Por Urda Alice Klueger.
Tia Alice é alguém que vem lá da minha primeira infância, antes dos quatro anos, quando minha mãe fazia uma cama no chão da sala com suas cobertas de algodão quando chegava visita e havia horas de conversas antes de ir dormir. Não me lembro do meu primo Nelson nessa altura, mas ele estava lá, já que é um ano mais velho do que eu, como também estava o querido tio Fridolin Hardt, que tão prematuramente nos deixou, quando eu ainda era jovem.
Vou lembrar do Nelson um pouco mais adiante, já na Praia de Camboriú, e isto quer dizer que eu já andaria ali pelos cinco ou seis anos. Nesse tempo, eu andava tão ocupada com a vida que acontecia lá fora, no entorno da lagoa que a especulação imobiliária depois secou, que já não lembro onde a minha mãe fazia as camas das visitas. Mas lembro bem de como tia Alice era genial com suas histórias: ela convencera o Nelson de que se ele não comesse bem, ficaria tão fraco que seria arrastado por uma pandorga num dia de vento. Acho que ela vira um desenho assim no Almanaque Renascim, e fizera suas adaptações.
Mais ou menos por essa época fiz minha primeira viagem rumo ao Norte – com meu pai, fomos visitar a tia Alice em Joinville, pela estreita e sinuosa estrada sem calçamento que se enredava próxima do litoral, e que era chamada de Estrada Geral. Inesquecível aquele dia, aquela noite, onde seriam eu e meu pai quem dormiríamos numa cama arrumada no chão, e no jantar que foi coroado por uma totalmente incomparável compota de ameixa preta, daquelas coisas assim que eu pensava que só existiam nos reclames das revistas femininas que a minha mãe tinha!
Foi assim, pela vida afora, que meu caminho sempre foi se cruzando com o da tia Alice. Se não houvesse visitas, sempre havia os acontecimentos da família, como confirmações, aniversários, casamentos ou velórios, quando a família toda se reunia e a tia Alice estava lá.
Na minha juventude, diversas vezes tive que fazer cursos em Joinville e então me hospedava na casa dela. Era a antiga casa de madeira, e se calhava de estar lá no final de semana, tio Fridolin assava churrascos para nós todos lá atrás, inesquecíveis churrascos comidos sem pressa na mansidão em que a vida corria naquela casa.
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Depois, tia Alice foi para a outra casa, que era como um palácio coberto pelas tapeçarias que ela mesmo bordara. Tio Fridolin já não estava mais, o Nelson se fora para Florianópolis e a grande companhia dela era aquele cachorro gordinho do qual já não lembro o nome. E os antúrios, e as outras flores do jardim, e a vizinha Elvira. Ir visita-la era sempre um acontecimento, e como eram chiques aquelas suas mesas de café, com a louça linda e a toalha bordada, luxos que ela reservava para as visitas! E depois a gente sentava na sala das tapeçarias bordadas e passava a tarde conversando, e não quero esquecer, aqui, que ela era a cunhada mais jovem da minha mãe e que as duas tinham sido muito amigas na altura da Segunda Guerra, e que assunto nunca faltava nessas conversas. Penso, agora, nas memórias da minha mãe, em como os três iam juntos tomar guaraná numa confeitaria do centro de Blumenau, meu pai com a namorada e a irmã, num tempo em que a juventude tornava tudo possível!
Um dia o tempo do tudo possível terminou e meu pai partiu, e o tio Fridolin, e minha mãe, e faz poucos dias em que tia Alice também se foi, quase centenária. Nascera a 14 de dezembro de 1923. Restamos nós, da geração seguinte, e memórias lindas, como a daquela noite com a compota de ameixa preta. Penso que os outros talvez tenham ficado a espera-la num caminho cheio de luz. Mais tarde a gente se encontra de novo!
Sertão da Enseada de Brito, 22 de setembro de 2019 – Véspera da Primavera.
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Urda Alice Klueger é Escritora, historiadora e doutora em Geografia.