Trabalhadores da Funai entram em greve contra o desmonte da fundação

Em Lábrea (AM), lideranças indígenas exigem fortalecimento da Funai. Foto: Murilo Pajolla

A greve nacional convocada por trabalhadores da Fundação Nacional do Índio (Funai) ocorreu no dia de ontem (23/06), rompendo o silenciamento e se espalhando por cidades do interior dominadas pelo agronegócio e por criminosos ambientais, onde não há tradição de mobilização do campo progressista.

Os atos, que contaram com apoio de organizações indígenas locais e nacionais, pediram justiça pelas mortes de Bruno Pereira e Dom Phillips e exigiram a exoneração do presidente do órgão indigenista brasileiro, Marcelo Xavier.

Indigenistas Associados (INA), entidade de servidores da Funai que coordenou os atos, ainda não divulgou o número de municípios que registraram mobilização. Mas informou que, além dos grandes centros urbanos como São Paulo e Brasília, a mobilização alcançou quase todas as 39 cidades onde há coordenações regionais da Funai.

A gente vive no “Bolsoquistão”

“Eu brinco que a gente vive no ‘Bolsoquistão’”, diz um servidor da Funai em Juína (MT), cidade com cerca de 40 mil habitantes. O ato no município matogrossense ocorreu em meio a um “buzinaço” de caminhonetes com adesivos de Jair Bolsonaro (PL).

“Tivemos notícia que em grupos de fazendeiros e grileiros da região circulam áudios com nossos nomes e nos hostilizando”, relatou ao Brasil de Fato, sob anonimato.

O servidor conta ainda que muitos colegas não se sentiram seguros em participar dos protestos, principalmente aqueles que não são concursados e, por isso, correm o risco de ser demitidos.

Indígenas que mandaram vídeos e manifestações de apoio também não puderam participar, por estarem enfrentando invasores nas suas terras. “É um clima que o Bruno [Pereira] conhecia muito bem e que vivemos aqui em maior ou menor grau”, completa.

Luto e mobilização em Atalaia do Norte

Em Atalaia do Norte (AM), onde Bruno e Dom foram assassinados, a frente da sede da Funai foi tomada por manifestantes. Em uma região que ficou conhecida mundialmente pela violência contra indigenistas, os servidores romperam momentaneamente o silêncio e bloquearam a rua em frente à sede da Funai com cartazes e faixas exigindo “nenhuma gota de sangue a mais”.

Atalaia do Norte. Foto: Thoda Kanamari/Univaja

Coordenações dominadas por militares

Um dossiê sobre a atuação da Funai no governo Bolsonaro, produzido pela INA e pelo Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos), revelou que só 2 das 39 coordenações regionais da Funai são hoje chefiadas por servidores públicos, estando mais da metade delas na mão de policiais e militares. A diretoria do órgão indigenista é formada por dois policiais e um militar. O presidente, Marcelo Xavier, é policial federal.

O documento também mostra que é crescente a contratação de advogados do setor privado, sem experiência na questão indígena, para cargos na fundação – caso de duas das servidoras retratadas nessa reportagem.

Para Vianna, as suspeitas de nepotismo refletem não apenas o desmonte, mas também a vocação da Funai no atual governo. “O que eles estão fazendo é uma política anti-indigenista”, diz. Em sua opinião, a Funai tem incentivado a violência, ao ser complacente com invasores de terras indígenas (TIs). “O governo dá estímulos para que esses invasores de terra façam o que bem entenderem e isso gera conflitos que, no caso do Bruno e do Dom, resultaram em morte”.

O coordenador da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Alberto Terena, critica o fato de  que, apesar do avanço do garimpo, da soja e do crime nas TIs, a Funai faz vista grossa. “Eles estão agindo para desestruturar toda a organização da forma de vida do nosso povo.”

Foto: Mário Vilela/Funai e Issac Amorim/MJSP

Censura e intimidação

O medo da exposição se justifica pelo ambiente de cerceamento de opiniões que toma conta da Funai nos últimos anos. Profissionais da fundação recebem ordens oficiais para que não se posicionem em redes sociais. Entrevistas só podem ser concedidas com autorização do órgão.

Trabalhadoras e trabalhadores têm orientações para retirar de projetos termos que são considerados “subversivos”, como as palavras assembleia, parceiros, demarcação e mesmo o termo movimento indígena. Também precisam evitar a menção a organizações não governamentais

Processos administrativos disciplinares também são usados para promover o assédio laboral. O dossiê aponta que de 2019 para cá o número de procedimentos dessa natureza se multiplicou. Até mesmo investigações por parte da Polícia Federal contra os servidores já foram determinadas pelo órgão, todas sem fundamento e arquivadas após posicionamento do Ministério Público.

“Além de disseminar medo e desconfiança no ambiente de trabalho, o uso constante deste instrumento implica diminuição do tempo disponível para as tarefas cotidianas finalísticas dos servidores, considerando-se que os processos são analisados pelos próprios funcionários, já sobrecarregados, tendo em vista o exíguo quadro de pessoal do órgão”, diz o documento.

A falta de profissionais, inclusive, é uma das raízes do desmonte da Funai. Em 2020, havia 2.300 cargos desocupados e não há nenhuma sinalização de concurso público ou contratação de pessoal qualificado para o trabalho. Pelo contrário, cargos de coordenação e chefia estão distribuídos entre aliados políticos do governo federal. A maior parte vem das forças militares e policias e não tem nenhuma experiência com a proteção dos indígenas.

Em 2019, temendo pela própria vida, Ricardo Henrique Rao entregou um vasto relatório à Comissão de Direitos Humanos da Câmara, em que relatava intimidações por parte de um agente da polícia militar, de um procurador da república e até uma visita de uma equipe da Agência Nacional de Inteligência (Abin) ao local em que trabalhava.

Em conversa com o Brasil de Fato, ele, enumerou exemplos de colegas que hoje estão sob pressão e sofrem diversos processos administrativos disciplinares. Narrou também situações de violência contra servidores e indígenas, lideranças indicadas pelo governo que estimulam a violência entre os povos, agressões físicas e ameaças com armas.

“Fomos destruídos”, afirmou, emocionado. “É trágico. É como ver um familiar definhando de uma doença incurável e você se sente impotente. A Funai sempre foi um órgão muito nobre. Olha que lema mais lindo, ‘morrer se preciso for'”, mencionou Rao, lembrando da frase célebre de Marechal Rondon, defensor histórico dos povos indígenas e figura essencial na criação de políticas de proteção para esses grupos no Brasil.

 

 

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