Tio Antônio quando travalhaba
Nas obras numa plantação
Que pertenciam a um colono
Tio Antônio era contratado
Sob um sol ardente do Mocaba
Ele apanhou um pau nas costas
Um capataz pretendia
Que ele era demasiado lento
Tio Antônio era contratado/ Antônio kumbe kumbala
Antônio wayenda ku Zombo
Ngwa nkazi wayenda mu n’tonga
Elumbu kesinga vutuka/ Festa na aldeia
Esta música angolana, narra a triste história do Tio António, um camponês que durante o tempo colonial trabalha arduamente todos os dias e é abusado pelo capataz pois supostamente é muito preguiçoso.
[A sua família fica para trás, aguardando ansiosamente o seu regresso para fazer uma grande festa na aldeia.]
Tio Antônio quando trabalhava
Nas obras numa plantação
Que pertencia a um colono
Tio Antônio era contratado
Por ter recusado
Foi deportado
Deportado longe de sua terra
Tio Antônio
Tinha deixado
A família em sua terra
Actualmente têm circulado imagens de viajantes africanos a serem vendidos publicamente algures na Líbia. A comoção é geral, e é de se louvar. Os gritos destas pessoas – sim, PESSOAS – que foram raptadas, exploradas, manipuladas ao ponto de serem vendidas como objectos, foram ouvidos.
Então, ouçamos esses gritos. O que nos dizem? De onde vêm? Como é que esses gritos surgiram e se multiplicaram até chegarem aos nossos ouvidos?
Para quem acredita em tudo o que lê nos livros de História, os gritos surgiram subitamente, pois a escravatura terminou há séculos atrás. Para quem achava que o tráfico de seres humanos era um problema pequeno, os gritos mostraram que é um problema gigante. Para quem defendia que hoje em dia, no séc. XXI, todos os seres humanos são tratados com a mesma dignidade, os gritos colocaram em evidência a realidade falsa.
Os gritos e lágrimas que nos chegam hoje, vêm de pessoas e lugares que nunca deixaram de existir: mercados de pessoas; traficantes de pessoas; exploradores… Onde miséria, pobreza e ilegalidade caminham de mãos dadas, e as linhas da criminalidade se confundem.
Não é só na Líbia.
Tio Antônio foi empregado
Em Madeira, São Tomé, Cabo Verde
No dia do seu regresso
No dia do seu regresso, Festa na aldeia!
[Mais tarde, Tio António revolta-se e é deportado e assim viaja pelas plantações da Madeira, São Tomé e Cabo Verde.]
Esses gritos existem também nas nossas casas.
A necessidade da escravatura está tão presente hoje como estava no séc. XVIII, quando começou o movimento abolicionista, pois vivemos numa sociedade capitalista em que queremos adquirir o numero máximo de produtos e serviços pelo preço mais baixo e produzir tudo isso com mais lucro possível.
Tem de haver uma mudança no nosso consumo para que possamos de facto abolir a escravatura. Estaremos prontos para isso?
Queremos prazer ao máximo, consumo ao máximo, o melhor estilo de vida, o melhor conforto e tudo isso da forma mais barata possível. É por isso que durante as campanhas “Black Friday” invadimos lojas de marca como a Zara e Bershka como vândalos.
Em 2013, no Bangladesh mais de 100 pessoas morreram quando duas fábricas ficaram arruinadas. Nessas fábricas os “trabalhadores” faziam roupas para essas mesmas marcas em condições deploráveis.
No Brasil, essas mesmas marcas subcontractam empresas que contratam funcionários menores de idade que trabalham em turnos de 16h diárias.
Sim, porque para que essas marcas possam fazer as roupas que nós tanto gostamos – e descartamos sazonalmente – é necessário que haja pessoas a trabalhar como escravas.
A ganância e egoísmo que nos rege hoje é um dos mais importantes factores que impulsiona o trabalho escravo e o tráfico de humanos.
O nosso erro é nos calarmos face a estes abusos. O nosso erro é não procurarmos saber de onde vêm os produtos e serviços que consumimos (ou aspiramos consumir) . O nosso erro é não querermos saber qual o prejuízo humano para cada item que temos na nossa casa.
Se realmente queremos acabar com o trabalho escravo, temos de começar por reconhecer a nossa cumplicidade.
Nas nossas próprias casas, nos nossos locais de trabalho, nos nossos bairros, quantas pessoas vivem em situação de escravidão? Quão permitidos somos com essas situações?
Comecemos pelas nossas empregadas domésticas, que dignidade lhes conferimos? As crianças a quem compramos amendoins na rua, que direitos têm garantidos? Os guardas/ seguranças, em que condições trabalham?
Comecemos por aí.
Não é uma questão de culpa ou vergonha, mas sim de responsabilidade. Temos de assumir o poder que está nas nossas mãos para mudar alguma coisa.
Em vez de culparmos os governos e grandes corporações; em vez de exigirmos melhor legislação, melhor controle de fronteiras, trabalhemos este espaço que ocupamos agora.
A nossa indiferença faz-me pensar no Tio António, cuja história deu uma boa música para as nossas festas.
Embora a música seja animada, narra vivências reais de muita dor e sofrimento. Não podemos deixar que isso continue a acontecer no séc. XXI.
Não podemos dançar ao som dos gritos dos escravizados.
Antônio wayenda ku Zombo
Ngwa nkazi wayenda mu n’tonga
Elumbu kesinga vutuka/ Festa na aldea
Bu ukuenda ku Zombo tata Antônio/ Antônio kumbe kumbalala
Buku toma siminina/ Antônio…
Kuikila mfumu Yisu/ Antônio…
Elumbu kesinga vutuka/ Festa na aldea
Fonte: EscreveAline