Por Vitor Nuzzi.
Dois meses atrás, Mônica Salmaso começou a assistir a uma live do cantor e violonista Alfredo Del Penho e passou a cantarolar. Divertiram-se tentando cantar juntos, e uma ideia nasceu: convidar amigos para cantar juntos, embora separados. Do nada, o plano foi batizado de Ô de Casas e floresceu: nesta quinta-feira (21), por exemplo, Mônica publicou o vídeo de número 59, com o pianista português João Coelho. O primeiro, claro, foi com o amigo Alfredo, em 24 de março, cantando A Cor da Esperança, de Cartola e Roberto Nascimento.
As casas começaram a encher de gente e canções. Mônica passou a “visitar” amigos de todos os cantos, apresentando nos vídeos um pequeno retrato da diversidade musical brasileira: gente como Leila Pinheiro, Mario Adnet, Chico César, Paulo Freire, Guinga, Dori Caymmi, Ná Ozzetti, André Mehmari, Yamandú Costa, Luciana Rabello, Cristovão Bastos, Rolando Boldrin, Mestrinho, Quarteto Maogani, Teresa Cristina, Vanessa Moreno, Joyce, Moacyr Luz, entre tantos outros. E também de fora: o argentino Juan Quintero, a mexicana Magos Herrera, o português José Pedro Gil e o italiano Gabriele Mirabassi. Estão todos lá, nas redes sociais, para quem quiser assistir.
O que era despretensioso virou alento, uma forma de continuar fazendo música. E, como a cantora define, “um oferecimento de afeto para ajudar as pessoas a se cuidarem, a ficar o máximo possível em suas casas, oferecer alguma coisa que conforte”, em um momento tão difícil como o atual.
Mônica diz não mais ter adjetivos para definir o atual governo: assustador, aberração, bizarro. “Nós estamos completamente à deriva”, lamenta. Em uma hora como esta, a arte pode mostrar seu alcance, “capaz de organizar o pensamento, a emoção, a alma das pessoas”. Ela espera pelo momento de voltar a abraçá-las. E cantar perto do público, com a “casa” mais forte do que nunca.
Como surgiu a ideia do “Ô de Casas”? Você falou que foi meio de improviso…
Aconteceu totalmente sem querer. Eu estava assistindo a primeira live que eu entrei pra ver, do Alfredo Del Penho, um amigo muito querido, aí eu fiz um comentário que eu estava cantando junto com ele, alguém falou e ele me convidou, mas a gente não conseguia cantar ao mesmo tempo, porque tem a diferença de tempo, tem um delay. Então, foi divertido, mas musicalmente comprometedor… Fiquei pensando como fazer. Esse formato não é nenhuma novidade, mas achei que era bonito se a gente pudesse fazer vídeos onde a gente se encontrasse de uma forma parcelada. Era importante que o vídeo estivesse… Eu expliquei desde o início que não é uma live, que são vídeos editados, gravados separadamente, mas que têm todo um afeto de encontro. Desde a combinação de música, sempre, mas na realização do vídeo a gente se olha, faz de um jeito que quando um grava o outro está ali de alguma maneira. Ou é uma foto, um áudio de guia, alguma coisa que a outra pessoa está lá. É como a gente de fato se encontra.
Aí eu fiz um primeiro com o próprio Alfredo. Ele é autor, rapidamente entendeu e embarcou nessa história de gravar o primeiro vídeo sem me ver. Daí o Pedrinho Miranda estava junto nessa live do Alfredo, a gente fez, aí começamos a trocar figurinha, como editar, eu nunca tinha feito isso… Fiquei fuçando, a gente foi se dando toques, e aí foi meio rápido, que isso pipocou. Deu muito prazer fazer, aí as pessoas começaram a ver. Gente que eu nem imaginava, a coisa foi crescendo. Fez um volume tão grande que eu comecei a postar um por dia. E isso criou um vínculo com as pessoas… Eu comecei a receber comentários, “eu fico esperando o de amanhã”. E aí eu não consegui mais parar (risos).
Qual a importância dessas “visitas” para os artistas? É uma forma de se sentir vivo nesses tempos, digamos assim? É também um exercício de saúde mental?
É uma importância de visitas de afeto, né? A gente precisa se sentir vivo. A gente está sem trabalho neste momento. Nós que vivemos de fazer show estamos por tempo indeterminado com tudo suspenso, isso é um problema enorme. E ao mesmo tempo fazer música é o nosso ofício, nosso trabalho remunerado, e é também uma força vital, não dá pra não fazer, não dá pra parar. É impossível. A gente enfraquece, enlouquece… Eu, pelo menos, não consigo. E sinto que meus amigos, meus colegas, sentem isso também. Porque a gente começa a fazer e tem vontade de fazer mais. Por amor também, para oferecer isso pras pessoas, a gente se encontra e encontra as pessoas, que são o nosso público, e uma coisa que também é a nossa força de trabalho.
Isso também tem proporcionado encontros que nem sempre seriam possíveis no palco, inclusive internacionais. É o “lado bom” da crise, se podemos dizer assim?
Não dá muito para falar “lado bom da crise”, porque nós estamos com tantas crises, tão horríveis… É um ganho. É uma limonada que a gente está fazendo com esse limão, muito azedo nesse caso. Um custo muito alto. E a gente pensa muito isso. Estou aqui numa casa gostosa, com a minha família, mas tem pessoas que estão sozinhas ou lugares apertadinhos, sem ver, sem as pessoas queridas, então é um oferecimento de afeto para ajudar as pessoas a se cuidarem, a ficar o máximo possível em suas casas, oferecer alguma coisa que conforte, que organize a emoção dessas pessoas. Porque a gente sabe, qualquer pessoa razoável já deu pra entender faz um tempo já que o cuidado mais necessário é estar em casa, não sair o máximo possível, pra que a coisa não cresça ainda mais, pra segurar essa onda muito maluca dessa pandemia. E as pessoas loucas, doentes, que não entendem isso, eu realmente não consigo entender. Mas a nossa parte acaba sendo essa.
Parceiros: Moyseis Marques, Yamandú Costa, Leila Pinheiro
Como os músicos, incluindo aí os instrumentistas, os técnicos de som, têm sobrevivido nesses tempos sem palcos físicos?
As pessoas não estão recebendo nada. Nós não temos apoio nenhum, de governo nenhum. Nesse caso, nós não temos nem governo, né? Nem Ministério da Cultura, e a Secretaria da Cultura é patética. Então, nós não temos nada. As pessoas estão vivendo com o que têm guardado… A gente fez uma reserva. Como nós somos autônomos, a gente sempre sabe há muitos anos já, eu sou profissional autônoma, o (saxofonista e flautista) Teco Cardoso, meu marido, também, então a gente sempre fez uma reserva pra meses de pouco trabalho. Então, a gente está vivendo dessa reserva, mas ela não é infinita. E a gente está aqui como todo mundo quebrando a cabeça pra saber o que fazer, como fazer, pra fazer um trabalho remunerado. A gente fez recentemente uma live pro Sesc, que é uma iniciativa maravilhosa do Sesc de gerar trabalho remunerado pra música, agora pra teatro, dança. É uma iniciativa espetacular, a gente torce pra que outras empresas também embarquem nessa iniciativa e criem esse tipo de suporte, aporte, pros artistas.
As lives podem ser uma alternativa profissional permanente ou são algo do momento?
Acho que elas podem vir a ser permanentes mais ou menos, sabe? Existe uma coisa na live que falta muito pra gente, que é o público, é ver as pessoas. A live tem um lado meio de Big Brother, que é o público enxergar a vida, a casa do artista, tal, mas eu ainda prefiro fazer um show com tudo que a gente gosta, com a melhor qualidade de som, os técnicos trabalhando junto e o público ali presente. Esse é o meu trabalho, é isso que eu gosto de fazer. Aqui o que está fazendo, que nem é uma live – até fizemos essa que comentei –, é uma situação que tem a ver com este momento.
Você fez, pelo Instagram, um agradecimento aos parceiros e ao público, lembrando que lê todos os comentários. São mensagens que emocionam e divertem, segundo você. O quanto acredita que esses encontros musicais podem, de alguma maneira, ajudar as pessoas neste período?
Pelos retornos que venho recebendo é que eu tomei consciência do que esse oferecimento do Ô de Casas passou a significar para muitas pessoas. A gente não tem controle sobre isso até que aconteça. Eu só quis fazer uma coisa que fosse boa. Mas não tinha me dado conta do quanto era importante pra muita gente. Eu várias vezes choro lendo. Esse vídeo de agradecimento que eu quis fazer foi exatamente porque me dei conta do tamanho disso. É muito bonito isso. Aí foi uma loucura. Esse vídeo gerou no Instagram, que foi onde eu coloquei, sei lá, 1.600 comentários, um número enorme. Quase que eu virei a noite chorando de emoção.
Casa cheia: Dori Caymmi, Rolando Boldrin, Ná Ozzetti
Como vocês têm se cuidado? Qual é a rotina de casa?
A nossa rotina é igual a de todo mundo. Cuidar da casa, fazer comida, lavar roupa, filho estudando on-line. E fazendo vídeos, vídeos e vídeos…
E o que acha dessas críticas do governo federal às medidas de isolamento, essas mudanças de ministro da Saúde em plena pandemia? Acredita que a crise está sendo bem administrada?
Não dá nem pra comentar o tamanho da insanidade desse governo, em todos os sentidos. É um governo que conseguiu distribuir em todas as pastas pessoas que não têm a menor noção do que estão fazendo. É bizarro. Outro dia o Antônio Prata fez uma maravilhosa crônica, onde ele diz que o pior aluno da classe virou o diretor da escola. Então, ele tirou a nutricionista e mandou todo mundo comer Cheetos, foi descrevendo uma situação que é exatamente como a gente se sente.
Nós estamos completamente à deriva, na mão de pessoas que não têm a menor responsabilidade, que nitidamente não estão muito preocupadas se está morrendo muita gente, contanto que as pessoas endinheiradas continuem, não faça a roda parar. Já é sabido, por exemplo, de outros países, que se a gente aderisse – aderir, mas a gente já devia ter feito isso desde o início – ao isolamento poderia estar em outra situação. E perde-se muito mais dinheiro com essa forma absurdamente flexível, ignorante, com que esse governo está tratando essa crise. É lamentável, assustador, é uma aberração. Acabaram os meus adjetivos. Eu tenho uma dose que aguento de notícias, porque é muito absurdo quanta gente está morrendo, quanta gente está doente, como é que pode um governo permitir isso assim.
Outro dia, no encontro com o Sujeito a Guincho, você falou da música Sinal Fechado, do Paulinho da Viola, comentando que este é um momento de repensar muitas coisas. Por exemplo…?
Todas essas músicas, todas as músicas, na verdade, que já tocam a gente num momento como este os sensíveis ficam mais sensíveis. É até uma forma talvez, eu acho, de justificar pras pessoas que agrediram tanto os artistas neste governo, neste momento, e a turma que embarcou nessa bobagem entender o tamanho, o alcance da arte, o que a arte é capaz de fazer. Como ela é capaz de organizar o pensamento, a emoção, a alma das pessoas. Num momento de dor, de aflição e de agonia isso fica ainda mais agudo, mais perceptível. É uma chance, talvez, de as pessoas que têm alguma percepção e estavam cegas abrirem os olhos para isso. Sinal Fechado tem essa história, várias músicas que a gente. cantou. A gente está num momento de repensar a própria vida, a individualização das coisas, o planeta. Estamos todos, o planeta inteiro passando por uma mesma coisa. Isso é uma coisa gigantesca, é de uma proporção de guerra mundial. É uma coisa que a minha geração não tinha vivido, e a gente tem que parar pra pensar, os modos de produção, os modos de vida, o que a gente entende como importante, a importância que tem agora o que não pode fazer, a felicidade que vai ser encontrar as pessoas sem ter medo delas, abraçá-las, enfim…
Tem mais “visitas” programadas para os próximos dias? Dá até para fazer um DVD com tanto material…
Muita gente está perguntando sobre fazer um DVD, mas a gente não pensou nisso. Esse trabalho é voluntário, não é remunerado, nenhum convite foi feito com essa intenção. Como eu disse, isso começou de uma forma tão espontânea e não programada que nem imaginava que isso podia acontecer. Acho difícil, porque isso envolveria reconversar com todo mundo… A gente vai fazer até quando conseguir, até quando der, com muito prazer.
Muitos acreditam que sairemos dessa crise toda melhores do ponto de vista humano, mais solidários. Outros são mais céticos em relação a isso. E você? Acredita que a “casa” ficará mais forte?
Eu torço, não sei o que acredito. Nós estamos no meio de uma situação tão enormemente complicada que eu não consigo apostar… Espero, do fundo do meu coração, que as pessoas saiam melhores do ponto de vista humano. Eu torço, do fundo do meu coração, que essa fragilização, essa vulnerabilidade em que nós todos estamos coloque a nossa sensibilidade, a nossa percepção na frente de outros valores, de competição, de individualização, de cegueira coletiva, em que o mundo está, mas o Brasil está ainda mais inerte. Espero que a gente aprenda algumas coisas com isso. Agora, minha “casa” pessoal, minha casa já está mais forte. Inclusive a minha carreira, eu acho. Acho que esse tamanho do Ô de Casas acabou mudando coisas em mim, mudando a minha relação com as pessoas, com o público. Estou já imaginando quando eu puder cantar pra pessoas na minha frente, como vai ser bom isso, a partir deste momento. Não é um gap, um vácuo entre antes e depois. É um depois a partir deste momento. E isso vai ter muita força. Eu vou estar muito modificada por essa experiência. Por essa experiência da vida, do momento em que todos estamos, e também pela experiência do Ô de Casas, pelo tanto de afeto dado e recebido.