma peça”. E alega que “após orientação da equipe de estilo Gregory, todas as peças são compradas prontas de nossos fornecedores”.